Capítulo 1 - Mil e uma utilidades

      

Exatamente igual. A tensão que permeava minha mente tinha o mesmo aspecto de todas as outras vezes. Eu podia enxergar o futuro ou, pelo menos, ele não saía da minha cabeça. Os flashes de tudo dando errado eram incessantes. Via claramente o tropeço no tapete, a maçaneta quebrando, minha língua enroscando as palavras, fazendo com que perdessem completamente o sentido real. Depois, a face impiedosa do meu possível contratante me expulsando sem cerimônias. Clarividência? Ah, não. Tudo isso se devia pura e unicamente ao meu transtorno de ansiedade.

— Dorothy Beatrice McGregor! — aquela voz estupidamente arrogante me chamou.

Levantei-me da poltrona cor de abóbora, com a bolsa em mãos. Todas as outras moças me encaravam como se fosse um alienígena. Não sei o porquê, já que todas estavam ali com o mesmo propósito.

Empurrei a porta devagar, e o que me esperava era uma sala fria, com um sofá no canto, duas cadeiras modernas e uma mesa de metal. Atrás dela estava o tão temido diretor Jimmy Andrew.

"Lembre-se do que a tia Page disse, calma, foco, e o encare dentro dos olhos", minha cabeça raciocinava sem parar, ainda assim, não chegando a lugar algum.

— Sente-se — falou ele, ao tempo em que anotava algo em uma ficha.

Nunca o havia visto, apenas ouvi falar sobre suas exigências como patrão e como era ignorante e estúpido. Sua aparência me lembrava a figura do Papai Noel. Tinha uma barba grisalha enorme e um cabelo também bem cheio. Usava óculos de grau arredondados e uma camisa listrada.

— Obrigada, senhor Andrew. — Obedeci.

— Então, o que a traz aqui?

"Sério? Ele sabe muito bem o que eu vim fazer, será que é um teste?"

— É, eu sou candidata à vaga de auxiliar administrativo — respondi friamente, como minha tia ensinara.

— Já trabalhou com isso antes?

— Sim, senhor. Na Peterson e Carter alimentos.

— Tem filhos? — inquiriu, enquanto assinalava algumas lacunas em uma folha branca.

— Não, senhor!

— Casada?

— Graças a Deus, não — falei sem pensar, como em todas as vezes que me faziam essa pergunta.

Assim que percebi o que tinha dito, arregalei os olhos e meu coração acelerou. Porém, para meu alívio, o diretor soltou uma gargalhada.

— Pelo visto é do tipo solitária, certo? — perguntou em um tom mais descontraído.

— Não é bem isso, eu só não encontrei ninguém que me fizesse sentir que valia a pena eu abandonar minha própria solidão.

— Que poético! Gostei de você — o senhor Andrew respondeu.

— Obrigada — falei aliviada, certamente era um ponto a mais.

— Então... — Ele bateu duas vezes com a ponta da caneta sobre a mesa.

"Ai, Deus, será que é agora a parte em que ele diz que estou contratada?"

— Sinto muito, não vai ficar com o emprego!

"Quê?!"

— Quê?! — Deixei que as palavras escapassem por impulso. — Digo, nossa conversa ia tão bem, pensei que...

— Você é ótima, menina. Mas eu preciso de uma funcionária e não de uma amiga.

— Mas o meu currículo está aí! — argumentei alterada.

— Sim, mas entenda, eu preciso de alguém com muita experiência. Você até tem, mas não é o bastante — replicou.

— Senhor eu fui funcionária do mês por seis vezes consecutivas! Não acha competência o suficiente?

— Não! — respondeu seco. — E se continuar com essa prepotência, não vai arrumar emprego em lugar algum.

— Tudo bem. — Pressionei os lábios, meus dedos dos pés quase se fundiam de tanto aguentar a tensão. — Um bom dia, Senhor Andrew. — Me levantei e caminhei até a porta. — Muito obrigada pela oportunidade.

— Pode chamar a próx...

Bati a porta antes que ele pudesse terminar a frase, sei que pode não ter sido a melhor das atitudes, no entanto, a raiva que nutria era tão grande que não poderia ter feito outra coisa.

— O papai Noel está chamando a próxima idiota! — falei sem dar chance de resposta, andei depressa até o elevador e, sozinha dentro do mesmo, imaginava o que eu teria feito de errado. — Como aquele idiota me enche de esperanças e depois me dá um pé na bunda desses?

Deixei o prédio, enfurecida. Ele não era obrigado a me dar o emprego, de forma alguma, mas poderia pelo menos dizer o que queria desde o começo, antes de me encher de alegria por pensar que estava agradando.

Caminhando pela calçada, olhei em meu relógio, era dez e meia da manhã. As pessoas andavam apressadas no calor da cidade, e eu, quase morta, me inquietava dentro daquela roupa social infeliz. Fios de cabelo se desprendiam do meu coque e grudavam em meu pescoço. O sapato de bico fino machucava meus pés, o couro sintético da bolsa que carregava não suportou a temperatura e começou a rachar, soltando seus minúsculos pedaços pelo chão e pelo tecido da minha roupa.

Senti vontade de chorar, de gritar, queria chegar logo em casa, mas ainda tinha que pegar dois ônibus e andar a pé por quinhentos metros.

Sim, eu era uma ferrada.

Depois de toda a batalha interdimensional, corrida espacial e desafio de sobrevivência, cheguei enfim em minha residência, ou melhor, à casa da tia Page.

Meu emprego antigo era ótimo, larguei tudo para ir até a cidade. Queria movimento, aventura, trabalhar em uma empresa no meio de tudo, no entanto, o que eu ganhei foi aquele inferno na terra.

Abri o portão, passei pelo cachorro no quintal e fui até a garagem cumprimentar o tio Sheppard, como era de costume. Ele, como sempre, consertava um carro — caindo aos pedaços — de algum de seus velhos amigos, acompanhado de seu assistente: Tyler.

— Tio — falei.

Ele, prontamente, impulsionou o corpo com um salto rápido e saiu de dentro do carro.

— Oi, minha filha. Não me abraça que eu tô suj...

O interrompi dando um pulo súbito em seu pescoço.

— Sabe que eu não ligo pra essas frescuras — respondi.

De repente, vi uma silhueta sair da parte de baixo do automóvel, estava sujo como meu tio, mas era diferente. Tyler tinha trinta e dois anos, cabelos cortados com um toque moderno, uma barba desenhada, olhos claros e um sorriso charmoso.

— Shepp, eu acho que o problema é isso aqui — falou, sem perceber minha presença, erguendo uma peça que nem em mil anos eu saberia dizer qual era. — Ah, oi, Dorothy — cumprimentou-me quando levantou o olhar.

— Oi. — Sorri sem graça, estava acabada. — Tio, a tia Page já fez o almoço? Estou morta de fome. — Cortei o contato visual com o Moço Bonito, vamos chamá-lo assim às vezes, não se espante.

— Ainda não, deve estar quase.

— Vou lá ver se ela precisa de ajuda. — Dei mais um beijo na bochecha suada de meu tio e entrei.

Meus tios não tiveram filhos, então eu era uma companhia que eles gostavam de ter por lá, apesar de ser um estorvo. Eu sabia que precisava arrumar um trabalho o quanto antes.

Assim que cheguei à cozinha, larguei a bolsa sobre a mesa e me sentei. Coloquei a cabeça entre os braços jogados e bufei.

— Pode falar. — Tia Page puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado. — Como foi lá?

— Um inferno! Aquele homem é um imbecil.

— Você falou tudo que eu disse? — ela perguntou ao tempo em que fitava de longe o fogo da segunda boca do fogão, a que sempre entupia.

— Sim, inclusive eu pensei que estava indo bem, ele disse que gostou de mim, nós rimos... Daí, do nada, o senhor Andrew falou que não iria me contratar e mais um monte de coisas que prefiro nem comentar.

— Calma. — Ela pôs a mão em meu braço. — Na hora certa vai aparecer um emprego, enquanto não acontece, sabe muito bem que pode contar com a gente. Agora vai tomar um banho para almoçar, eu vou avisar os rapazes. — Se levantou e cochichou em meu ouvido: — O bonitão tá aí.

Eu sorri, ela sempre conseguia me fazer sentir melhor.

— Eu vi, passei na garagem pra falar com o tio Shepp.

— Por isso que está com essa bochecha suja de graxa. — Pegou um pano de prato e foi até a pia.

Eu passei a palma da mão sobre o rosto para limpar o borrão e percebi que tinha falado daquele jeito com Tyler.

"Ótimo, Dorothy, uma desgraça atrás da outra, você tem tanta sorte", pensei.

Liguei o chuveiro, deixei a temperatura fria e me deliciei com cada uma das gotas, que, a princípio, machucavam a epiderme, mas depois passaram a abraçar a pele, que carregava algumas queimaduras de sol. Em cinco minutos eu saí, me sequei, vesti shorts jeans, uma blusa branca larga e penteei os cabelos molhados, a sensação de liberdade foi incrível.

Ajudei Page com os pratos e talheres e, em seguida, me sentei. Ouvi risadas masculinas, me aprumei e esperei que chegassem.

— Agora sim, hein, Dorothy? Está parecendo gente! — meu tio brincou.

— Ei!!! — Tentei parecer irritada, mas não foi possível. Sempre achei muita graça das coisas que tio Shepp dizia, e aquela não foi diferente.

— Lavaram essas mãos? — falou Page em tom de ordem.

— Sim, senhora! — Tyler prestou continência como um soldado.

Durante o almoço, conversamos sobre coisas cotidianas. Eu contei sobre o fracasso da entrevista, e nada de anormal aconteceu. Aquela sensação de derrota constante já estava virando rotina.

Depois ajudei Page com a louça e, enquanto nós arrumávamos as coisas, os dois continuavam a fuxicar no carro "apodrecido". Estava secando uma jarra azul de vidro quando ouvi um urro, parecia que alguém tinha se machucado. Em seguida, vi Tyler surgir na varanda. Estava com a mão pingando sangue e a face contorcida de dor.

Larguei o objeto sobre a mesa e corri até ele.

— O que aconteceu? — perguntei preocupada.

— Me cortei com alguma coisa — respondeu, enquanto segurava o braço para o lado e cerrava os dentes.

— Achei! — Meu tio apareceu com algo afiado nas mãos. — Foi isso aqui que te machucou, estava no meio da fiação. — Observou o corte. — Mas isso aí está feio demais.

— Tio! Não assusta ele — falei, permanecia sentada no muro, ao lado do Moço Bonito. — É só lavar, e eu tenho um kit de primeiros socorros, dou um jeito nisso em dois tempos — disse com uma das mãos em seu ombro.

— Eu vou pegar! — Tia Page saiu apressada, ela sabia onde ficava tudo em meu quarto.

— Vem, vamos jogar uma água nisso. Tio Shepp, volta para o carro, pode fazer suas coisas.

— Mas eu...

— Anda, não vai querer ver o que vou fazer — retruquei, ainda olhando para o sangue que jorrava.

— Espera, você não vai... — Tyler ameaçou falar, mas eu interrompi.

— Sh! E sim, eu vou dar uns pontos nisso.

— É, eu vou sair mesmo antes que sobre pra mim. — Sheppard caminhou de volta para a garagem.

Eu acompanhei o rapaz até dentro de casa, onde lavei sua mão na pia do banheiro e depois o levei para a sala. Tia Page esperava com a maleta em mãos.

— Menina, você vai... vai é...

— Vou, tia. Eu vou dar pontos.

— Acho que tenho que varrer o chão da cozinha. Licença — ela disse e saiu.

— Todos aqui têm medo de ver você me costurando, devo me preocupar? — Tyler brincou.

— Não, eles só não confiam muito no meu curso de enfermagem. — Ri.

— Nossa, não sabia que era enfermeira também — falou, contraindo a face pela dor que o álcool provocou no ferimento.

— Técnica de enfermagem, na verdade. Mil e uma utilidades — respondi concentrada no que estava fazendo.

O silêncio reinou e aquilo fazia Tyler se mexer em cada movimento que provocava em sua mão.

— Pronto?! — perguntei no momento em que encaixava a linha na agulha.

— Não sei se... AH!

— Calma, já vai acabar! — Tentei acalmá-lo. — Só vai doer um pouquinho. Vamos falar sobre alguma coisa para te distrair. Me conta, você tem filhos?

— Não, nem mulher tenho, quanto mais filho.

— Ótimo! — falei de cabeça baixa.

— Quê?

— O ponto, ficou perfeito. — Sorri, as bochechas forçadas quase cobrindo os olhos, e em seguida continuei.

— Minha vez de perguntar.

— Não sabia que era um jogo. — Enfiei a agulha de uma vez em sua pele, o que o fez gemer.

— É. Nem eu, mas já que perguntou. — Ele parou de falar e respirou, parecia sentir muita dor. — Acho que posso também.

— Pode falar.

— Você tem quantos anos?

— Você não lembra? — O encarei erguendo o olhar dessa vez, com o cabelo molhado atrás da orelha.

— Deveria?

Senti-me constrangida.

— Na-não. — Balancei a cabeça ao sentir que o gaguejar poderia se intensificar. — É que meu tio sempre comenta tudo sobre a minha vida, pensei que se lembrasse da vez em que ele disse que ia me dar um volante quebrado de presente, pelos meus...

— Vinte e quatro anos — o rapaz completou. — Perdão, eu tinha esquecido.

— Nada, você não é obrigado a recordar coisas que nem são sobre a sua vida — comentei e voltei a dar os pontos.

Cerca de cinco minutos depois, terminei.

— Prontinho, agora eu vou pôr um curativo e está pronto pra outra.

— Já acabou, Bea? — Minha tia apareceu do corredor.

— Os pontos, já. Agora falta o curativo.

— Sua sobrinha é uma ótima enfermeira, senhora Page — Tyler falou com um brilho nos olhos que me fez estagnar por alguns segundos.

— É, é sim. Eu vou ali, acho que o Shepp está me chamando. — Ela disfarçou e saiu para nos deixar sozinhos outra vez.

— Vai arder um pouquinho, mas é para melhorar mais rápido — disse enquanto pingava algumas gotas do líquido escuro sobre sua pele.

— Por que sua tia te chamou de Bea?

— É meu segundo nome, Beatrice. Ela é a única que me chama assim. Infelizmente minha mãe assistia muito O mágico de Oz, me deu o nome composto mais incomum que poderia — falei, colando o esparadrapo por cima do algodão.

— É bonito, Dorothy Beatrice... Willians, como seus tios?

— Não. — Sorri, ainda com sua mão apoiada nas minhas. — McGregor. — Fiquei estática, observando seus lindos olhos e o charme do tic nervoso que ele tinha de pressionar os lábios de dez em dez segundos.

— Pronto?! — perguntou.

— Sim, claro! É só cuidar disso direito que nada vai acontecer.

— Detesto ir ao hospital — comentou olhando para baixo.

— Não precisa ir. Eu posso fazer seus curativos. Não estou trabalhando mesmo — respondi com insatisfação.

— Sério?

— Claro, é só aparecer aqui. — Comecei a juntar os materiais que usei. — Bom, agora eu preciso descansar porque mais tarde tenho que ajudar a tia Page com os doces do aniversário da filha do vizinho. É só amanhã, mas vamos começar hoje pra dar tempo.

— Você vai?

— Se tudo der certo, sim. Por quê? Vai ser o palhaço? — caçoei enquanto me levantava.

— Poderia, se me emprestar as suas roupas — brincou, e eu ri do que disse, um pouco abobada ainda com todo aquele charme só para mim, na sala. — Mas, agora, falando sério, o seu vizinho é meu amigo de infância, me chamou para o aniversário da pequena. Só que eu não estava muito a fim de ir, já que geralmente não converso com ninguém.

— Ah, vai sim. Eu sou uma ótima companhia em festas infantis. Graduada em roubo de doces e escapar antes do "parabéns".

Tyler sorriu.

— Então, encontro com você lá, já que agora não posso mais mexer no carro.

— Isso, nada de esforço para não arrebentar os pontos. — Sorri com a maleta nas mãos.

O Moço Bonito se levantou e, um pouco impressionado com o tamanho da atadura, ainda observava a mão cortada.

— Até mais, Tyler.

— Muito obrigado, Bea.

Anuí e o observei sair, ainda com aquele sorriso imbecil estampado na cara. Pela primeira vez eu notei algo diferente em seus olhos. Só não sabia que a mudança era em mim, e não nele.



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