15. Longe de Você
Era uma vez... bem, vocês já conhecem essa história. Apesar de ter dito que perdera a voz, o que claramente não foi só uma vez, houve um pouco mais a se perder naquela noite de chuva. Seria estranho se lhes dissesse que mal me lembro de dois ou três dias daquele mês inteiro?
Os sorrisos, sim. Lembro de muitos sorrisos. Todos estavam ainda tão exaltados como se ainda fosse Dezembro, como se a felicidade fosse o estado natural de todas as coisas.
Enquanto dentro de mim, ainda não tivera coragem necessária para ver aqueles cacos espalhados.
Quase queria esquecê-los. "Quase" porque ainda era bom lembrar o porquê eu tomava todas aquelas doses de cafeína, porque aquela cama parecia cada vez mais hostil. Embora eu tenha prometido que mataria todos os porquês.
Mas é claro, eu não podia matar Patrick. Muito menos metaforicamente.
Os nossos sonhos irão se realizar. Foi o que ele me disse antes de desmaiar no meu colchão, logo depois de arrancar fora meus órgãos e pisar em cima num passo de sapateado. Como eu poderia matá-lo? Um único maldito desejo de boa noite, um único sorriso entrecortado e eu estava novamente desarmado. Ele era forte demais, e tinha todas as vantagens.
O que me restou foi uma xícara de café, ou um sentimento que o amargor trazia com a insônia? Não havia como voltar, e ali eu percebi que era definitivo, talvez por isso meu cérebro tivesse apagado. Esquecer? Eu não era tão tolo assim. Claro que era impossível.
Às vezes, você tem a certeza que é impossível mudar o futuro tanto quanto o passado. A xícara estava na minha mão, mas ela podia escorregar, não estava segurando-a tão firme. Enfim, as vezes... você precisa escorregar. Deixar cair, deixar quebrar, pois não há mais força, não há mais razão para esperar o fim da tempestade.
Raramente ficamos sozinhos naquela última semana, Patrick estava tão ocupado em resolver tudo ao seu redor que lembrou-se da minha existência somente nos últimos minutos. É claro, ele na época, não percebeu o quanto aquilo podia ser doloroso.
Lauren, uma mulher misteriosa e completamente desconhecida para mim, queria que Patrick trabalhasse com ela em Yorkmouth. E ele aceitou. Thomas o incentivou a despedir-se de mim, num dia iluminado, assim como marcado pelo fim chuvoso de um sorriso sem graça.
Havia tanto que ele queria ver, tanto para sentir... ele não queria sentir que um único pedacinho seu estava preso. Eu era o errado, eu sei. Não podia monopolizá-lo. Mas o que podia fazer? Quando somos estupidos geralmente sabemos disso tarde demais. Podia enumerar todos os motivos exatos da minha estupidez. Sabe o que resta no fim do caminho quando se decide parar e apenas observar o rio correr? Remorso. Sim, eu senti o medo, a dúvida, a certeza, a negação, a coragem e a hesitação, só restou o remorso. Não aconselho em doses altas, principalmente se ingerido com mentiras.
E, novamente, nós voltamos à arrogância. Com medo de perdê-lo, eu dei o meu melhor em acreditar que nada importava, mas para a surpresa de ninguém, eu só tive ainda mais certeza que queria ficar ao seu lado.
Não que isso tenha mudado... qualquer coisa. Remorso, arrependimento... foda-se, ele se foi. Nada poderia mover-se se eu não fosse lá e empurrasse, e mesmo que eu quisesse ter Patrick ali, havia algo que era ainda mais importante para nós. O que é mais importante do que estar com quem se quer? Basta amarra-la no pulso e decidir que seu lugar era ali? Eu disse, não disse? Patrick não era de ninguém, não podia ser, e nunca o saberia. Mesmo que eu dissesse qualquer coisa, isso não mudaria. Mesmo que ele mesmo se amarrasse, com a força e coragem de duas doses de gin, a permanência eterna, ou a menção desta, o assustava.
Patrick era um mar de dúvidas assim como eu.
Porém, meu erro foi pensar que, o fato de estar indeciso sobre o que fazer, só comprovava que aquela ela a decisão certa. Nada feito com plena certeza acaba bem, certo?
Sem certezas, eu criei coragem e fui aquela noite. Com todos reunidos ao seu redor, Thomas organizando algo com fogos de artifício (que original), e mais sorrisos para atiçar minha ânsia. Havia levado um quadro que ele gostava, o daria como lembrança, estava realmente emotivo.
Entretanto... eu recuei. Algo naquela simples cena me fez estancar. Por um momento, eu me senti tão frágil e fora da caixa, tão a mercê de tudo e incapaz, como se tivesse retornado aos seis anos de idade e finas agulhas perfurassem não só o meu braço, como meu corpo inteiro. Em meio a tantos sorrisos, vi seus lábios avermelhados errarem, tentarem dizer algo, erguer-se quem sabe, porém não havia vida para fazê-los alçarem. Em que ele poderia estar pensando? Estava triste? Pensando nas saudades que sentiria de casa? Ou quem sabe estava com medo? Dividido entre Mercedes e o trabalho? Ansioso com a nova aventura?
Bem, ele havia recebido a confiança de tantas pessoas, era inevitável que se sentisse assim. Ali, de longe, eu tentava lembrar da primeira vez que o vira sorrir e não consegui. Porque para mim, Patrick estava sempre sorrindo. Ainda penso assim, agora mesmo.
Patrick, ao olhar para si mesmo, pensava em como poderia sorrir mais uma vez. Pela primeira vez, não fingi que odiava isso. Eu precisava vê-lo sorrir, precisava acreditar que ele estava sempre feliz, e por isso era ótimo em curar perfeitamente a dor alheia. Porém, não havia nada além de um olhar confuso, procurando, ansioso, um olhar que me fazia querer ir até lá e perguntar... Você está bem?
Eu não podia matá-lo, mesmo que ele estivesse ligado a mim e eu só precisasse puxar a corda. Mas eu... a soltei.
Não foi pela beleza do ato, mas pela solução. Era a única coisa que eu podia fazer. Mesmo que doesse como poucas coisas são capazes de doer, sem nem coragem para dizer uma única frase que demostrava que eu me importava, muito. Que eu sempre me importei, do lado de fora da janela, aquele era o meu lugar, não porque Patrick havia me deixado ali, mas porque assim eu não correria tantos riscos, tantas tentações do qual eu poderia me arrepender para sempre.
Os efeitos daquele sorriso eram fortes demais para as minhas barreiras quebradiças, e já havia cacos demais para recolher do chão.
Então eu recuei aquele passo, aquela tela ainda ficaria comigo por muito mais tempo, e quanto mais eu andava, a brisa gelava, o céu se fechava, nublando toda a paisagem, até as gotas virem escorrendo devagar, quietamente, como os anos e as memórias que guardava nos bolsos do sobretudo, derretendo nos dedos até transpassar o tecido grosso e pingarem em pequenas poças no chão. Lenta e dolorosamente, cinzas, a escorrer do queixo enrugado.
Foi tortuoso, cada passo um obstáculo. Não apenas por ele, enfim, acho que naquela época eu esperei e me decepcionei por pequenas coisas, sem entender bem o porquê. Fingir que podia deixá-lo sem amarguras foi uma delas, entretanto, não a única.
O que posso dizer? Desejava que pudesse desligar cada um daqueles sentimentos como uma torneira, pois me sentia miserável enquanto vazasse pelos poros.
Nós poderíamos parar por aqui e não falar mais de despedidas, porém, por mais que seja muito romântico dizer que tudo acabou por ali, sim, eu me despedi dele.
Futuramente, pouco depois de arrumar as malas, Patrick e eu ficamos naquela varanda, a sua varanda, e tivemos uma pequena conversa. Ele ainda estava tentando parecer tão alegre quanto sempre, ali na minha frente eu finalmente pude desvendar ao menos em parte, o que se passava com ele.
Então ele foi muito sincero comigo, sobre seus anseios e inseguranças, como um adolescente sem rumo, perguntou-me se aquela distância não me incomodaria e tudo mais... claro, não havia nenhuma malícia em suas palavras, quero dizer, eu não era um idiota, ele nunca perguntaria no sentido que eu desejava.
Então é claro que... menti.
Olhando diretamente nos seus olhos, fingindo um sorriso despreocupado tão ruim quanto o seu. Menti. Casual e doloroso.
Era pra ser um adeus tão rápido e simples como se pretendêssemos nos encontrar no dia seguinte, seria ótimo se fosse assim e eu já estava consideravelmente preparado para isso. Mesmo sabendo que ele podia ser muito mais idiota do que eu, na verdade, não esperava que... ele também estivesse mentindo.
Vendo-o perguntar se eu me importava que partisse, o rosto demarcado num choque espantado, pela primeira vez me fez sentir vontade de jogar tudo fora. Foi diferente de todas as outras vezes quando era eu que quem queria algo dele, dessa vez, era ele quem parecia esperar algo de mim. E cara, o meu silêncio quase pôs tudo a perder. Não sei dizer quanto tempo passei olhando pra ele sem dizer nada, mas foi o suficiente para nos encher de desconforto.
Felizmente, não tive coragem de dizer o que quer que estivesse em minha mente quando ele perguntou se eu tinha algo a dizer.
Nada. Nada do que eu poderia dizer parecia o suficiente e nada do que eu queria dizer podia ser dito.
O que me restou, foi um último estalo, uma fagulha de orgulho, me protegendo de incendiar por completo.
"Há um vinho na cabeceira da cama, leve com você para a viagem".
Mas não, não havia nenhuma calma naquela frase, só... Saliva seca na garganta.
Antes de atravessar o quarto, caminhar com aquelas pernas que naquele instante pareciam ter esquecido como sair do lugar, percebi como Patrick viu através de mim pela primeira vez, ou ao menos, fora a primeira vez que ele se dera conta. O vinho, o adeus, o sorriso entortado a força, quando ele viu que daquela vez nem ele mesmo podia seguir o papel escolhera, ficou pálido, ou ao menos duas vezes mais do que já era.
Antes de dar o último passo, quis poder tê-lo abraçado. Tão forte e duradouro, tão caloroso e imóvel... Mas só fiquei ali, falando da merda de um vinho, mentindo descaradamente, enxergando no outro um original inexistente; foram os olhos? As pernas bambas? As palavras gentis demais? Onde ele viu a fissura? Até hoje eu tento descobrir. Ele viu o meu sofrimento como se aquela criança nunca tivesse estado tão translúcido.
Patrick a verdade é que, ali estive a sua mercê, com uma única pergunta, você adentrou todas, absolutamente todas as frestas escondidas, percebendo que eu não era o único que não queria ficar sozinho, que nossos laços não eram predominantemente mentiras e que ao menos uma pequena fracção da minha voz podia ser ouvida, notando que você pensou em não ir por minha causa, pela primeira vez eu fiquei feliz por ser Jony Scaler e não quis ser qualquer outra pessoa.
Nós nos separamos e seguimos nossos caminhos, o seu sorriso, quase tão descrente quanto o meu, acenou calmamente, dizendo que daquela vez, nós mudaríamos. E bem, você estava certo.
Talvez, aquilo tenha sido verdadeiro demais para perdurar e por isso, nós não suportamos ter tanto do outro pesando nas nossas vidas, talvez, você tinha assim como eu, e enquanto afundava sua voz na minha memória, que tudo só iria fluir se nós nos permitíssemos correr um pouco, mas dessa vez, sem nos apoiarmos no ombro do outro. E ai, quem sabe, nós tivéssemos algo a dividir que superasse o silêncio.
Os nossos orgulhos se separaram e naquela noite, nunca te disse, mas depois de ver o seu trem partir, eu pintei. Pintei um rosto desconhecido, borrado, cinzento e triste, coloquei aquele seu sorriso, não imaginando-o em você, mas em mim.
Eu sabia Patrick, que você havia me roubado aquele sorriso. Colocando-o para fora e separando-o de você, eu tive certeza... que você iria me devolver um dia.
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