40. the burden of memories

PETER ACORDOU GRAÇAS ao toque de seu celular. O barulhinho estridente do telefone o arrancou de um sono inquieto; ele deu um pulo na poltrona na qual adormecera em uma posição nada confortável. Os olhos pesavam e ardiam, o pescoço doía e, embora estivesse dormindo até poucos segundos atrás, ele sentia-se terrivelmente cansado.

O herói olhou em volta, demorando um instante para se situar. Não foi preciso muito, porém, para que as lembranças de tudo que havia acontecido voltassem à tona e ele percebesse onde estava: a enfermaria da Torre dos Vingadores. E, ao lado da cadeira em que ele se esparramava, estava Savannah.

Ela repousava, desacordada, em uma cama. Peter havia feito o possível para deixá-la confortável, como afofar os travesseiros e cobri-la com mais mantas, e agora ela carregava uma expressão serena no rosto — se não fossem pelos acessos com remédios conectados ao seu braço, ou pelo eletrocardiograma monitorando cada um de seus batimentos cardíacos, quase daria para esquecer que ela se machucara na noite anterior.

O peito do Homem-Aranha doía sempre que ele se lembrava daquilo. Ele recordava-se vividamente do pânico que sentira ao ver a amiga desmaiar e se dar conta de que ela havia sido baleada. Recordava-se de como sua voz tremera ao ligar para o sr. Stark, esforçando-se para falar que Savannah estava ferida e não podia ir ao hospital. De alguma forma, Tony entendera o que ele havia dito e, quando Peter chegara à Torre, havia à sua espera uma pequena equipe médica liderada por Helen Cho. Aparentemente, ela era uma amiga do sr. Stark, que a chamara aproveitando que a doutora estava de passagem na cidade.

Peter recordava-se também de carregar Savy até a enfermaria do prédio; ele não quisera deixar o lado da garota, mas acabara sendo enxotado quarto afora para que o time médico pudesse trabalhar. Ele havia ficado encarando a porta fechada, ainda segurando a mochila da amiga, o uniforme encharcado de sangue, tão atônito e desamparado que mal percebera Tony falando com ele.

— Garoto, me escuta — a voz do homem soara distante aos seus ouvidos. Ele o segurara pelo ombro e o virara em sua direção para chamar sua atenção. — Savannah está em boas mãos e vai ficar bem, mas agora eu preciso que você me explique o que diabos aconteceu.

Após alguns segundos de um silêncio atormentado, o Aranha havia tomado fôlego e começado a contar sobre a luta. A partir daí, as coisas se tornavam um borrão: o rapaz havia ficado esperando do lado de fora da enfermaria, a ansiedade o corroendo, por sabe-se lá quanto tempo. Em algum ponto disso, Tony providenciara roupas limpas e água, apesar de o vigilante só ter tocado nelas depois de Helen Cho aparecer para relatar o fim dos procedimentos médicos.

Segundo ela, Savannah ficaria bem, e não havia como descrever o alívio que Peter sentira ao ouvir aquelas palavras. A menina levara um tiro de raspão nas costelas, o que, por si só, era algo muito doloroso, mas teria uma recuperação mais rápida do que a de um tiro direto. Levariam algumas semanas, mas ela melhoraria com descanso e reposição.

O problema havia sido a perda de sangue e os choques externos no ferimento — como a pancada que o cara da pistola acertara na Major quando ela se atirara às costas dele, Peter pensou. Além disso, alguns exames revelaram que a heroína havia sofrido uma concussão em algum momento da luta; Parker não sabia quando aquilo havia acontecido exatamente (embora suspeitasse que fosse culpa da arma de aura azul), mas lembrava que a vigilante parecera desorientada durante o confronto e que ficara segurando a própria cabeça como se doesse.

De modo geral, a dor, a concussão e a perda de sangue haviam culminado em seu desmaio. Savannah precisaria de muito repouso e reposições, especialmente naquelas primeiras horas, mas ficaria bem.

Apesar de a dra. Cho ter tentado examinar Peter em busca de ferimentos também, ele somente descartara a ajuda com um agradecimento antes de se juntar à amiga em seu leito. Ele se acomodara na poltrona mais próxima e ali estava desde então. Graças aos remédios que haviam aplicado na heroína, não saberiam quando ela acordaria, mas o Aranha aguardaria ao lado dela independentemente de quanto tempo levasse.

O herói havia aproveitado aquele momento para absorver todas as informações que recebera naquela noite. De vez em quando, algum membro da equipe médica, ou então Tony, surgia para checar como os dois estavam — mas, na maior parte do tempo, o adolescente havia ficado sozinho com os seus próprios pensamentos, repassando cada pista que havia sido jogada na cara dele sobre Savannah ser a Major. E sentindo-se incrivelmente estúpido por não ter percebido antes.

Quanto mais pensava naquilo, mais ele se dava conta do quanto havia sido cego: ele sempre soube que a jovem sabia lutar, que ela era ágil e habilidosa. Sem contar que ela tinha acesso a um monte de informações graças a Kyle; ele duvidava que o detetive compartilhasse as investigações com a irmã mais nova, mas, conhecendo a amiga, ele sabia que aquilo não era impedimento algum para ela.

Peter pensou em todas as vezes em que as provas estiveram bem debaixo de seu nariz. Todos os machucados misteriosos que apareciam nela, ou o motivo verdadeiro de ela não gostar do Homem-Aranha, o porquê de ela ter estado tão convencida inicialmente de que ele não acreditava na Major.

E quando ela lutara no restaurante contra a Gangue dos Falsos Vingadores? Peter se deixara acreditar que fora apenas um misto de adrenalina e coragem, mas agora estava mais claro do que nunca que fora muito mais que aquilo.

O pior de tudo? Ele havia, de fato, suspeitado dela naquele momento, mas descartara todas as suas suposições de imediato porque achara loucura a ideia de sua amiga ser uma vigilante. Ele confiava tanto em Savannah que não pensara em questioná-la por um segundo sequer. Especialmente porque, no fim de tudo, a amiga ainda fingira estar chocada com a situação — uma jogada muito inteligente, pois sua reação fora o fator determinante para que o rapaz descartasse as ideias que haviam começado a criar forma em sua mente.

O mais engraçado era que Peter estivera desesperado para protegê-la na ocasião, sem nem imaginar que proteção era a última coisa da qual Savannah precisava no momento.

Deus, como ele havia sido cego.

Ele não estava bravo por ela ter mentido ou escondido aquilo dele, claro que não. Afinal, ele não fizera a mesma coisa? O menino apenas estava chocado com a descoberta e, óbvio, consigo mesmo por não ter reparado em nada antes.

Aquilo tudo — as últimas horas, todos os seus pensamentos, as suas percepções — voltou para Peter como uma onda, informação demais abatendo-se sobre o adolescente em poucos segundos. Ele, que nem ao menos lembrava-se de ter pegado no sono, ainda estava desorientado por ter acordado de repente; foram precisos alguns segundos para que ele se estabelecesse por completo antes de pegar o celular, que ainda tocava.

Ao olhar para o visor, o Homem-Aranha descobriu que já eram dez e meia da manhã daquela segunda-feira, e que era Lia quem ligava. Era difícil acreditar que pouco mais de vinte e quatro horas tinham se passado desde a festa de aniversário dela, não com tudo que já havia acontecido desde então.

— Alô? — Ele precisou reprimir um bocejo ao atender.

Oi, Peter. Tudo bem por aí? — A amiga respondeu. Havia certa aflição por trás de seu cumprimento, e ela mal esperou o rapaz resmungar uma resposta qualquer antes de prosseguir. — Escute, queria perguntar se você tem notícias da Savy. Estou um pouco preocupada porque... — Amelia hesitou por alguns segundos. — Soube que teve um assalto na rota que ela geralmente pega para casa. Não sei se você viu, mas teve a maior briga. Enfim.

Parker não fazia ideia do que os jornais estavam falando sobre o confronto, mas tinha certeza de que fora divulgado o envolvimento do Homem-Aranha e da Major nele — e tinha certeza também de que Lia sabia sobre o alter ego de Savannah, e por isso soava tão preocupada.

Como os dois faltaram hoje na aula, achei que pudessem estar juntos — ela prosseguiu —, ou que você soubesse de alguma coisa, pelo menos.

Peter lançou uma olhadela para a Major, um pouco hesitante. Como ele poderia começar a explicar o estado da amiga deles — Bem, mas não tão bem quanto se poderia esperar? Bem para quem quase morreu ontem à noite? — sem que Bennett surtasse? Por fim, não querendo assustá-la, o menino disse:

— Sim, estou com ela — ele foi vago e distante. — Ela está bem, só está descansando agora.

O suspiro de alívio de Amelia foi audível do outro lado da linha, e ela já começava a fazer outra pergunta quando Peter ouviu Savannah soltou um resmungo ininteligível. Aquilo desviou a sua atenção para ela, que agora franzia de leve o semblante e se remexia um pouco na cama. Ao notar que ela estava prestes a acordar, o herói se apressou em dizer:

— Tenho que ir agora, Lia, nos falamos depois. Eu aviso que você ligou.

Ele desligou sem esperar por uma resposta, bem quando as pálpebras de Savy se abriram vagarosamente. Ela piscou, sonolenta; seus olhos varreram os arredores e, no instante em que pousaram no eletrocardiograma ao lado de sua cama, arregalaram-se. O som da máquina disparou junto aos batimentos cardíacos da garota, e ela encolheu-se diante do barulho estridente, como se pudesse escapar dele.

Sem perder tempo, Peter aproximou-se de Savannah. Ela parecia petrificada, seu corpo inteiro estava tensionado e o peito movia-se com irregularidade.

— Ei, ei — o rapaz falou com suavidade ao alcançá-la. — Você está bem, Savy, está tudo bem.

A garota finalmente voltou-se para Peter, cujo coração apertou ao reconhecer pânico na expressão dela. Mesmo que não compreendesse a reação dela muito bem — talvez fosse apenas o choque? —, ele tentou ajudar como podia. Ele buscou a mão de Savannah e entrelaçou os seus dedos, afagando-a enquanto murmurava palavras tranquilizadoras.

O som do eletrocardiograma acabou se acalmando à medida que o coração da garota recuperava o seu ritmo. Ela, com os olhou presos no rosto do menino, tentou normalizar a respiração, e, quando enfim falou, sua voz soou rouca:

— Onde estamos?

— Na Torre dos Vingadores.

Savy fechou os olhos com força. Ela levou alguns segundos para menear a cabeça e tentar se sentar; Peter a amparou conforme ela agarrava-se às laterais da cama e impulsionava-se para cima, os dentes trincados com o esforço. Em seguida, sem aviso prévio, ela arrancou os fios que conectavam os eletrodos do eletrocardiograma ao seu tórax, puxando-os pela manga de sua bata hospitalar.

O movimento brusco pareceu afetar, de alguma forma, afetar seus ferimentos — um grito de dor escapou dos lábios de Savannah, mas acabou sendo encoberto pelo som agudo e contínuo que a máquina, sem ter batimentos os quais monitorar, começou a emitir. Tanto a Major quanto o Homem-Aranha retesaram-se diante do barulho angustiante, e Peter apressou-se em desligar o aparelho.

— O que você pensa que está fazendo? — Ele perguntou ao ver a amiga voltando a se mexer, dessa vez para remover os cateteres em seu braço.

— Tenho que sair daqui. — Foi a resposta que ela deu.

Mas os dedos trêmulos dela atrapalharem-se com os acessos. Os braços da menina estavam repletos de hematomas arroxeados, uma consequência de todas as vezes que fora arremessada pela aura azul, e Peter segurou-os com delicadeza para impedi-la de finalizar a tarefa.

— Savannah, pare — o vigilante começou. — Você vai acabar se machucando.

— Você deveria escutar o seu namorado — disse uma voz vinda da porta. Os adolescentes viraram-se para a entrada ao mesmo tempo somente para depararem-se com a doutora Helen Cho, a qual já se aproximava dos dois. Nenhum deles tinha energia o suficiente para corrigir o que ela dissera. — Ainda tenho que examiná-la, e não seria bom para ninguém você se acidentar novamente.

— Eu estou bem — Savannah resmungou.

A mentira descarada arrancou uma risada da mulher. Em qualquer outra situação, Parker estaria totalmente animado em conhecer a dra. Cho — ele era um fã do trabalho dela, óbvio —, mas agora ele estava preocupado demais para sequer pensar naquilo. Ele também não fazia ideia se a geneticista havia ficado a noite inteira na Torre dos Vingadores ou se havia voltado logo pela manhã, mas o que importava era que ela estava ali para tratar Savy, por mais que ela e sua teimosia infinita não quisessem.

— Claro que está — Helen olhou para Peter. — Talvez seja melhor você esperar lá fora até eu terminar.

Não era uma sugestão, ele sabia. Mesmo que não quisesse deixar a amiga, o rapaz acabou precisando fazê-lo; logo, ele estava mais uma vez aguardando do lado de fora da enfermaria, onde aproveitou para espantar os últimos resquícios de sono de seu corpo. Honestamente, ele sentia-se um caco, completamente preocupado e cansado. O que eu não daria por um café agora...

Passado um bom tempo, a dra. Cho saiu da enfermaria. Mais uma vez, ela avisou que Savannah estava bem, mas que deveria evitar fazer muitas atividades físicas até que os pontos fossem retirados daqui a algumas semanas. Ela havia dado uma sorte enorme, segundo a doutora, e não deveria desperdiçá-la.

— Eu falei tudo isso para a sua namorada, claro, mas tenho a sensação de que ela não vai me escutar muito — Helen disse com um suspiro de quem já conhecia aquele tipo de comportamento. — Diga a ela para tomar não ser imprudente até estar melhor. Talvez, se vier de você, ela tome mais cuidado.

Honestamente, Peter não tinha muita certeza daquilo. A teimosia de Savannah podia ser infinita, ele bem sabia. Ainda assim, ele agradeceu e garantiu que falaria com ela. Com isso, não demorou para a dra. Cho afastar-se a fim de ir falar com Tony, deixando o Homem-Aranha só de novo.

Depois de um instante, o rapaz aproximou-se da porta da enfermaria e bateu nela.

— Pode entrar.

Quando Peter o fez, a primeira coisa em que ele reparou foi que Savannah não estava mais com a camisola hospitalar. O suéter e a calça que ela trajara no dia anterior encontravam-se destruídos — mas, por sorte, a mochila da garota (manchada pelo sangue apenas na parte exterior, de modo que o seu conteúdo permaneceu intocado) possuía outras peças, as quais ela usava agora.

Eram as mesmas roupas que Savannah vestira no aniversário de Lia, o herói reparou. As mangas da blusa, bem como sua gola alta, cobriam os machucados que subiam pelos braços e nuca da Major, mas a saia deixava à mostra as bandagens em sua perna, onde cacos de vidro uma vez haviam estado.

— Aquela era Helen Cho — a heroína observou de repente. — Você pegou o autógrafo dela?

A jovem, em pé ao lado da cama em que estivera deitada previamente, voltou-se para Peter. Ela esfregava as mãos, remexendo os dedos em um claro sinal de ansiedade. Havia manchas escuras debaixo de seus olhos e um pequeno curativo na testa, praticamente escondido pelos cabelos. Mas ela ainda abriu um sorriso singelo ao ouvir a resposta dele.

— Ainda não tive a chance — ele tentou não soar muito surpreso por ela lembrar o quanto ele admirava a cientista. — Achei que pudesse ser um pouco inapropriado para o momento.

— Bem, você deveria tentar agora.

Os adolescentes encararam-se por alguns segundos, um silêncio ensurdecedor preenchendo o espaço entre eles. Havia tanto para se falar, tanto para se ouvir, que nenhum dos dois sequer sabia por onde começar. Uma torrente de pensamentos e sentimentos rugia dentro de Parker, mas tudo que ele fez foi dar alguns passos em direção à amiga.

— Como você está se sentindo?

Ela deu de ombros, um gesto casual que não combinava com a preocupação presente em sua expressão enquanto encurtava a distância restante entre os dois.  

— Já estive melhor — Savannah revelou. Seus olhos perscrutaram o rosto de Peter e ela ergueu a mão, os dedos tocando com delicadeza a têmpora dele. O menino surpreendeu-se ao sentir a região arder; ele não tinha reparado que estava machucado. — E você? — Ela hesitou. — Está... doendo muito?

O herói mirou-a, sem acreditar no que ouvia. Ela estava preocupada com ele?

— Savannah — ele disse em um fio de voz —, você poderia ter morrido.

A menina afastou-se dele com um passo para trás, ao mesmo tempo em que dava um aceno de mão para descartar o que ele dizia.

— Eu nem me machuquei tanto assim.

— O quê...? — O Aranha soltou uma risada incrédula. — Você levou um tiro e teve uma concussão! Tem ideia do quão grave isso é?

Savannah comprimiu os lábios com teimosia.

— Eu ainda estou em pé, não estou? — Ela gesticulou para si mesma, mas o movimento fez com que uma careta de dor repuxasse suas feições, contrariando assim o sentido de suas próprias palavras.

Peter balançou a cabeça com exasperação, incapaz de acreditar no que ouvia. Cenas da noite anterior piscaram em sua mente: Savannah lutando, Savannah desmaiando, Savannah sangrando em seus braços. Ela havia se machucado, e muito. Por que se recusava a enxergar aquilo?

— Não trate isso como se não fosse nada.

A Major passou as mãos pelo rosto com cansaço, e, em seguida, sentou-se na beirada da cama com um suspiro.

— Se eu não fizer isso, vou acabar tendo um surto, Peter — murmurou. — Eu mal acordei, e já é coisa demais para assimilar... Os ferimentos. O ambiente. — Ela ergueu os olhos para ele. — O Homem-Aranha.

O vigilante compreendia o que ela queria dizer. Era, de fato, muita informação; ele mesmo quase enlouquecera durante a noite repassando tudo que havia acontecido até aquele momento. Não devia estar sendo fácil para ela, mas, ainda assim, não era certo agir como se nada tivesse acontecido, era?

Ele apoiou-se ao lado dela na maca. A amiga segurava a cabeça entre as mãos, os olhos fechados por um momento, os pés balançando sem parar. 

— Savannah, no que estava pensando? — Peter a olhou com preocupação genuína. — Você estava sem equipamentos. Sem armas, sem colete à prova de balas. Entrar lá para lutar foi loucura, você deve saber disso.

— É claro que eu sei — ela abriu os olhos e os voltou para o menino. — Mas o que eu deveria ter feito? Deixar que a loja fosse assaltada?

— Não, é claro que não. Eu só... não sei — ele interrompeu-se, frustrado. — Eu não sei o que dizer, Savy. Entendo por que você fez o que fez, é lógico que sim. Eu teria feito o mesmo. — Ele passou as mãos pelos cabelos. — Mas, por outro lado, a única coisa em minha cabeça agora é o quanto você se feriu. Então... eu simplesmente não faço ideia de como agir.

Os jovens se observaram por mais alguns segundos antes que a vigilante desviasse os olhos para a pequena janela do outro lado do cômodo.

— Esse tipo de coisa acontece. — Ela sussurrou.

Peter jogou a cabeça para trás com exasperação por um momento.

— Você não pode estar falando sério — ele soltou uma risada áspera. — Você não pode achar normal se machucar dessa forma. Entenda a gravidade da situação por um segundo, Savannah.

A Major ergueu-se da cama com uma expressão tão desconcertada quanto a do Homem-Aranha. Ela começou a andar em círculos, as mãos abrindo e fechando do lado do corpo.

— Eu entendo, Peter. Claro que entendo! — Ela soltou um bufo. — Você acha que eu queria que isso acontecesse? Acha que eu queria estar aqui, machucada e dolorida? — Ela balançou a cabeça, mais para si mesma do que para ele. — Mas fiz o que tive que fazer. Eu sei que foi estupidez ir lutar sem equipamentos. Sei que eu poderia ter morrido. Sei que quase morri. — A garota voltou-se para ele, um misto de angústia e obstinação estampado em sua face. — A questão é que eu não pude deixar aquilo de lado, Peter. Tinha um civil lá dentro. O que teria acontecido se eu simplesmente tivesse dado as costas? — A voz dela falhou. — Eu não posso fazer isso. Não posso. Não quando algo terrível poderia ter acontecido, não quando...

As palavras pareceram morrer em seus lábios, e Parker reparou em como a mão dela roçou o próprio abdômen brevemente, como se ela estivesse se segurando para não tocar, não reconhecer, a cicatriz presente ali. A cicatriz que ela conseguira no acidente de carro de três anos atrás, aquele que matara o seu pai. O vigilante, por um momento, não soube também o que dizer; ele apenas foi capaz de mirar a amiga respirar fundo ao fechar bem os olhos.

— Eu entendo perfeitamente as consequências dos meus atos. Melhor do que gostaria. — Ela disse ao tornar a abri-los. Seu fôlego estava entrecortado. — E, honestamente, se tiver que lidar com elas, prefiro fazê-lo tendo ajudado as pessoas do que sabendo que deixei algum mal acontecer.

— Eu sei. Eu sei, Savannah. — Peter também se levantou da cama. — Mas tome cuidado. Só... pense mais no que pode acontecer com você. Por que, no fim, o que isso acabará te custando? 

O rapaz sabia que estava sendo um hipócrita, mais do que jamais havia sido antes. Afinal, ele não fazia a mesma coisa? Ele não se arriscava, independentemente da situação? Não conseguia machucados, e ainda assim seguia em frente? Mas era mais fácil falar do que fazer, no fim das contas, e ele não estava pensando em todas as coisas que haviam acontecido a ele enquanto patrulhava; não, ele apenas conseguia pensar no pânico gelado que o invadira ao notar que Savy fora baleada. 

— Se eu não fizer nada, a culpa será minha. — A voz dela embargou. — Se eu ignorar, se eu não ajudar, vou ser tão responsável quanto aqueles criminosos. E não existe sensação pior que essa. — Ela balançou a cabeça mais uma vez, agora com mais frenesi. — Não vou passar por isso de novo. Não vou falhar de novo.

O coração de Peter comprimiu com a dor na voz dela, na face dela.

— Do que você está falando? — ele murmurou.

A expressão de Savannah estava tomada por aflição, quando como se teme ter falado demais. Ela ficou em silêncio por um longo, longo tempo. Tanto tempo que o garoto achou que ela não tornaria a falar. Ele não a pressionaria a fazê-lo — estava claro que era um assunto delicado, e ele até já começava a imaginar sobre o que se tratava —, e estava prestes a mudar o rumo da conversa quando ela, por fim, ela sussurrou:

— A culpa foi minha que ele morreu.

Peter não precisava perguntar sobre quem ela falava. Ele sabia que era sobre Dan Evans.

— Eu insisti em sair naquela noite, sabia? — Com os olhos presos na parede, e a mente presa em um lugar ainda mais distante, ela prosseguiu. — Eu queria comer nessa lanchonete que tinha a algumas quadras de casa, então implorei para que fôssemos até lá buscar os lanches — ela soltou uma risada áspera e sem emoção alguma, completamente ácida. — E o que aconteceu na volta? Aquele carro nos acertou.

Savannah, com o olhar brilhante graças às lágrimas que se acumulavam ali, por fim voltou-se para o amigo.

— Se eu não tivesse pedido para sairmos, nada daquilo teria acontecido. — Sua voz estava rouca. — Por um capricho meu, ele morreu, Peter. Eu falhei com o meu pai. — Ela piscou, e as lágrimas caíram por suas bochechas. — E jamais vou permitir que eu falhe de novo, com ninguém. Jamais. 

Havia pesar em suas feições, mas determinação também. O Homem-Aranha, infelizmente, conhecia aquela sensação bem até demais; as palavras da garota o fizeram pensar em tio Ben, de uma forma que ele não pensava fazia tempo. As lembranças arderam em sua mente, como se marcadas a ferro quente para nunca mais serem esquecidas, mas ele tentou afastá-las tanto quanto podia enquanto se aproximava mais de Savy.

— Não foi sua culpa — ele disse, parando a alguns passos dela. — Você não tinha como saber.

Ele sabia que, para quem se deixava corroer pela culpa, aquelas palavras não adiantavam nada, mesmo que fossem a verdade. Ele sabia que não diminuíram a tristeza de Savannah, que respirava pesadamente e tinha o rosto marcado por lágrimas incessantes.

— É, não tinha. Mas, ainda assim, não torna as coisas diferentes, torna? — Ela balançou a cabeça com um suspiro. — Sabe, por muito tempo, eu fiquei pensando no "e se". E se eu não tivesse sugerido que saíssemos? E se tivéssemos ido para outro lugar? E se, e se, e se. — Seus olhos se ergueram. — E se, naquela noite, alguém tivesse impedido o roubo do carro que bateu no do meu pai?

Peter estava em silêncio, sem saber o que falar. Ele queria dizer que a entendia. Que já havia feito o mesmo inúmeras vezes. Contudo, nenhuma palavra saía. Em vez disso, havia apenas uma dor crescente no peito: dor por vê-la daquela forma, dor por não poder ajudar, dor pelas próprias lembranças que teimavam a ressurgir.

— Então, percebi que eu posso ser esse alguém — Savannah prosseguiu. Ela passou a mão pelo rosto na tentativa de secá-lo, embora lágrimas ainda se derramassem. — Nada do que eu fizer poderá trazer meu pai de volta, mas posso impedir que outros passem pelo mesmo que eu. Posso impedir que mais filhas percam os pais, que mais pessoas se sintam culpadas por coisas além de seu controle. — Sua voz havia adquirido firmeza àquela altura. — Posso ajudar as pessoas, protegê-las. Não importa se eu estiver em desvantagem. Não importa se for estupidez ou perigoso. Eu posso e eu vou.

A heroína, com os olhos grudados nos do garoto, tomava fôlegos rápidos.

— E eu sei que você me entende — ela disse com a mesma intensidade das palavras anteriores. — Eu sei que é por isso que você é o Homem-Aranha: para proteger quem não é capaz de proteger a si mesmo. — Seus lábios tremeram. — É quem nós somos. Então... não me peça para parar.

— Nem sonharia em pedir isso, Savy. Você sabe que não — Peter tentou não se ofender por ela achar que era aquilo que ele desejava. — Não quero que você pare. O que você faz... O que nós fazemos... — ele fechou as pálpebras por um breve momento, tentando buscando as palavras certas. — É ótimo, mas é arriscado, e eu me preocupo, tudo bem? Eu sei do que você é capaz, e confio plenamente nas suas habilidades. Só estou pedindo para tomar cuidado.

Ele deu mais alguns passos para frente, diminuindo o restante da distância que havia entre os dois. Cara a cara com Savannah, ele segurou com delicadeza o rosto dela entre as mãos, limpando suas lágrimas restantes com os dedos. Eles ficaram daquela maneira por um tempo, somente se encarando. A garota ainda estava trêmula, e ele via em sua expressão o quanto ela estava se esforçando para se acalmar. Mas era difícil depois de tudo que ela havia revelado sobre seu pai, o dia do acidente e a culpa que sentia. Não foi surpresa, ainda que tenha doído um pouquinho, quando Savannah afastou-se dele e falou, abatida:

— Acho melhor eu ir para casa agora.

Antes que Peter pudesse responder qualquer coisa, ou pelo menos oferecer-se para acompanhá-la, uma voz veio da porta da enfermaria:

— Happy pode levar você.

Tony estava parado à entrada do cômodo; o rapaz não sabia o quanto ele ouvira da conversa dos dois, mas sentiu as bochechas esquentarem conforme o homem adentrava o cômodo, um saquinho de M&M em mãos e sobrancelhas arqueadas para os adolescentes — entretanto, tudo que ele disse ao prosseguir foi:

— Quem adivinharia que a mesma Savannah de quem Peter não para de falar é Savannah Evans, que, coincidentemente, é a Major — ele despejou alguns M&Ms na mão, jogou-os na boca e deu de ombros. — Bem, eu adivinhei. Menos essa última parte, quer dizer. Você realmente me surpreendeu com isso.

A garota, ainda fungando um pouco, comprimiu os lábios em um sorriso fraco.

— Oi, sr. Stark.

O Homem de Ferro por fim parou em frente a eles.

— Pelo jeito você andou ocupada, garota.

Savannah soltou um riso nervoso, ao passo que Peter piscava, confuso e surpreso, e alternava o olhar entre a amiga e o mentor.

— Vocês... vocês se conhecem? — Ele perguntou lentamente.

— Ela é a afilhada do meu melhor amigo, então era de se esperar que já havíamos nos visto algumas vezes. Mundo pequeno, não é? — Tony abriu um sorriso, então ofereceu chocolate para eles. — Querem?

Os jovens negaram silenciosamente com a cabeça, Peter ainda chocado por saber que Savy e o sr. Stark eram conhecidos. Claro, considerando o vínculo que ambos tinham com James Rhodes, ele devia ter imaginado aquilo, mas nenhum dos dois havia mencionado aquilo uma única vez. Se bem que, toda vez que ele citava Savannah, Tony agia como se soubesse de algo que o rapaz não sabia; com certeza já deduzindo que se tratava da afilhada do Máquina de Combate, e achando a coincidência muito engraçada.

Ao seu lado, a Major respirou fundo antes de começar:

— Sr. Stark, você falou sobre — ela pigarreou e gesticulou para o espaço ao redor — isso para o tio Rhodey?

— Depende. Está se referindo à parte de você ser uma vigilante ou à de ter levado um tiro? — Savannah empalideceu diante das palavras, sem dúvidas com medo de ter sido delatada, o que arrancou uma risada de Tony. — Não disse nada para ele, garota. — Ele fez uma expressão pensativa, ao passo que a menina expirava com alívio. — E, para ser honesto, ainda não decidi se vou. Mas acho que essa é uma conversa para quando você estiver mais recuperada, não é?

A adolescente abriu a boca com uma expressão teimosa, parecendo querer argumentar. No fim, talvez por temer iniciar uma discussão que resultaria em seu segredo revelado a Rhodes, ela deixou o assunto de lado e recomeçou:

— Bem... acho que já estou indo, então — ela juntou as mãos. — Agradeço a ajuda, sr. Stark, mas acho que prefiro ir de metrô hoje.

O Homem de Ferro franziu o cenho, confuso. Peter, por outro lado, imediatamente compreendeu do que aquilo se tratava: uma vez, Savannah lhe contara que, nos momentos em que as lembranças do acidente que sofrera estavam muito frescas em sua mente, ela não conseguia entrar em carros. Depois da morte de seu pai, ela até mesmo passara quase um ano inteiro sem entrar em um automóvel — embora aquele não fosse mais o caso hoje em dia, as coisas que a menina havia revelado fazia apenas alguns minutos deviam ter trazido aquele trauma à tona, de modo que ela estava nervosa demais para aceitar a carona.

— Tem certeza? — Tony, que não tinha conhecimento de nada daquilo, perguntou. — Você ainda não está recuperada, e é menos demorado de carr...

— Não! — disparou. Em seguida, ela pigarreou. — Quer dizer, não precisa, obrigada.

Parecendo ver que havia algo por trás daquilo, sr. Stark meneou a cabeça, sem fazer nenhum questionamento a respeito da decisão dela. Em seguida, ele perguntou se ela queria que alguém a acompanhasse, e até se ofereceu para pagar a passagem até o Queens, mas a Major recusou as propostas também, explicando que tinha dinheiro consigo. Ela não precisou dizer nada sobre querer ficar sozinha; aquilo já estava estampado em sua face.

Enquanto agradecia a gentileza de Tony, Savy pegou a bolsa que havia deixado em cima da cama e a jogou por cima do ombro.

— Não precisa se preocupar comigo, sério mesmo. Eu vou ficar bem — ela tentou abrir um sorriso, e os cantos de seus lábios tremeram.

— Certo — Tony falou, olhando de esguelha para Peter. Este somente deu de ombros, pois sabia que, quando a amiga tomava uma decisão, não havia nada naquele mundo que a fizesse mudar de ideia. Além disso, por mais preocupado que estivesse, ele não desejava insistir algo que ela não queria. — Vou com você até o térreo, pelo menos. Rhodes me assassinaria se soubesse que eu a deixei sozinha por aí, e eu sou jovem demais para morrer.

Savannah conseguiu sorrir daquela vez antes de assentir.

— Obrigada — ela disse, e seus olhos pousaram no Homem-Aranha por um momento. — Aos dois. Por toda a ajuda, quero dizer.

O rapaz assentiu vagamente; ele não confiava em si mesmo para dar uma resposta melhor do que aquela, ou corria o risco de começar a dizer tudo que ainda não tinha dito. Havia tanto que ele gostaria de dizer à Savannah, mas, principalmente, ele gostaria de dizer que ela não estava sozinha, pois ele a entendia. Entendia todos aqueles pensamentos, aquelas angústias, a necessidade de ajudar os outros.

Mas ele não fez nada disso.

O menino reconhecia que a amiga queria ficar sozinha agora. Como ela mesma dissera antes, havia muito o que absorver ainda, e ela não conseguiria fazê-lo se o herói despejasse todos os seus pensamentos nela. Ele tivera uma noite inteira para entender tudo que havia acontecido, mas Savannah estava acordada fazia pouco mais de meia hora. Ela precisava de um tempo para si, especialmente depois de ter dido tudo aquilo.

Assim, ele somente observou a vigilante lhe dar as costas e se afastar, acompanhada por sr. Stark. Ela hesitou ao chegar à saída do cômodo, e, graças ao vidro espelhado da porta, Peter pôde vê-la olhá-lo por um breve momento.

Em seguida, Savannah e Tony deixaram a enfermaria.

Uma hora e meia depois, Savannah estava em frente a sua casa. Por um momento, ela somente encarou a porta de entrada, aproveitando para apoiar-se na viga de sustentação da varanda. Suas pernas machucadas queimavam depois da caminhada que fizera e seu corpo dolorido pulsava — uma parte sua se arrependia de não ter aceitado a proposta de Tony Stark e deixar que Happy Hogan a levasse para casa, embora ela soubesse muito bem que não seria capaz de entrar em um carro naquele dia.

A mente da garota era uma confusão de pensamentos. Ela havia tentado organizá-los no metrô durante o longo trajeto de Manhattan até Queens, mas aquilo apenas adiantara para fazê-la cair no choro silenciosamente. Seus olhos ainda estavam vermelhos e ardiam, mas pelo menos ela podia fingir que era por causa das lentes de contato com as quais passara a noite inteira — a primeira coisa que ela fizera após ser examinada por Helen Cho naquela manhã fora tirá-las, já que elas a estavam incomodando — para se sentir menos patética.

A verdade era que Savannah não conseguia parar de pensar em seu pai e no que dissera sobre o acidente. Desde que acordara, aquela era quase que a única coisa em sua cabeça; no instante em que abrira os olhos e notara o ambiente hospitalar ao seu redor, notara o barulho do eletrocardiograma, fora como se tivesse treze anos novamente e estivesse de volta ao hospital, recém-saída de uma colisão de veículos que matou seu pai e a deixou com uma cicatriz permanente. Ela quase havia esperado encontrar a mãe do lado da cama, aos prantos e com uma notícia devastadora para dar. 

Era por isso que a heroína não gostava de hospitais. Ela não tinha problemas em ir visitar pessoas lá, ou até mesmo fazer exames de rotina, mas ser uma paciente de verdade? Ter que deitar em uma maca, escutar os batimentos do próprio coração, receber medicamentos na veia? Era demais para ela. Savannah não aguentava, e exatamente aquilo havia acontecido naquela manhã. Ela se sentira sufocada, desorientada — soubera que precisava sair daquela enfermaria o quanto antes ou acabaria tendo algum tipo de surto.

Em qualquer outra ocasião, Savannah teria amado ir para a Torre dos Vingadores. Teria amado conversar mais com Tony Stark. Teria amado ficar ao lado de Peter, falar com ele sobre os seus alter egos. Mas não naquele dia, não com os seus pensamentos e as emoções a mil.

Meu Deus, Peter. A menina fechou os olhos por alguns segundos. Como se não bastasse aquela confusão de lembranças correndo por sua mente, ainda havia o fato de que o seu amigo era o Homem-Aranha e de que ela havia levado a porra de um tiro para absorver. Ela sentia-se zonza só de pensar em tudo aquilo; era coisa demais para sua cabeça em tão pouco tempo.

Ela ainda não conseguia acreditar direito em tudo que acontecera. Fora tudo tão rápido e confuso: descobrir quem estava por trás da máscara do Aranha, ser lançada para fora da loja, recomeçar a briga e ser atingida por uma bala. Ela se recordava da dor lancinante que havia sentido, mas também se recordava de ter pensado que não poderia parar de lutar, não quando Peter estava em perigo. Ela sabia que somente a adrenalina que estivera correndo por suas veias naquele momento a havia impedido de sentir a dor completa e desmaiar ali mesmo, somente a adrenalina lhe dera forças o suficiente para jogar-se em cima do homem que atacava o seu ex-quase-parceiro.

A Major estivera atordoada por causa do que reconhecia agora como uma concussão, porém, se houvera uma coisa clara em sua mente, era que deveria ajudar Peter. Um pânico gelado, maior que toda a sua dor e desorientação, instalara-se em seu âmago ao ver o amigo em apuros, e ela agira instintivamente.

Savannah suspirou. Ela ainda queria muito conversar com ele sobre tudo que havia acontecido, mas reconhecia que agora não era o melhor momento para aquilo. Ela ainda precisava se organizar e se estabilizar sozinha, por maior que fosse a vontade de estar ao lado dele. Droga, ela havia ficado tão desesperada para fugir de suas lembranças angustiantes que nem sequer agradecera apropriadamente o rapaz por ter salvo a sua vida. Envergonhada com sua falta de tato, ela decidiu que essa seria a primeira coisa que faria assim que o encontrasse pessoalmente de novo. Parecia estranho apenas mandar uma mensagem dizendo "Oi, obrigada por não me deixar morrer. Nos falamos melhor quando eu estiver mais sã, beijos" para depois sumir.

Balançando a cabeça para si mesma, a heroína por fim adentrou sua casa. No exato instante em que batia a porta atrás de si, ela avistou Kyle descer a escada com alguns papéis em mãos. Já era o horário de almoço dele, mas Savannah não imaginava que ele estaria em casa. Ela simplesmente congelou em seu lugar, alarmada, e rezou para que o irmão não reparasse em seu estado deplorável.

— Savy? — ele ficou surpreso ao vê-la. — O que faz aqui? Não devia estar na escola?

Não fui para a escola hoje, ela quis dizer, pois levei um tiro ontem à noite. Acordei hospitalizada na Torre dos Vingadores. Não consigo parar de pensar em papai.

— Estou com cólica — foi a mentira que escapou de seus lábios conforme ela seguia para a cozinha. — A enfermaria me liberou mais cedo.

Kyle anuiu, acreditando com facilidade na mentira — por um mísero instante, Savannah desejou que não o fizesse, ainda que soubesse que ele jamais poderia descobrir sobre quem ela era e o que havia acontecido.

A verdade era, simplesmente, que a garota sentia falta da época em que eles contavam as coisas um para o outro. Ela não fazia ideia de quando as coisas tinham mudado, mas, de repente, o trabalho era a vida dele e ela tinha se tornado uma vigilante. No fim do dia, Savy sabia tanto da vida do irmão quanto ele sabia da dela.

A menina não sabia quando fora a última vez em que os dois haviam tido uma conversa de verdade. Não quando eles discutiam sobre em quem podiam confiar, não quando tentavam fingir que ela não tivera terrores noturnos, não quando ela bisbilhotava sobre casos dele. Apenas uma conversa normal em um dia normal, uma na qual eles podiam se comunicar apropriadamente.

Ela queria falar com ele e revelar tudo. Queria falar sobre o pai deles e sobre acordar na Torre dos Vingadores, mas sabia que nunca poderia fazer aquilo. Jamais poderia contar ao irmão sobre ser a Major, não sem desencadear uma briga astronômica.

Além do mais, Kyle parecia estranhamente contente enquanto enfiava os papéis que carregava em uma pasta, e ela não teve coragem de arruinar nada daquilo.

— Se não estava se sentindo bem essa manhã, poderia ter ficado em casa — ele observou. — Nem te ouvi sair hoje mais cedo.

Então, o detetive não fazia ideia de que ela não havia passado a noite em casa. Melhor assim, já que a menina não teria que arranjar uma desculpa para onde estava. 

— Achei melhor deixar você dormir — ela não o olhava ao falar. Em vez disso, ela abria o freezer em busca de qualquer coisa que pudesse usar como uma compressa. Lembrando-se da última vez em que falara com o irmão e lembrando-se de como ele soara na ligação ao anunciar que não poderia ir encontrá-la, ela prosseguiu. — Aliás, está tudo bem com o Theo? Você parecia estranho ontem no telefone.

— Sim, hm... Ele está bem. Só precisava de um amigo — Ela ouviu Kyle pigarrear atrás dela. — Ele terminou o noivado com a Megan.

Savannah, piscando com surpresa, espiou por cima do ombro.

— O quê? Por quê?

O detetive deu de ombros, e agora era ele quem evitava encará-la. 

— Ele me disse que quase morrer o fez colocar as coisas em perspectiva, e ele percebeu que não era aquilo que queria — por fim, Kyle ergueu o olhar para a heroína e continuou, sem dar a ela a chance de dizer qualquer coisa. — Preciso sair agora. Só vim pegar algumas coisas aqui e preciso voltar antes que meu horário de almoço acabe.

Savannah assentiu enquanto se voltava para a geladeira, seu rosto recebido pelo ar congelante que emanava do refrigerador. 

— Aliás, não sei que horas vou chegar hoje. Theo deve receber alta do hospital mais tarde e precisa que alguém o leve para casa. Megan já não é mais uma opção, e Josie está atolada no trabalho...

O homem permitiu que a frase pairasse no ar depois de mencionar a mãe de Theodore, deixando subentendido que ele era a única opção viável agora. A Major franziu o cenho; Josie Hathaway havia sido recentemente promovida a Chefe de Departamento da polícia de Nova York, e era de esperar que, em uma patente mais alta, ela teria mais controle sobre o próprio horário, ou que pelo menos poderia ir buscar o filho no hospital. Mas Savannah não disse nada, uma parte sua imaginando se Theo havia realmente chamado a mãe, ou se seria apenas uma desculpa para ficar mais com Kyle.

— Descanse, tampinha — o irmão disse, aproximando-se para bagunçar seus cabelos. — Me mande alguma mensagem se precisar, ok? 

Kyle deu um beijo no topo de sua cabeça como despedida e logo estava fora de casa. A vigilante, por sua vez, após encontrar um saco de ervilhas congeladas, arrastou-se até o sofá e se jogou nele. Ela atingiu o estofado com um gemido de dor, o corpo parecendo latejar por completo. Savannah chiou ao pressionar o pacote de ervilhas contra suas costelas, bem onde levara o tiro, mas o manteve lá enquanto alcançava a sua bolsa e a vasculhava em busca do celular.

Ao achá-lo, a menina deparou-se com algumas mensagens de Lia, que, pelo jeito, havia ficado sabendo da luta da noite anterior na loja de eletrônicos. Savannah não fazia ideia do que a mídia estava falando sobre sua participação no confronto, e, honestamente, nem queria saber. Em vez disso, ela somente resolveu ligar para a amiga, sabendo que ela também estava no horário de almoço, a fim de sanar suas preocupações.

Amelia não demorou para atender.

Savannah Reese Evans, por acaso você quer me matar do coração?! — Foi o que ela disse ao atender. — Eu juro, algum dia eu vou ter um ataque e a culpa vai ser sua!

A heroína não conseguiu evitar soltar um risinho diante daquela reação.

— Quanto exagero.

Exagero?! Savannah, você viu as notícias? — Sua voz estava uma oitava acima do normal.

Diante de uma resposta negativa, ela começou a contar o que os jornais diziam: o Homem-Aranha e uma mulher que podia ou não ser a Major — usando roupas civis em vez do uniforme e sem seu bastão característico, era difícil afirmar qualquer coisa, já que existiam chances de aquela ser "apenas uma doida inspirada pelas ações inconsequentes da vigilante" — haviam destruído uma loja de eletrônicos e alguns carros durante uma briga com assaltantes. Filmagens das câmeras de segurança do estabelecimento haviam sido divulgadas, embora a parte do confronto que se dera na rua tenha permanecido uma incógnita, uma vez que as câmeras exteriores haviam sido destruídas pelos bandidos antes de tudo começar. Tudo que sabiam era que alguém havia se ferido, e que a destruição fora grande.

Eu sei que aquela doida era você — Amelia havia abaixado o tom agora, provavelmente para que ninguém ouvisse por acidente a conversa. — E também sei que você é capaz de se cuidar, mas alguém foi ferido, e você não deu sinal de vida por horas!

Savannah sentiu-se imediatamente culpada. E o pior de tudo era que as angústias de sua amiga eram mais do que válidas, até porque a Major, de fato, se ferira.

— Desculpa, eu não queria te preocupar — ela murmurou com um suspiro. E, não querendo assustar Lia, que certamente surtaria caso ouvisse sobre o tiro, ela resolveu guardar aquele fato para si. — Eu estou bem. Só fiquei cansada, então resolvi não ir para a aula.

Amelia prosseguiu perguntando o que havia acontecido na loja, de modo que Savannah se encontrou contando uma versão distorcida dos fatos; ela explicou como estava voltando para casa quando se deparou com o assalto e precisou interferir. Contou sobre a luta, sobre a chegada do Homem-Aranha e sobre eles terem sido jogados para fora do estabelecimento pela arma de aura azul. Ela deixou de lado, porém, a descoberta da identidade do ex-quase-parceiro e o tiro. Em vez disso, ela somente disse que os ladrões fugiram e ela voltou para casa, onde dormiu até não poder mais.

Savannah odiava, com todas as suas forças, mentir para a melhor amiga, mas não podia contar agora sobre o que realmente acontecido. Ela só não queria preocupar Lia, e ainda precisava de um tempinho para si.

Fico feliz que esteja bem — a garota disse, por fim. — Mas, da próxima vez, pelo menos me avise que não virá para a aula para que eu possa faltar também. — Ela soltou um muxoxo. — Você não tem noção de como foi constrangedor com o Ned aqui sem você e o Peter.

Savannah franziu o cenho.

— Sinto muito. Foi muito ruim?

Foi a mesma coisa de sempre. Fazer o quê, não é? — ela suspirou, e, antes que Savy pudesse dizer qualquer coisa, continuou. — Escute, logo o sinal vai tocar, então já preciso ir. Mas fiquei sabendo que você estava com o Peter essa manhã, e você vai me contar tudo sobre isso mais tarde!

A Major fechou os olhos e esfregou o osso do nariz, sem ter a menor ideia do que responder. Para a sua sorte, porém, ela não teve que pensar muito nisso, visto que Lia logo se despediu e encerrou a ligação. Assim, Savannah estava, mais uma vez, sozinha com sua própria mente.

A vigilante respirou fundo. Estava na hora de começar a enfrentar as coisas das quais vinha fugindo... Não podia ser tão difícil, não é? Ela conseguia fazer aquilo.

Savannah não conseguia fazer aquilo.

Quer dizer, o problema não era o que havia acontecido na noite anterior: depois de lidar com a surpresa que ainda sentia por descobrir o segredo de Peter, ela encontrou-se ansiosa para falar com ele sobre os seus alter egos. Claro, ela ainda sentia-se estúpida por nunca ter desconfiado antes — afinal, sempre houvera tantos indícios, e não só durante aqueles últimos meses em que os dois haviam se aproximado —, mas aquele era o intuito exato ao manter uma identidade secreta, não é?

Ela também já não se importava muito com os machucados que arranjara. Sabia que precisaria tomar mais cuidado, sim, e que jamais poderia sair sem seu colete à prova de balas; fora isso, porém, não havia muito mais que ela poderia fazer além de aguardar a sua recuperação. A dra. Cho havia lhe dito que ela poderia tirar os pontos das pernas após uma semana, aproximadamente, ao passo que o ferimento da bala demoraria cerca de três semanas para se curar. Caso não fizesse muito esforço e cuidasse devidamente dos machucados, ela logo já estaria melhor.

Assim, o motivo verdadeiro para toda a angústia de Savannah era, logicamente, o seu pai.

Por horas, a heroína tentou, sem sucesso, distrair-se. Diferentemente da vez em que teve o ataque de pânico e o terror noturno, ela não conseguiu afastar a mente daquilo nem mesmo por um mísero segundo. Ela havia tentado assistir a algum filme, ler e até mesmo dormir, mas nada pareceu surtir efeito.

Ela continuava pensando no acidente. Continuava revivendo sua maior vergonha, sua culpa mais profunda, algo que nem mesmo anos de terapia conseguiram resolver.

Uma parte da adolescente sabia que ela não deveria se culpar. Afinal, não tinha como ela sequer imaginar o que iria acontecer; era o que sua família e sua antiga terapeuta sempre disseram. Mas, ainda assim, por causa dela que Dan estivera nas ruas naquela noite. Podia não ter sido a menina a roubar aquele carro e realizar toda a perseguição, mas fora ela que insistira em sair, e agora seu pai estava morto.

Sentindo-se afogada em vergonha e culpa, Savannah fechou os olhos com força — e, por um instante, luzes de faróis piscaram sob suas pálpebras, uma buzina estridente alcançou seus ouvidos. Ela lembrou-se da própria voz gritando por seu pai, lembrou-se de sentir a mão dele segurar a sua, mas tudo havia sido rápido demais para eles terem qualquer outra reação, para sequer tentarem desviar...

A garota sentou-se com um pulo na cama, completamente sufocada. Sua ferida de bala pareceu se repuxar com o movimento brusco demais, e ela pressionou a mão na lateral do corpo em um reflexo. A visão de Savannah estava embaçada por lágrimas, embora elas não tivessem nada a ver com a dor dos machucados e, sim, com a massa que comprimia o seu peito e a impossibilitava de respirar.

Ela já estava farta daquilo. Precisava fazer alguma coisa. Precisava fugir da sua própria mente.

A Major abaixou os olhos para a mão apoiada nas costelas; por um momento, seus pensamentos foram capazes de se desviarem para o seu ferimento, e foi o que bastou para que ela saltasse da cama e corresse para o quarto de Kyle. Lá, não foi nem necessário procurar pelo laptop do irmão, visto que ele estava em cima de sua mesa de trabalho. Dessa forma, a heroína somente sentou-se em frente a ele e começou a sua investigação.

Uma vez no aplicativo da polícia, Savannah buscou pelo caso do assalto à loja de eletrônicos. Depois de alguns minutos bisbilhotando tudo que podia, ela descobriu que os ladrões que haviam sido apreendidos não revelaram muita coisa no interrogatório, e as gravações das câmeras de segurança do estabelecimento também não foram de grande ajuda.

Com um suspiro cansado, a vigilante pensou na van de fuga dos criminosos. Talvez ela pudesse servir como pista, mas, como as câmeras da rua haviam sido quebradas antes de todo o confronto, não havia registros dela. A menos que...

Savannah puxou as filmagens das câmeras antes de elas serem destruídas, as quais, felizmente, estavam no sistema da polícia. Ao analisar o filme, ela por fim avistou um furgão passando na rua quinze minutos antes do início do assalto. E quem diria? Ela o reconheceu como o mesmo veículo usado pelos bandidos para escaparem.

Só para melhorar, a placa era visível nas gravações.

A menina jogou os caracteres no sistema, e uma onda de eletricidade pareceu percorrer o seu corpo quando um registro da van, vinculado a um endereço, apareceu.

Savannah parou tudo que fazia por um instante. Aquela era uma ótima pista? Claro que era. Ela não fazia ideia se era algo que a polícia havia deixado passar ou se havia ignorado deliberadamente, mas sabia que era melhor ir conferir o endereço antes que fosse tarde demais... Mas ela também sabia que deveria ficar em casa. Ir investigar seria estupidez. Afinal, ela estava machucada e precisava se recuperar.

Por outro lado, ficar em casa não estava servindo para nada além de fazê-la ser sufocada por seus próprios pensamentos. Ela precisava urgentemente de uma distração eficaz, e o que era melhor do que uma investigação que requeria o seu foco completo? Ela não daria margem para aqueles pensamentos incômodos virem à tona e, daquela forma, a Major pelo menos poderia ser produtiva.

Ela não iria se envolver em nenhum confronto; somente iria ficar de tocaia e tentaria descobrir algo importante. Talvez até mesmo achasse algo relacionado às armas alienígenas! De uma maneira ou de outra, ela tomaria muito cuidado e não se arriscaria sem necessidade...

Sem precisar de muito mais para se convencer, Savannah foi vestir o uniforme.

[14/12/2021]

oi, gente! tudo bem com vocês?

olha quem finalmente deu as caras rsrsrs e com um capitulo ENORME para vocês! esse foi o maior cap da fic até agora k espero que não tenha ficado cansativo, porque todas as infos dele são absolutamente importantíssimas para a história!

finalmente sabemos o motivo completo da savy ser uma heroína... ajudar a lia na festa foi o catalisador, mas a motivação veio do pai dela........... estou aos prantos. tadinha.

aliás, venho aqui com uma informação mto especial! ALONE TOGETHER, o crossover de super com radioactive e young veins, já está disponível aqui no wattpad!!!!! eu e as meninas postamos no início desse mês no trwnity e o prólogo já vai sair dia 17! fiquem ligados que essa fic é perfeita rsrsrsrsrsrsrsrs

confiram aqui o trailer oficial dela!

https://youtu.be/G9FE3g_1VTU

enfim, gente! é só isso que eu tenho para falar por hoje. espero que tenham gostado desse cap e até o próximo! vou tentar atualizar antes de o ano acabar, mas caso não consiga fazer isso, já desejo boas festas para vocês e um ótimo 2022!

beijos!

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