Capítulo 52
Esse cap não tava programado, mas acabou saindo então já sabem que não vamos mais até o 55...
2021.
— Aaaahhh, como é bom FINALMENTE poder fazer essa live, junto com uma pessoa arromântica nessa semana maravilhosa! — A voz fina e animada de Patrícia ecoou pelo fone de ouvido que eu estava usando, com o celular apoiado na mesa gravando meu rosto.
A mulher era dona de uma página famosa da comunidade assexual e estava começando a trazer conteúdos sobre arromanticidade também. Estávamos na semana da Visibilidade Arromântica e eu havia sido chamado para participar da transmissão ao vivo com ela.
A vida era bem irônica: há um ano, eu detestaria me envolver com qualquer coisa relacionada à comunidade LGBTQ, e terminei fazendo live na internet sobre isso.
— E aí! Cê quer que eu me apresento primeiro? — Coloquei a parte do microfone mais perto da boca.
— Com certeza! Apesar de que eu acho que muita gente aqui já te conhece, tô vendo uns comentários muito bons aqui! — Patricia riu para a câmera e olhou para baixo da tela. De fato, várias pessoas que estavam online me cumprimentaram por mensagem.
— Bah, ei pessoal. — Ri tímido no início, mas a risada aumentou quando uma avalanche de bah's virtuais apareceu, isso sempre acontecia quando eu falava e eu achava hilário. — Mas pra quem não me conhece, meu nome é Jason, sou uma pessoa trans não-binária, uso pronomes neutros e masculinos, podem ficar à vontade pra usar quais vocês tão mais acostumados. — Me expliquei rapidamente. — Cêis' já devem saber que eu sou arromântico, mas também sou bissexual, e eu cuido do canal Cinza & Estrelas.
"Óbvio que eu nunca me esqueceria daquilo."
— Eu sempre fico de coração quentinho quando vejo o nome do seu canal! — Patricia fez um biquinho na tela. Seus cabelos eram de um ruivo forte e seu par de óculos redondo era engraçado. — É verdade que tu fez uma tatuagem com o nome do teu canal?
— Por aí! É essa aqui... — Me afastei da câmera do celular e ergui a manga curta da blusa, revelando uma pequena constelação que ia um pouco acima do cotovelo até o início do meu ombro. — Ela termina na clavícula com a frase "Feito de Cinza e Estrelas", mas vai ser um rolê pra mostrar e eu teria que tirar a camisa, então melhor não.
— É, melhor não! — Patricia fez uma careta engraçada e balançou as mãos no ar. — Mas voltando ao que interessa! Queria dizer que é uma honra ter você aqui na página hoje, os seus vídeos cresceram muito rápido de um jeito absurdo e são poucas pessoas que falam sobre a comunidade aro na internet, eu acho importante quando alguém que vive isso pode falar sobre porque não é a mesma coisa de eu, Patrícia, falar, porque eu sou assexual e birromântica. Por isso, muito obrigada mesmo! — A ruiva deu um sorriso enorme e eu sorri de volta, um pouco tímido pelos elogios. — Mas antes da gente entrar nas orientações arromânticas, eu quero dizer que eu e os outros administradores da página te apoiamos na luta contra o seu pai, e que a gente sabe que você foi a vítima de toda essa história e se a justiça não for feita, todo mundo aqui vai fazer barulho!
Patrícia falou alto no seu alto-falante e varias pessoas concordaram nos comentários. Contudo, eu já não estava tão confiante como estive um mês atrás.
Sim. Um mês havia se passado e Maximiliano conseguiu adiar a audiência. O motivo: nenhum, o juiz era seu amigo e liberou o pedido com a desculpa esfarrapada de que precisavam de mais tempo para a coleta de provas orais que poderiam inocentar meu pai — as quais não existiam, eu já tinha toda a situação na minha mão, mas eles queriam me enrolar mesmo assim.
Por isso, meu sorriso não saiu o mais sincero do mundo para a câmera.
— Obrigado, Patrícia, saber que tem gente do meu lado ajuda bastante.
Mas não estava ajudando. Por mais que meus relatos alcançassem muitas pessoas, ainda não parecia suficiente para atingir a Justiça e marcar uma data definitiva para uma audiência de instrução e julgamento; o momento do processo em que eu poderia expor minhas provas e ter o depoimento de Charlie.
E eu ainda não havia dito nada a ele.
Ignorei a presença do guri em minha mente e me foquei no que Patrícia falava. Fingir que ele não assombrava minha cabeça vinte e quatro horas por dia estava começando a parar de funcionar a cada dia que eu passava naquela casa, sozinhe, sentindo falta dele.
Mas eu não tinha coragem de mandar uma mensagem sequer.
Vergonha era a palavra; eu sabia que havia cometido um erro em afastá-lo só por achar que ele ficaria melhor sem mim. Eu já havia tentado mandar várias mensagens, mas apagava todas antes de enviar porque me sentia ridículo. Eu nem havia marcado uma chamada de vídeo para discutir sobre o depoimento.
Mas eu sentia que a hora disso acontecer chegaria em breve.
Paloma já estava com suas bebidas favoritas repostas em casa, mas não podia usufruir delas porque precisou ir para outra cidade vizinha trabalhar. Ela já não trabalhava apenas como psicóloga mais, pois a urgência de profissionais da saúde era tão grande que ela atuava em qualquer frente para ajudar o hospital público em que estava.
Quase um ano havia se passado e nenhum sinal de melhora da pandemia.
Eu deveria estar curtindo meu penúltimo ano de faculdade em festas de veteranos, trabalhando na Agência Júnior e com um currículo razoável, mas as aulas estavam paradas porque não havia como ministrar a parte prática e àquela altura do campeonato quase tudo era. Uma ou outra disciplina teórica ainda era feita à distância, mas eu decidi não me matricular em nenhuma delas.
Eu nem sabia se chegaria até o final, mesmo gostando de Exatas eu não conseguia me ver como um Engenheiro. Pelo contrário, estava indo na direção oposta à área: ao ver Ricardo me explicar de forma leiga sobre o andamento do processo, comecei a ter curiosidade em aprender sobre a legislação brasileira. Por isso, os dias sozinhe em casa começaram a ser ocupados estudando uma coisa que nada tinha a ver comigo, mas me despertou interesse: Direito.
Era bizarro em quantas áreas o Direito se dividia: era Direito do Trabalho, Direito Penal, Direito Administrativo... E mais um milhão de coisas relacionadas. Eu poderia ficar o dia todo só lendo artigos, mesmo que alguns fossem difíceis de entender pelo palavreado complexo, mas ainda assim era interessante colocar algo tão diferente no cérebro.
Era uma boa distração, visto que Charlie Stewart continuava a rondar minha mente.
A chamada de vídeo de nós dois continuava pendente, e eu sabia que o pensamento ficaria ali persistente até que eu tomasse uma atitude e marcasse logo isso.
Então foi o que eu fiz.
Depois de ler mais uma notícia sobre julgamentos de crimes dolosos, abri meu aplicativo de e-mail e pensei em como digitar um texto para Charlie.
Fiquei com os dedos parados, próximos ao teclado, pelo o que pareceram vários minutos.
"Não é tão difícil assim não, porra. É só um e-mail."
Respirei fundo e minimizei a tela. Como forma de enrolar e ganhar tempo, abri o aplicativo de chamada de vídeo que usaríamos e gerei um link para criar uma sala em grupo, assim eu já poderia deixar em anexo no e-mail para não precisar mandar outro depois.
Com o link copiado na aba de transferência do teclado, voltei ao e-mail.
"Ei, Charlie... Eu espero que tu ainda queira fazer o depoimento na audiência, o juiz remarcou pra me enrolar mas a gente tem que tá preparado, né."
Não, estranho demais. Dava para notar minha indecisão, e a parte do "espero que tu ainda queira fazer o depoimento" poderia sugerir que eu pensei mal ao seu respeito a ponto de questionar se ele ainda me ajudaria.
Tentei de novo.
"Oi, Charlie. Precisamos falar sobre o seu depoimento na audiência e meu relato como prova oral para o juiz. Criei um link para uma sala de chamada de vídeo que podemos usar, se tu quiser, assim vai simular a audiência online. Quando tu pode fazer isso?"
Não gostei de novo. Não queria mostrar que estava com qualquer horário disponível e que ele poderia escolher, também. Eu estava sendo seco demais? Não conseguia saber, não estava batendo bem da cabeça.
Tentei mais uma vez.
"Stewart, a gente precisa falar do teu depoimento. Amanhã às 10h por esse link, combinado? Te espero."
Pronto, perfeito! Melhor impossível.
Charlie iria me xingar, com certeza.
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