16
Na última esquina, antes de avistarmos nosso destino, eu fiz uma curva tão brusca que se meus reflexos ainda fossem humanos eu teria perdido o controle do veículo.
De qualquer modo estávamos todos inteiros e tínhamos, enfim, chegado à academia de ginástica.
Instantaneamente fui fulminada por um turbilhão de sentimentos que eu não sabia como descrever, eram muitas lembranças vívidas daquele lugar que vieram à tona de uma só vez, tudo me era muito familiar.
Apesar de nunca ter colocado os pés lá dentro.
Esta academia era o lugar que, em vida, Jéssica se encontrava frequentemente com Marcelo.
Era espaço preferido deles, parte de suas histórias.
Marcelo está aqui do meu lado e a contragosto íamos revisitar isso Juntos.
É uma experiência surreal, pois eu tenho a sensação de ter vívido tudo isso que me recordo com ele ao meu lado. Por outro lado, para o próprio, eu sou uma completa estranha.
Verdade seja dita que, de certa forma, ele também tinha Jéssica como uma completa estranha.
O que ele sabia da vida dela? Nada. Ela não se abria para ele.
Isso reforça meu questionamento quanto aos meus próprios sentimentos. Se Jéssica não dava a mínima para esse homem qual a razão de eu ser completamente obcecada por ele?
Seria isso um vislumbre da minha autenticidade, de que meus sentimentos são originais à revelia dos que eu herdei no pacote de memórias dela?
Ou será que por usar um corpo de androides de "companhia" eu já saia de fábrica apaixonada?
Esse tipo de ideia me dá repulsa.
Estacionei o carro apressadamente deixando o mesmo ali largado no meio fio e desembarcando sem sequer me dar ao trabalho de ligar o piloto automático novamente. Descemos os três juntos e corremos para a entrada do prédio.
Assim que nós nos aproximamos da porta de vidro a mesma se abriu automaticamente de forma servil. Estava quente na rua e recebemos aquela lufada de ar gélido do ar condicionado de seu interior.
Até mesmo meu corpo artificial conseguia notar a grande diferença do choque térmico.
O barulho do aço contra aço dos aparelhos de ginástica, a música ambiente, os gemidos de esforço dos frequentadores e o corre-corre da lanchonete. Tudo soava familiar.
Aquele cheiro de comida insossa e saudável. Jéssica comia aqui pratos de baixas calorias para se empanturrar de bobagens em casa. Atire a primeira pedra quem nunca fez isso.
Bom, eu nunca fiz. Ainda não tive a chance.
De qualquer maneira eu tenho a sensação ao entrar de que havia acabado de sair deste lugar.
Assim que cruzamos o gasto tapete de bem-vindos da entrada fomos surpreendidos por um holograma tridimensional semitransparente que apareceu a poucos metros de nós na forma de uma bela garota que fazia o papel de recepcionista do lugar. Ela possuía a aparência clichê de uma dessas típicas frequentadora compulsiva de academias com formas bem definidas e torneadas. Um embuste.
A moça sorridente era apenas uma ilusão digital que caminhou em nossa direção bastante receptiva nos saudando com animadas boas-vindas. A ilusão era tão bem-feita que podíamos ouvir seus saltos ressoando no piso liso do lugar a cada pisada que ela dava.
— Bem-vindo de volta senhor Marcelo, como tem passado? — Disse o holograma tridimensional esbanjando sorrisos. — Vou te encaminhar a sua série de hoje e suas metas, seus aparelhos estarão reservados para seus exercícios em 10 minutos.
— Ah, bom... — Marcelo hesitou.
Sam deu um leve toque nas costas dele o impelindo a seguir.
— Ah, obrigado... — ele disse nervoso. — Vou direto pegar minhas coisas no meu armário.
— Como quiser, se precisar de algo é só chamar. — Falou solicita a atendente virtual.
Ela se virou para Sam e eu.
— Sejam bem-vindos, acompanham o senhor Marcelo? — Ela perguntou.
— Sim, estamos com ele. — Sam fingiu um sorriso. — Queremos conhecer o lugar.
Ela se interpôs entre nós e Marcelo.
— Que ótimo, permita-me acessar seu perfil digital para eu possa verificar suas preferências e ver como podemos nos adequar às suas necessidades. — Disse o holograma ainda mais sorridente para Sam.
Sam e eu nos entreolhamos.
— Obrigado, mas não é necessário. — Ele respondeu.
— Eu insisto. — O holograma persistiu ainda sorridente.
Sam parou de andar e sua face fechou em carranca.
Ela apontou o dedo indicador para ele, movimento em forma de comando padrão para ver as credenciais ou perfil de rede social de qualquer indivíduo.
Mas ele não podia mostrar sua identidade para ela porque, na prática, ele não tinha nenhuma. Ele era um ninguém.
Uma mensagem de erro ou de "não encontrado" saltava diante das vistas dela.
Aquilo era incomum para aquela inteligência artificial lidar, ela ficou em silêncio um breve instante. Deve ter buscado em seu banco de dados alguma informação ou protocolo de atuação em casos assim.
Ela disse a verdade quando pediu para ver as credenciais de Sam para averiguar suas preferências pessoais de modo a ajustar a rotina de exercícios dele ao que o lugar podia oferecer, mas a necessidade de verificar nossos perfis tinha ainda mais uma motivação: impedir que pessoas de castas mais baixas ficassem circulando pelas dependências do lugar.
Ela ficou sem reação, não tinha um protocolo para lidar com um zé ninguém.
Diante da falta de reação dela e, justamente por conta de a mesma ser apenas um holograma, Sam a atravessou como quem trespassa um fantasma e seguiu porta adentro.
— Senhor, por favor. — Ela protestou se virando para ele. — Queira aguardar um instante a mais, por gentileza.
Ele deu as costas para ela e seguimos para dentro do lugar ignorando-a.
O Holograma sumiu de onde estava e se projetou na minha frente novamente.
— Desculpe, mas androides são proibidos neste lugar, queira por favor aguardar seu mestre do lado de fora. — Ela me ordenou.
— Me dá licença que eu não sou cachorro para ficar presa na coleira do lado de fora. — A desafiei.
Assim como Sam eu a trespassei também.
— Vou chamar a segurança. — O holograma alertou.
— Dane-se! — Dei as costas para ela assim como fez Sam.
Sam se virou para Marcelo.
— O tempo corre, rápido, cadê o armário de Edgar? — Sam empurrou Marcelo.
— Ali, deve estar ali, eu acho. — Marcelo suava frio. — Já faz um bom tempo, será que ele ainda está usando este mesmo armário? — Ele se perguntou.
— Para sua segurança é bom que sim. — Sam ameaçou.
— Sam! — Protestei. — Por favor.
Ele não era meu noivo, ele não era ninguém para mim, mas eu sentia que tinha uma história com ele, não podia deixar ele ser tratado daquele jeito.
Sam revirou os olhos.
— Ah, que seja. — Ele bufou. — Anda, dá para ir mais rápido, por favor? — Ele fingiu educação ao falar com Marcelo.
Marcelo apontou para o armário.
— É este. — Disse ele se afastando do armário após constatar que estava fechado.
— Poderia fazer as honras? — Sam aponta para a porta me pedindo para que eu arrombasse o armário.
Eu arranco a porta com uma mão só.
O alarme da academia dispara, aliás, ao meu entender até que demorou bastante.
O som irritante ecoou pelo lugar. Os frequentadores pararam seus exercícios e conversas para prestar atenção nos três estranhos em frente aos armários.
Alguns saem de seus aparelhos e tantos outros andam em nossa direção curiosos ao notarem a movimentação de pessoas em nossa direção.
Como havia prometido o holograma mandou dois leões de chácara que faziam bicos como seguranças virem falar com a gente.
Um deles era mais franzino, provavelmente o cara que ia fazer o papel de bonzinho boa praça que finge ajudar.
O outro parecia ser o valentão, era quase 20 centímetros maior que seu parceiro. Tinha algumas cicatrizes na face e uma cara de assustar.
— Senhor, poderia por gentileza sair? — Disse o mais magro tentando ser educado antes de se ver obrigado a partir para estupidez, exatamente como imaginei. — E leve seu androide com você.
— Nos forneça seu perfil digital para mandarmos a conta pelo armário quebrado. — Exigiu o outro cruzando os braços impondo autoridade.
Eles chegaram mais perto, um deles me olhou de cima a baixo bem rente a mim, como se me intimidasse.
— Sai daqui sua androide nojenta. — Ele tocou no meu braço. — Antes que eu chute você daqui.
Sempre odiei que tocassem em mim sem permissão.
Desviei a mão dele de mim e em um movimento rápido segurei seu braço e o torci até escutar um estalar.
Ele urrou de dor. Devo ter torcido demais.
— Esse androide está burlando as leis da robótica? — Perguntou assustado o outro segurança mais magro.
— Ela está quebrando meu braço. — Disse o maior quase chorando. — Faça alguma coisa.
— Solte-a, ou eu vou... — Disse espantando o menor.
— Fazer o quê? — Eu o desafio com um olhar e torço ainda mais o braço de seu colega.
— Me solta! Me solta. — Gritava em desespero o grandalhão.
Deixei escapar um sorriso e torci só mais um pouquinho.
O outro segurança ao invés de correr ou me enfrentar resolveu abrir uma janela em realidade ampliada bem na nossa frente para chamar ajuda.
Antes dele sequer sonhar em chamar reforços eu soltei o grandão e corri contra ele lhe dando um belo chute bem no queixo.
O coloquei para dormir.
É libertador estar livre das leis da robótica. Aquela experiência com os caçadores na saída do esconderijo de Sam foi catártica.
O grandalhão já liberto de minhas mãos veio para cima de mim com tudo. Deixei ele acertar um soco em meu rosto.
Nem me movi, mas acho que ele quebrou os dedos da mão.
Ele era insistente, devo admitir, pois tentou me socar com a outra mão nua. Desviei o golpe e na sequência do movimento com meu cotovelo acertei o antebraço dele quebrando-o.
Ele berrou de dor indo ao chão. Se eu coloco um pouco mais de força tinha arrancado o braço dele.
Enquanto eu estava recepcionando nossos amigos Sam revirava o armário de Edgar de cima a baixo.
Ele jogou no chão toda sorte de bugiganga e roupa suja.
— Era essa a mochila? — Sam segurou uma mochila toda puída.
— Era. — Respondeu Marcelo todo preocupado.
Sam jogou o conteúdo da mochila no chão e se agachou para apalpar o fundo dela.
Enfiado dentro de um rasgo na parte interior da mesma, ele achou um pequeno papel enrolado.
Sam suava frio, trêmulo de ansiedade e se atrapalhando todo para desenrolar o papelzinho que insistia em escorregar e escapar de seus dedos.
Quando finalmente conseguiu ele leu estarrecido o que estava escrito.
— "Eu estou com os arquivos, venha me ver agora na antiga fábrica abandonada da Pineapple nos Expurgos". — Ele leu em voz alta.
Sam virou o seu olhar alarmado para mim.
— Quem diabos achou isso antes da gente? — Disse ele amaçando o papel.
— A mesma pessoa que mandou aquela coisa tentar me raptar ontem. — Afirmei.
Sam jogou a mochila longe e em um pulo se pôs de pé. Com os olhos em fúria ele se virou para Marcelo o puxando pelo colarinho.
— O que significa isso? — Sam gritou com Marcelo.
— Eu não sei! — Marcelo ergue as mãos com as palmas viradas para Sam como forma inconsciente de defesa e um sinal para ele se afastar. — Eu não mecho nesse armário tem alguns meses.
Olho para Sam preocupada. O pobre coitado não parecia saber de nada mesmo.
Sam devolveu o olhar para mim e desistiu de chacoalhar Marcelo.
O detetive respirou fundo inconformado, mas viu que seguir com aquilo era infrutífero.
Se acalmou e então soltou o rapaz.
— Não precisamos mais de você. — Sam o empurrou. — Pode ir.
— Ei! — Protestei. — Ele deixou de ser suspeito de uma hora para outra?
— Esse idiota? — Sam olhou para Marcelo com desprezo. — Esse aí sempre foi um frouxo. Ele não teve coragem de enfrentar a noiva dele e lhe dizer umas verdades, mas teve para arrumar uma boneca para fugir dos problemas.
Sam olhou Marcelo mais uma vez de cima para baixo.
— Ele não conseguiria estar por trás dos atentados que você sofreu, ele não tem conhecimento nem contatos para causar tudo aquilo. — Sam riu o ironizando. — Fora que veio o caminho todo até aqui se borrando de medo. — Sam encolheu os ombros. — Ele pode ser muitas coisas, mas corajoso para matar alguém ele não é.
Marcelo aceitou tudo aquilo sem protestar. Ele olhou para baixo conformado com o que ouviu e depois olhou para mim demoradamente.
— Tem algo em você que me lembra muito a Jéssica. — Ele respirou fundo. — Muito mesmo. O que está acontecendo aqui, quem realmente é você?
— Talvez ainda tenha algo dela dentro de mim, quem sabe? — Respondo séria.
— O que você quer dizer com isso? — Marcelo se assustou com minha declaração. — Há alguma coisa mesmo da Jéssica dentro de você?
Não respondi. Acho que nem precisava.
Eu sabia que o que tinha de Jéssica dentro de mim estava morrendo gradativamente. Eu estava substituindo todo aquele repertório dela com coisas que eram minhas mesmas.
Minhas opiniões, meus gostos, minhas ideias.
Eu, mesmo sendo um individuo sem nome próprio, estava me conhecendo. Acho que essa desilusão relâmpago que tive com esse homem me mostrou isso.
Não sou abrigada a herdar nada dela.
Nada.
Me afastei e Sam foi se aproximando dele. O detetive pegou sua arma e a mostrou para Marcelo.
— Só para você saber, — Sam tirou o compartimento da munição e a mostrou vazia para Marcelo — minha arma sempre esteve sem munição.
Escuto barulho vindo da rua. Sirenes.
— A polícia chegou. — Sam gritou para mim. — Vamos.
— Tem outra saída pelos fundos. — Nos avisa Marcelo apontando na direção certa.
— Porque nos ajudaria agora? — Pergunto para ele.
Sam apenas acena com a cabeça aceitando a dica.
Antes de irmos Marcelo fala mais uma coisa.
— Descubra o que houve com Jéssica e me conte no futuro, se puder. — Ele falou após um suspiro resignado.
Nem respondemos a ele, saímos correndo pela outra porta antes de sermos cercados.
Rapidamente um exército de viaturas começou a aparecer de todo canto.
— Corra! — Gritou Sam.
Saímos do prédio às pressas e corremos pela calçada desviando dos transeuntes. Essas pessoas andavam todas juntas e ao mesmo tempo isoladas como um exército de zumbis sem vontade, entorpecidas e imersas em suas miragens virtuais.
Parecíamos invisíveis aos olhos desse povo a ponto de termos de desviar desses infelizes aos tropeções. Só se davam conta que passávamos por eles quando nós os derrubávamos para abrir caminho.
O barulho de sirenes ficava mais alto a cada segundo.
— Precisamos sair da via principal, — gritou Sam para mim — entre numa dessas vielas.
Concordei com a cabeça e derrubei mais três pessoas ao virar bruscamente para o lado me enfiando um caminho estreito. Sam veio logo atrás de mim.
Nos embrenhamos por essas ruas estreitas do centro e fomos por caminhos em que veículos não podiam transitar. Quanto mais avançávamos mais pessoas se aglutinavam em torno dos comércios de rua.
Aproveitamos a oportunidade para nos misturar à multidão.
— Os serviços de vigilância podem nos encontrar a qualquer momento, — ele me alertou enquanto corríamos — há câmaras com os programas de reconhecimento de padrões em todo lugar.
Avistei um enxame de drones sobrevoando os arredores.
— Estão nos caçando. — Afirmei em meio a corrida.
Nos enfiamos no meio de uma feira livre, uma espécie de comercio popular que ainda resistia às novas práticas de se fazer negócio.
Estávamos envoltos a frutas, barracas de peixe e de carnes secas dependuradas. Tudo que se vendia naquele lugar além de não ter boa aparência aparentava ser de procedência duvidosa. Eu reconhecia muitos daqueles aromas, dava para sentir sutilmente.
Há quanto tempo eu não comia uma refeição de verdade?
Aí é que está. Eu nunca comi nada.
Umas infinidades de rostos, vultos e formas. A alternância entre o muito escuro e o muito claro. Nosso passo era acelerado.
Escutamos tiros.
Uma melancia explodiu perto de mim alvejada por um disparo.
— Nos encontraram! — Gritei.
— Para debaixo dos toldos, rápido. — Insistiu Sam.
Foi um pandemônio, a multidão ao notar os tiros fugiu apavorada se acotovelando e correndo para todos os lados possíveis. As barracas vieram ao chão e muita gente ficou machucada.
Ficamos relativamente ocultos dos drones que nos sobrevoavam, mas longe de estar a salvo.
Eu podia ver as inúmeras câmeras, os olhos que tudo viam, espalhados por quase todas as paredes dos arredores.
É impossível ficar definitivamente escondido nessa situação.
Sam notou que estávamos sendo seguidos pelas laterais por um vulto atrás das barracas.
— Quem atirou na gente foi um caçador de recompensas, não os policiais. — Sam constatou.
Um homem branco com alguns implantes metálicos, vestindo trapos e ostentando um volumoso cabelo dreadlocks sacou sua arma em nossa direção.
— Um caçador de recompensas. — Gritou Sam para mim. — Abaixe-se!
Sam atirou no estranho que continuou atrás de nós com arma em punho.
Outro disparo. Desta vez um repolho ficou em pedaços.
— Por aqui. — Sam saiu da feira livre em direção a uma outra viela ainda menos iluminada. A luz do Sol não conseguia se embrenhar por aqueles lugares.
Um homem sem camisa e coberto de tatuagens saltou de um muro caindo diante de nós impedindo nosso progresso.
— Parados! — Gritou ele. — Vocês são meus. — E apontou sua arma.
Atrás de nós o caçador de recompensas com seu penteado dreadlocks que nos perseguia na feira livre também apareceu. Ele ria de satisfação deixando expostos seus dentes podres.
— Ei, esses são meus! — Ele chegou engatilhando a arma contra seu colega de oficio. — Eu os vi primeiro.
O instante em que ambos se afrontaram Sam baleou um e eu me joguei para cima do outro o desarmando.
O encostei na parede e com dois socos o nocauteei.
— Agora temos mais uma arma. — Falei enquanto conferia a munição.
— Bom trabalho. — Ele me elogiou com um breve sorriso. — Agora vamos.
— Estamos cercados, para onde vamos? — Pergunto preocupada.
— Não se preocupa.
Continuei seguindo Sam que aparentemente sabia o que estava fazendo.
— Para onde vamos? — Pergunto nervosa.
— Calma, estamos indo para uma área onde tenho contatos. — Ele me falou com calma.
— Sam, precisamos sair daqui, não devemos nos enfiar mais bairro adentro! — gritei com ele.
— É aqui. — Ele apontou para um prédio tão velho que provavelmente era de uma época pré-singularidade.
Entramos em um hotel barato, uma espelunca provavelmente cheia de pulgas.
Alguns homens e uma senhora de meia idade jogavam carteado a moda antiga, com um baralho de papel mesmo.
A senhora devia ter por volta de seus 90 anos. Vestia um vestido bem antiquado verde musgo. O rosto dela, suas marcas e rugas só de fitá-las via-se que contavam uma história.
E devia ser de sofrimento e superação.
Os outros homens na mesa ou eram barbados ou carecas. Um deles suava tanto que daria para torcer sua camisa.
Acima deles o ventilador de teto não funcionava, devia estar quebrado. E pelo estado de conservação do mesmo dava sinal de que não era lavado a décadas por conta das camadas de pó sobre sua laminas.
Eles viraram seus pescoços para nós ao mesmo tempo e a velha senhora após expelir a fumaça de seu charuto artesanal falou.
— Problemas Sam? — Ela resmungou. — De novo? Já não te disse um milhão de vezes para não fazer negócios na minha área?
— Oi tia. Como andam os negócios? — Sam a cumprimenta.
— Vão bem. — Ela cuspiu no chão. — Estou é preocupada com os seus.
— Esse é um problema dos pequenos. — Ele fez um sinal com o polegar e o indicador para exemplificar algo minúsculo. — Já houve piores.
Olhei para a entrada do hotel, era ridículo de apertado. Só dava espaço para o balcão de atendimento e a mesa do carteado. As paredes estavam com a pintura gasta, rachaduras e muito bolor.
Aquele lugar não funcionava mais como um hotel tinha muitos anos.
Coloca muitos anos nisso.
A velha estudou Sam por alguns segundos. Eu mostrava impaciência.
— E essa androide? — Ela apontou para mim com o charuto. — Desde quando tu é Agalmatofilo?
— Eu não sou Agalmatofilo. — Ele respondeu ofendido.
— Não minta para essa velha Sam. Eu ainda te passo para trás e te coloco no meu bolso.
— Não sou nenhum pervertido tia, não se preocupe.
— Está me enganando, hein moleque? — Ela bate na mesa.
— Estou um pouco sem tempo para responder, — Sam abriu os braços — posso explicar depois?
— Acho que não quero saber. — Ela cuspiu no chão de novo após virar numa golada só o líquido que repousava em seu copo americano sobre a mesa.
— Preciso de passagem livre. — Disse Sam solicito.
— E eu de dinheiro para uma nova plástica. — Ela gargalhou. — Suma daqui.
— Tia, será que devo relembrá-la do que fiz por você antes? — Sam se mostrou ofendido de novo.
A senhora deu de ombros resignada.
— Não sei no que você se meteu, mas eu não vou me meter também. — Ela riu.
Sam abriu sua mochila e pegou algo arremessando para ela.
Parecia um componente eletrônico muito valioso, eu não fazia ideia assim à primeira vista do que era, mas fosse o que fosse a velha senhora gostou muito.
A idosa acenou com a cabeça para os homens que jogavam cartas com ela.
Os homens se levantaram e ergueram a mesa que por sua vez estava sobre um tapete.
A velha removeu o tapete e uma tampa de bueiro ficou exposta.
Sam já sabia o que fazer, ele ergueu a tapa o suficiente para que eu passasse.
— Anda, o que está esperando? — Ele me acelerou. — Entra!
— Não, sem chance... — fiquei arrepiada de nojo — aí dentro tem baratas, ratos...
— Anda! — Ele gritou. — Está com medo de quê? De uma infecção? O seu corpo é artificial, esqueceu?
— Ele é falso, mas quero me manter limpa. — Bati o pé.
— Entra logo! — Todos gritaram ao mesmo tempo para mim.
— Tudo bem, tudo bem. — Com muita repulsa concordei.
— Sam, que merda de androide é esse que não te obedece? — A velha resmungou. — Por acaso está com defeito?
Sam olhou para mim com repreenda.
Joguei nossas bolsas pelo buraco e escutei o ruído do baque delas com o solo segundos depois, o que denunciava a altura da queda. Era próximo de sete metros.
Assim que eu desci para o breu lá embaixo Sam veio em seguida. Tão logo passamos pela tampa as pessoas no hotel a fecharam e pelos ruídos soubemos que tinham colocado o tapete e a mesa de volta onde estavam. Se entendi bem eles iam encenar que não havia acontecido nada por ali.
— Onde estamos? — Eu estava perdida em meio ao breu.
— Silêncio! — Sam me ordenou.
Ouvimos o barulho de gente entrando no hotel. Há uma algazarra e depois batida de pés saindo em retirada.
Com certeza era a polícia, como não nos viram correram para outro lugar de modo a continuar procurando.
— Deu certo. — Sam falou aliviado.
Sam abriu sua mochila e pegou uma daquelas varetas luminosas descartáveis, dessas de curta duração que geram luz através de quimiluminescência.
Uma luz esverdeada proveniente dela iluminou nosso caminho.
— Conheço esses tuneis como a palma da minha mão. — Ele me tranquilizou.
— Como assim conhece? — Franzi a testa.
— Quando você quer ser invisível precisa se locomover da forma mais discreta possível. — Ele sorriu. — Vem, vamos voltar para o Expurgo, a antiga fábrica fica no que é hoje uma das partes da cidade abandonadas pelo estado. — Ele apontou. — Se seguirmos por aqui chegaremos lá.
— E essas pessoas que nos ajudaram a fugir agora a pouco, quem são?
— Já fiz todo tipo de favor e de serviço nessa vida. — Sam passou a mão no pescoço como que para exemplificar que ele quase já ficou sem ele — Já arrisquei o pescoço por essa gente antes. Fica tranquila que eles são da casta baixa, ninguém vai ficar monitorando as memórias deles.
— Tudo bem então. — Suspirei.— Vamos lá.
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