17. Destroy myself

O silêncio dentro do carro era quase insuportável. O som do motor parecia o único ruído naquele espaço fechado, além do leve chiado dos pneus no asfalto molhado. Eu mantinha meus olhos fixos na janela, observando as luzes da rua passarem como borrões, tentando acalmar o nó no meu estômago. Terry estava sentado à minha frente, mas não dizia uma palavra desde que eu entrei no carro. Apenas a presença dele era suficiente para me manter em alerta, como se qualquer movimento pudesse desencadear algo que eu não estava pronta para enfrentar.

Então, de repente, ele quebrou o silêncio.

— Eu estive observando. — A voz de Terry cortou o ar como uma lâmina. Não era agressiva, mas tinha um peso que me fez virar o olhar para ele, mesmo sem querer.

— Observando o quê? — Perguntei, minha voz baixa, quase hesitante.

— Você. — Ele cruzou as mãos no colo, seus olhos gelados fixos em mim. — Desde a última prova, algo mudou. Sua concentração não é a mesma, e não precisa ser um gênio para perceber que tem algo ou alguém distraindo você.

Meu coração apertou no peito, e minha mente voltou imediatamente para Kwon, para a briga, para o beijo... Mas eu permaneci calada, encarando-o sem expressão, embora por dentro estivesse uma bagunça.

— Isso não pode continuar. — Ele prosseguiu, firme. — Você sabe o que está em jogo aqui. O Sekai Taikai não é um jogo de apostas, Calista. É o ápice de tudo pelo que trabalhamos. E você... — Ele fez uma pausa, seus olhos se estreitando como se me desafiasse a negar. — Você não vai arruinar isso. Nem para você, nem para o restante da equipe.

Eu senti um nó na garganta, mas continuei encarando-o, tentando absorver o peso de suas palavras. Ele não estava completamente errado. Desde o começo daquela confusão com Kwon, minha mente parecia estar dividida, mas ouvir isso de Terry, em um tom tão direto e quase cruel, só serviu para intensificar minha frustração. A única coisa que ele se esqueceu de mencionar era o fato de que acima de tudo, ele almejava a própria glória, e ver seus antigos oponentes aos seus pés, como perdedores, e eu estava tão envolvida em seu drama do karatê quanto qualquer outro estudante, porque apesar de sua crueldade implacável, ele realmente era capaz de ver um potencial acima dos outros, em mim.

No entanto, não respondi nada. Qualquer coisa que dissesse parecia desnecessária ou perigosa naquele momento. E, de alguma forma, ele parecia satisfeito com meu silêncio. Ou talvez estivesse esperando que eu me defendesse, mas não o fiz.

Depois de mais alguns minutos dirigindo em completo silêncio, o carro finalmente parou. Olhei pela janela, tentando reconhecer onde estávamos, mas o lugar não parecia familiar. Era um espaço meio abandonado, as paredes desgastadas de uma antiga escola de karatê. Eu sentia cheiro de mofo e umidade no ar. O coração começou a bater mais rápido, agora tomado por uma ansiedade crescente.

Quando saímos do carro, vi uma figura já nos esperando. Sensei Wolf. Ele estava de braços cruzados na entrada do prédio, seu olhar duro fixo em mim. Algo no brilho calculista de seus olhos me fez encolher por dentro. Parecia um confontro direto, e o que viria certamente seria uma lição dolorosa carregada de palavras venenosas.

Terry saiu primeiro, sua postura rígida, e acenou brevemente para Wolf antes de se virar para mim.

— Vamos. — Disse ele, sua voz carregada de autoridade.

O medo no meu peito só aumentava, crescendo junto com a ansiedade. O que eles queriam comigo aqui? Por que trazer Sensei Wolf a esse cenário? Engoli em seco, mas minha mente já começava a antecipar o pior.

O cheiro da madeira velha e do suor impregnava o ar assim que entramos naquele espaço. Meus olhos captaram imediatamente o alvo suspenso no centro da sala e os pedaços de madeira ao lado, como se estivessem ali esperando para serem destruídos. Meu corpo estava tenso, e uma sensação pesada se instalava no fundo do meu peito. Algo estava errado, mais errado do que eu poderia imaginar.

Silver parou ao meu lado, sua expressão impassível como sempre.

— Você precisa de disciplina e foco, Calista. E se não tem força para encontrar isso por si mesma, vou te ajudar a encontrar. — Sua voz era afiada, cortando o ar como uma lâmina.

Quando ele gesticulou, Sensei Wolf prontificou-se e segurou o saco de pancadas, colando uma foto nele. Meu coração parou por um segundo quando reconheci o rosto. Era Kwon. Meu corpo congelou, e o ar parecia ter sido sugado dos meus pulmões.

— Está vendo isso? — Silver apontou para a foto com um sorriso frio. — Esse garoto está brincando com você. Manipulando você. E você, cega pelos seus sentimentos, não consegue enxergar o jogo maior. Tudo isso é parte do plano de Kreese para nos tirar do mapa. Você realmente acredita que ele não tem um papel nisso?

— Você não sabe de nada, Silver! — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia, carregada de frustração. — Eu posso tomar minhas próprias decisões, e elas não vão afetar meu desempenho, isso eu posso garantir.

— Não vai afetar seu desempenho? — Ele riu, um som vazio e cruel. — Você quase implorou por perdão agora mesmo. Está choramingando porque sabe que perdeu o foco. Você deixou sua fraqueza transparecer.

Meus olhos ardiam com lágrimas que eu me recusava a deixar cair. Eu queria gritar, mas tudo o que saiu foram palavras simples, que eu sequer sabia se eram verdades.

— Não é um jogo! Ele não está... Não está fazendo isso por Kreese.

A risada escárnia dele foi como um tapa, talvez ele soubesse mais do que eu que eu estava blefando, que só estava querendo acreditar que aquelas afirmações eram verdadeiras, mesmo sem ter essa certeza. Ele fez um gesto para Sensei Wolf, que pegou uma das tábuas grossas de madeira e a colocou em um suporte.

— Então prove. Prove que está no controle. — Ele apontou para a madeira. — Soque.

— O quê? — Olhei para ele, incrédula.

— Você me ouviu. Soque.

Meu corpo inteiro gritava para correr, mas eu sabia que fugir era impossível. Eu já vivi extremos durante o treinamento, suportando dores inimagináveis, mas isso, parecia pior do que qualquer treinamento. Sensei Wolf deu um passo à frente, o peso do olhar dele me esmagando. Eu respirei fundo e levei o punho até a madeira, ciente de que não teria escapatória. O primeiro soco foi um choque. A dor subiu pelo meu braço como uma corrente elétrica.

— Mais forte. — A voz de Silver cortou o ar como um chicote.

Eu hesitei, mas ele continuou.

— Esse é o rosto dele. Ele é seu inimigo. Ele está te enfraquecendo. Piedade é para fracos, e o Cobra Kai não terá piedade de você.

As palavras dele se enrolavam na minha mente, misturadas à dor que latejava nos meus dedos. Mais um soco. E outro. O impacto fazia meus ossos vibrarem. Cada golpe parecia arrancar algo de mim, algo que eu nem sabia que estava ali. Minha mão começou a arder, e quando olhei, vi sangue escorrendo lentamente pelos nós dos dedos.

— Isso é tudo que tem? — Silver gritou, a voz dele ecoando nas paredes. — Seja mais agressiva!

Raiva. Dor. Confusão. Tudo se misturava em um turbilhão dentro de mim. Eu cerrei os dentes e, com toda a força que me restava, golpeei a madeira uma última vez. O som do impacto foi alto, e uma rachadura se abriu na superfície. Meu braço inteiro latejava, e o mundo girava por um segundo enquanto eu caía de joelhos, ofegante.

Silver se agachou ao meu lado, seus olhos gélidos fixos nos meus.

— Companheirismo e compaixão são para fracos. Você acha que ele teve alguma compaixão por você? — Ele sussurrou, cruel e impassível. — Ele está te destruindo, Calista. E se você não lutar contra isso, será engolida viva.

As lágrimas finalmente escaparam, misturadas à dor física e emocional. Meu peito estava pesado, e as palavras dele eram um peso adicional que me puxava para baixo. Tudo em mim estava quebrado, e eu não sabia mais se queria lutar ou apenas desaparecer.

O silêncio que seguiu as palavras de Silver era sufocante, mas não era apenas isso que apertava meu peito. Cada músculo do meu corpo doía, minha mão sangrava, e minha mente parecia estar presa em uma batalha que eu não sabia como vencer. Eu encarei o chão, tentando juntar os pedaços de algo que fazia sentido, mas tudo o que eu sentia era raiva, de Silver, de Kwon, de mim mesma.

— Você está errado. — Minha voz saiu baixa, rouca, quase inaudível, mas carregada de uma firmeza que surpreendeu até a mim.

Silver inclinou a cabeça, como se esperasse que eu continuasse.

— Você está errado sobre ele. — Levantei o olhar, encarando os olhos dele, mesmo que parecesse queimar. — Kwon não é uma ameaça. Ele não está jogando comigo... Eu não o temo.

Silver soltou uma risada seca, balançando a cabeça como se eu fosse uma criança tola tentando argumentar.

— Então você acredita mesmo nisso? Acha que alguém como ele não usaria você como uma peça nesse tabuleiro? — Ele apontou para o saco de pancadas, onde a foto de Kwon ainda estava presa. — O que ele fez para ganhar sua confiança, Calista? Um beijo roubado? Palavras doces? É assim tão fácil manipular você?

Minha mandíbula se apertou, e senti as lágrimas ardendo nos meus olhos. Ele tinha as palavras certas para me atingirem com força.

— Eu não sou manipulável, Silver. — A raiva na minha voz era clara agora, cortando o ar pesado entre nós. — E você não sabe de nada.

— Não? — Ele se aproximou, a presença dele esmagadora. — Eu sei que você está distraída. Sei que, desde que ele entrou na sua vida, você perdeu o foco. Sei que, se continuar assim, vai falhar. Você não vê isso? Tudo o que ele faz é te enfraquecer.

— Talvez eu tenha me distraído, mas... — Minha voz falhou, a dor na minha mão ecoando como um lembrete da minha fraqueza. — Mas isso não significa que ele é uma mentira.

Silver cruzou os braços, o olhar afiado como uma lâmina.

— Você quer acreditar que ele é diferente, que ele se importa. Mas onde ele está agora, Calista? Ele não está aqui para você. Ele nunca estará. — A voz dele era cruel, mas havia uma verdade cortante nela que me fez vacilar.

As palavras ecoaram, e imagens do beijo na praia vieram à tona, misturadas com as lembranças de todas as vezes que ele tinha me irritado, confundido e deixado meu mundo de cabeça para baixo. Eu sentia raiva, dor, e acima de tudo, medo.

— Mesmo que você esteja certo... — Minha voz era um sussurro, mas carregada de emoção. — Isso não te dá o direito de me fazer duvidar de tudo. Você não entende, Silver. Não entende o que isso... O que ele significa.

Ele se agachou ao meu lado novamente, os olhos fixos nos meus, cheios de algo que quase parecia compaixão, mas distorcido.

— Eu entendo mais do que você imagina, Calista. — Ele apontou para a madeira rachada. — Mas, no final, sentimentos como os seus não são nada além de fraqueza. E fraqueza, no mundo que vivemos, é uma sentença de morte.

Minha respiração estava pesada, e por um momento, tudo parecia distante. As palavras dele batiam forte, mas eu ainda me recusava a acreditar que tudo o que aconteceu entre mim e Kwon fosse uma mentira. Ao mesmo tempo, o ressentimento crescia, sufocante, como uma erva daninha.

— Eu vou provar que você está errado. — Minha voz era firme, mas não consegui evitar que ela tremesse no final. — Sobre ele. Sobre mim. Sobre tudo.

Silver deu um passo para trás, observando-me com uma expressão quase satisfeita, como se minhas palavras fossem exatamente o que ele queria ouvir.

— Então prove. — Ele se virou, começando a caminhar para longe. — Mas lembre-se, Calista: compaixão é para fracos. E a fraqueza... Será sua ruína.

Eu fiquei ali, ajoelhada no chão, sentindo a madeira rachada sob minha mão ferida, enquanto um turbilhão de emoções me consumia. Raiva, dor, confusão... E uma determinação que crescia, ardendo como uma chama em meio à escuridão.

Silver parou à porta, como se tivesse algo mais a dizer, e, por um segundo, pensei que ele fosse simplesmente me deixar ali, sozinha com meus pensamentos e minha dor. Mas ele se virou lentamente, os olhos frios fixos em mim, como se quisesse atravessar cada barreira que eu ainda tentava erguer.

— Vou ser claro, Calista. — A voz dele cortou o ar, dura e sem margem para objeções. — Se você não resolver isso, eu mesmo vou resolver. Vou acabar com esse melodrama adolescente entre você e Kwon, de um jeito que vai garantir que nada, absolutamente nada, atrapalhe o Sekai Taikai.

Minha respiração ficou presa na garganta. Havia algo na forma como ele disse aquilo, tão casual e ao mesmo tempo tão ameaçador, que fez meu estômago revirar. Meu corpo ainda queimava de dor, os nós dos meus dedos latejando como se fossem explodir, mas nada disso parecia importar naquele momento. Eu me forcei a levantar, mesmo com as pernas trêmulas. Não podia deixar que ele visse o quanto suas palavras me afetavam, o quanto cada golpe verbal parecia atingir lugares que eu tentava desesperadamente proteger.

— Eu já disse que posso lidar com isso. — Minha voz soou mais firme do que eu esperava, mesmo que estivesse cheia de uma raiva que lutava para não transbordar. — Não preciso de você para resolver nada por mim.

Silver deu um sorriso que não chegou aos olhos, um sorriso carregado de escárnio e algo quase... Paternalista.

— Claro que precisa, Calista. — Ele cruzou os braços, inclinando-se levemente para mim. — Você ainda é uma menina, tentando navegar em um mundo que exige força e frieza. Kwon é uma fraqueza, e se você não eliminá-lo, eu farei isso por você.

Meu peito se apertou com uma mistura de raiva e medo. A ideia de Silver se intrometendo ainda mais, tomando decisões que não eram dele, era insuportável.

— Você não vai fazer nada. — Eu dei um passo à frente, ignorando a dor que pulsava em cada movimento. — Porque você não entende. Ele não é o problema. Eu vou mostrar para você, para todo mundo, que eu posso superar isso sem destruir nada ou ninguém. Apenas com minha própria determinação, e vou trazer a glória que você tanto almeja, humilhando cada um dos seus antigos rivais, mas justamente, no tatame.

Silver me olhou por alguns segundos, avaliando minhas palavras, como se estivesse decidindo se valia a pena discutir.

— Amanhã veremos. — Ele deu de ombros, como se minha determinação fosse um detalhe insignificante. — Mas lembre-se, seu desempenho vai dizer tudo o que preciso saber. E se você falhar, Calista, não haverá segundas chances.

Ele saiu então, deixando-me sozinha no espaço abafado e silencioso. O som dos passos dele ecoou até desaparecer completamente, e eu finalmente soltei um suspiro trêmulo.

Olhei para minha mão. O sangue manchava meus dedos, e a dor era gritante, mas ainda assim, eu estava grata por não ter quebrado nada. O sensei Wolf não tinha deixado de me observar de perto o tempo todo, e percebi que talvez fosse isso o que ele queria me ensinar , que a dor não importava. Mesmo assim, um calafrio percorreu minha espinha ao pensar no dia seguinte. A competição seria um inferno, ainda mais com minha mão ferida, e eu sabia que precisaria de cada grama de força e foco para superar isso.

Eu saí lentamente do dojô abandonado, o vento frio da noite me atingindo como um choque. Meus pensamentos estavam presos em um loop constante, voltando para Kwon, para as palavras de Silver, para o saco de pancadas com o rosto dele estampado.

— Isso não é real. — Murmurei para mim mesma, tentando expulsar a confusão do meu peito. Mas a verdade era que eu não sabia mais o que era real.

A dor na minha mão parecia menos assustadora do que a bagunça que estava na minha cabeça. E, enquanto caminhava de volta para o hotel, uma coisa era clara, o amanhã seria decisivo. Não apenas para a competição, mas para descobrir quem eu realmente era, e o que Kwon significava para mim.

Enquanto eu caminhava pelas ruas desertas em direção ao hotel, o vento gelado cortava minha pele. Minha cabeça latejava, e a dor nos meus dedos só parecia aumentar a cada passo. A blusa do pijama que eu ainda usava estava manchada com o sangue que escorria da minha mão. Peguei a barra da blusa e tentei limpá-la, mas tudo que consegui foi espalhar ainda mais o sangue, deixando um rastro quase simbólico do caos que reinava na minha mente.

Quando finalmente alcancei o corredor do meu quarto, o silêncio era interrompido apenas pelo som abafado do meu andar apressado. Mas, antes que eu pudesse alcançar a porta, uma voz familiar me chamou.

— Calista?

Virei-me para encontrar Kenny. Ele estava segurando uma garrafa de água em cada mão e me olhava com os olhos semicerrados, como se tentasse entender o que estava vendo.

— Eu só estava indo pegar mais água na recepção. — Ele deu um passo na minha direção, mas seu olhar desceu rapidamente para minha mão ferida. — O que aconteceu com a sua mão?

Eu instintivamente a escondi atrás do corpo, dando um passo para trás.

— Nada. Eu tô bem. — Minha voz saiu mais firme do que eu esperava, mas Kenny não pareceu convencido.

Ele se aproximou de novo, com uma expressão preocupada, como se estampasse sua posição de irmão protetivo, mesmo sendo mais novo.

— Não parece "nada", Calista.  — Disse firmemente, até suavizar o olhar, direcionando-o até mim— Irmãos do karatê não mentem um para o outro, lembra?

Revirei os olhos, dando uma risadinha por sua menção honrosa ao nosso antigo apelido, tentando afastar a dor crescente e a sensação de vulnerabilidade que suas palavras provocaram. Kenny era o último a quem eu queria explicar o que tinha acontecido, porque sabia que ele não conseguiria compreender muitas coisas, por serem duras demais para processar.

— Eu disse que tô bem, Kenny. Não precisa se preocupar. — Tentei passar por ele, mas ele bloqueou meu caminho, cruzando os braços.

— Isso tem a ver com o Silver, não tem?

As palavras dele me atingiram como um soco. Meus olhos arregalaram, e eu congelei no lugar.

— O que te faz pensar isso? — Perguntei, tentando soar indiferente, mas minha voz tremulou levemente.

Ele suspirou, deixando os ombros caírem.

— Porque eu já estive no seu lugar. Não desse jeito... — Ele gesticulou na direção da minha mão, a preocupação ainda clara em seu olhar. — Mas eu conheço o Silver. Ele sabe como manipular a gente, como virar nossos próprios pensamentos contra nós.

Minha garganta se apertou. Kenny não tinha ideia do peso de suas palavras. Ele sabia o suficiente para entender, mas não tudo. Mesmo assim, aquilo me desarmou.

— Você não sabe o que está dizendo. — Minha voz era baixa, quase um sussurro, enquanto desviava o olhar.

Ele deu um passo mais próximo, falando com um tom que misturava firmeza e compreensão.

— Eu sei que ele pode fazer a gente acreditar que é tudo pela equipe, que a dor, o sacrifício, é o que nos torna fortes. Mas tem um limite, Calista. E, seja lá o que ele te fez passar, você não precisa enfrentar isso sozinha.

Havia algo nas palavras dele que me fez tremer, mas não era só por causa do frio.

— Não é tão simples assim. — Eu finalmente o encarei, minha voz quebrando um pouco. — Você não entende.

Kenny apenas balançou a cabeça, os olhos mais sérios do que eu já tinha visto.

— Talvez eu não entenda tudo, mas eu sei disso, você é mais forte do que ele quer que você acredite. E, se precisar de ajuda para lembrar disso, eu tô aqui.

Por um momento, fiquei ali, encarando Kenny como se ele fosse a âncora que eu não sabia que precisava. A sensação de estar sendo consumida pelo peso das expectativas, da dor e da confusão, parecia um pouco menos esmagadora.

— Obrigada, Kenny. — Eu murmurei, tentando não demonstrar o quanto aquelas palavras realmente significavam.

Ele assentiu, dando um pequeno sorriso antes de se afastar um pouco.

— Só... Cuida dessa mão, tá? — Ele apontou para minha mão ferida.

Eu acenei, mas sabia que o verdadeiro estrago não estava nos meus dedos sangrando. Era muito mais profundo, e muito mais difícil de consertar.

Quando finalmente entrei no quarto, fechei a porta atrás de mim com um cuidado exagerado. Era como se o menor ruído pudesse romper o frágil fio que segurava meus pensamentos no lugar. O ar parecia mais pesado ali dentro, um contraste com o frio cortante das ruas. Minha mão latejava de dor, o sangue já começava a endurecer nos cortes, formando manchas escuras e secas.

Olhei para Zara, esparramada na cama ao lado, o rosto sereno em meio ao sono pesado. Graças a Deus por isso. Eu não tinha forças para mais perguntas, nem para explicar o inexplicável.

Caminhei até o banheiro em passos silenciosos, tentando não acordá-la. Acendi a luz fraca e me encarei no espelho. O reflexo que me encarava parecia mais um estranho. Meu cabelo estava desgrenhado, a barra do pijama ainda marcada pelo sangue seco, e meu rosto trazia uma mistura de cansaço e algo que eu não queria admitir, dor emocional.

Lavei as mãos com cuidado, rangendo os dentes quando a água tocou os cortes. Peguei uma toalha pequena e rasguei-a em tiras, improvisando uma bandagem para minha mão. Cada movimento fazia os músculos do meu braço reclamarem, mas eu me forcei a continuar. Não era só o ferimento que eu precisava tratar.

Enquanto envolvia os dedos com a tira de pano, um redemoinho de pensamentos girava em minha mente. A noite inteira parecia um borrão. Silver me forçando a enfrentar meus sentimentos de maneira brutal, Kenny aparecendo como um lembrete de que eu não estava completamente sozinha, e Kwon... Ah, Kwon.

Eu balancei a cabeça com força, como se isso fosse suficiente para apagar a lembrança de seus olhos intensos, da maneira como suas palavras ainda ecoavam. O beijo. Não importava o quanto eu tentasse, não conseguia decidir se queria esquecê-lo ou revivê-lo. O pior de tudo era a diferença gritante entre aquilo e qualquer coisa que eu tivesse sentido antes. Diferente de Axel, murmurei para mim mesma, como se admitir isso fosse um passo para a loucura.

Suspirei fundo, prendendo a bandagem improvisada com um nó frouxo. Não importava o que tinha acontecido, não importava o que eu sentia ou pensava. Amanhã era a próxima rodada. E eu tinha que ser impecavelmente perfeita.

Encostei-me na parede fria do banheiro, encarando o teto por alguns segundos. As palavras de Silver ainda queimavam na minha mente: "Compaixão é para os fracos." Era fácil para ele dizer isso. Ele não estava ali, no campo de batalha emocional que eu tinha que atravessar. Mas eu tinha que provar para ele, para mim mesma, que eu era mais forte do que ele pensava. Que, mesmo com tudo fora de controle, eu poderia colocar a minha vida de volta nos trilhos. Eu controlava minhas decisões, minhas ações, minha força.

Olhei para o espelho mais uma vez, endireitando os ombros. Havia uma chama nos meus olhos, um brilho que nem a dor nem a confusão poderiam apagar.

— Você vai vencer. — Murmure para mim mesma, a voz baixa, mas carregada de determinação.

Apaguei a luz do banheiro e voltei para a cama com passos leves. Deitei-me de costas, encarando o teto, tentando acalmar a mente. Mas, mesmo enquanto o sono finalmente me envolvia, o mundo ao meu redor parecia inclinado, como se algo maior estivesse prestes a acontecer. Algo que mudaria tudo.

Deitei-me na cama, sentindo o colchão firme sob meu corpo, mas ao mesmo tempo desconfortável, como se minha mente não conseguisse relaxar. Minha mão ainda doía, mas eu fiz o possível para ignorá-la. O silêncio do quarto parecia um eco das minhas próprias preocupações. Eu precisava descansar, mas havia algo que me impedia de simplesmente desligar.

Foi então que vi o brilho da tela do meu celular, pousado sobre a cabeceira da cama. O visor acendeu com uma notificação, e, sem querer, meu olhar foi atraído para ele. O nome de Kwon estava lá, piscando de volta para mim, com a etiqueta que eu mesma havia colocado: "gênio descabelado". Uma piada interna, mas que naqueles momentos parecia uma ironia cruel. Como se ele fosse um problema da minha vida que eu não soubesse como resolver, mas que ainda assim me consumia.

Respirei fundo, tentando afastar os pensamentos que surgiram como uma tempestade na minha mente. O que ele queria agora? O que mais ele poderia dizer depois de tudo o que aconteceu? Eu sabia que não podia responder, não agora. Não quando eu precisava estar focada em uma única coisa, a competição. O Sekai Taikai era a única coisa que importava amanhã e nos próximos dias até a vitória. Eu não podia me dar ao luxo de me perder novamente nas palavras e ações dele.

Olhei para as mensagens e senti uma onda de frustração e cansaço. As palavras dele, o beijo, tudo aquilo parecia ter me arrastado para um redemoinho emocional. Eu não sabia se me odiava mais por me deixar levar, ou se odiava o fato de ainda querer entender tudo o que estava acontecendo entre nós.

"Mas não agora", pensei.

Balancei a cabeça com firmeza, como se tentasse expulsar esses sentimentos de dentro de mim. Eu precisava me concentrar, não importava o quão tentador fosse olhar para aquelas mensagens. Elas não eram mais importantes que o meu objetivo.

— Foco, Calista — Murmurei para mim mesma, tentando me convencer.

Deslizei a tela para o lado, ignorando o aviso de mensagem não lida. Travei o celular e o coloquei de volta na mesa de cabeceira, longe o suficiente para não me tentar. Fechei os olhos, tentando relaxar o corpo, mas o peso da ansiedade ainda estava ali. Mesmo assim, fui forte o suficiente para forçar minha mente a se acalmar. O Sekai Taikai estava à minha porta, e eu não iria deixar nada nem ninguém me desviar do meu caminho.

Respirei mais uma vez, mais profundamente, e finalmente deixei que o sono me envolvesse, sem saber o que o amanhã traria.


Obra autoral ©

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