Capítulo 9

Sinto tudo girando ao meu redor antes mesmo de despertar por completo. Abro meus olhos e me arrependo no mesmo instante, o flash de luz me cega por um segundo e me força a fechá-los. Na segunda tentativa, sou mais bem sucedida e consigo dar forma ao ambiente a minha volta. Deitada no chão, vejo acima de mim uma mistura do azul do céu e infinitos tons de verde na copa das árvores. 

Me esforço para sentar e minha cabeça gira um pouco, mas consigo manter a posição. Olho ao meu redor e demoro a processar o que estou vendo. Onde, pelos Deuses, eu estou? Não é uma mata fechada, grama rosada e macia cobre o chão por toda a extensão visível e posso senti-la sob minhas pernas. Árvores altas estão espalhadas aqui e ali pelo que parece ser uma floresta não muito fechada, vejo montanhas ao fundo, e a vista é de tirar o fôlego. Ouço o canto de um pássaro ao longe e a sensação que esse lugar traz é da mais absoluta paz e segurança. 

O que obviamente significa que algo  está errado.

Existe uma energia palpável no ar, torna um pouco mais difícil respirar, como se ar fosse mais denso do que estou acostumada. Algo pinica em minha pele, e talvez seja apenas porque estou parcialmente coberta por grama, apesar de estar sentada sobre uma manta espessa que não reconheço. Mas por algum motivo tenho certeza que a grama não é culpada disso. Sinto algo sob minha pele, uma corrente elétrica sutil e incômoda que faz com que seja uma pequena tortura ficar parada. 

Mexo os dedos das mãos e o pescoço desconfortavelmente e percebo que não sinto mais meu ombro arder com a marca do medalhão. Não é possível que tenha cicatrizado em... Não sei quanto tempo, simplesmente porque não sei onde estou ou como vim parar aqui. Havia se passado apenas um dia da coroação quando... oh sim, agora me lembro. Eu realmente devia ter demitido aquele homem quando tive chance, mas não, ignorei meus instintos na tentativa de não deixar problemas pessoais interferirem no funcionamento do Reino, e aqui estou eu agora.

Tento levantar e não encontro forças para isso. Olho ao redor e percebo que estou deitada próxima ao que parece ser um acampamento; cavalos estão amarrados em árvores próximas e duas tendas estão montadas, um homem se levantando da lateral de uma delas.

Me xingo mentalmente por demorar tanto a perceber que não estou sozinha, e não reconheço o homem vindo em minha direção. Me forço a levantar, cambaleando, sem tirar os olhos dele. Me sinto patética, vulnerável e exposta dessa forma. O homem nunca me alcança, contudo, apesar da curta distância. É interceptado por Tobiah, que fala alguma coisa com ele, ao que ele acena positivamente com a cabeça e dá meia volta, retornando à tenda. Tobiah me alcança, se aproximando com um sorriso cauteloso nos lábios. Ele carrega algo em suas mãos, uma pequena bola avermelhada do tamanho de uma laranja. 

– Não acho que seja justo perguntar como está se sentindo porque é claro pela sua feição que não está em seu melhor estado. Aqui – ele diz e me entrega a bola vermelha, uma fruta posso dizer. A encaro por um segundo e olho novamente para ele. Não posso sequer me dar ao trabalho de perguntar o que é aquilo, então espero.

Sinto meu estômago revirar sem nenhum motivo aparente e a onda de enjoo volta. Me esforço ao meu máximo para controlá-la, e sucedo por pouco. 

— É incrível que mesmo em condições como essa, você continue linda. — ele diz, e arruma uma mecha de meu cabelo — Eu esperava que você fosse loira como sua irmã, mas tenho que admitir que o castanho lhe cai muito bem. — ele diz, levantando as sobrancelhas teatralmente, esfregando os fios entre seus dedos. Ele toca minha bochecha e tudo que tenho tempo de fazer é virar a cabeça para o lado oposto antes de vomitar. 

Sinto meu estômago queimar por causa do refluxo, e só posso imaginar que a cena não seja nada bonita, mas não há nada que eu possa fazer. Quando termino, tusso algumas vezes antes de levantar a cabeça e encará-lo. Ele me olha boquiaberto, pisca algumas vezes... e começa a rir. Não uma risada constrangida, não, uma gargalhada alta e longa, daquelas que lhe faz lacrimejar um pouco. Ainda rindo, ele pega um cantil que pelo que parece estava preso em algum lugar sob seu manto e me entrega. Bebo o líquido levemente adocicado que faz cócegas em minha garganta. Sinto meu estômago imediatamente melhor. Tobiah finalmente para de rir e posso dizer que se esforça para manter a seriedade em seu semblante. 

— Perdoe-me Alteza, tantos anos ouvindo as damas da corte conversarem sobre homens com atitudes "tão melosas a ponto de dar-lhes vontade de vomitar"e jamais imaginei que fosse algo realmente possível de acontecer. Lembrarei no futuro de guardar meu elogios para mim, sim? — ele diz, e eu lhe acerto um tapa no ombro, que aparentemente é muito mais fraco do que eu imaginei, porque apenas faz com que ele ria mais uma vez. 

Reviro os olhos e bebo outro gole do conteúdo do cantil, enquanto ele toma de minhas mãos a fruta que havia me entregue e a descasca. É, de fato, algo parecido com uma laranja. Ele me oferece um gomo que aceito receosamente. Ele come um pedaço primeiro e indica com a cabeça que eu faça o mesmo. Parece uma laranja, ainda que vermelha, e o gosto é mais amargo do que eu esperaria. Estranho, mas não é ruim. Enquanto como ouço Tobiah tagarelar sobre um rio que encontrou próximo a onde estamos, sobre como a água é ainda mais cristalina do que em seu Reino e sobre como o adocicado natural provavelmente seria ótimo para suas plantações de frutas e os Mestres ficariam eufóricos com uma fonte como essa. Tenho certeza que ele diz algo mais além disso, mas não estou realmente prestando atenção. Como pode alguém falar tanto?

— O que está acontecendo? — pergunto após comer alguns gomos e ouvir ao que pareceu mais longo do que as atualizações semanais dos Mestres do Norte — Que lugar é esse? 

— Você não achou que fosse cumprir sua Profecia sentada em seu trono, achou? — ele responde em tom de brincadeira, mas posso ouvir o nervosismo por trás de sua voz. Ele suspira antes de continuar. 

— Não sei o nome desse lugar, não está nomeada no mapa. Mas é a primeira floresta que encontramos depois da Fronteira. Não que possa exatamente ser chamada de floresta, como você mesma pode ver. 

Depois... Da fronteira? Depois da fronteira como em fora do reino? Depois da fronteira como em dentro do território das Terras Distantes? Não preciso formular nenhuma pergunta, ele apenas acena com cabeça ao que posso imaginar ser minha cara de espanto. 

— Como eu vim parar aqui? E você? E quem é aquele homem?

— Ele é o segundo filho do Terceiro comandante do Reino de Dentro, Cathal. Nós te trouxemos, foi assim que você chegou aqui. 

— Isso é impossível, a viagem até aqui demoraria...

— Dois dias — ele se adianta e responde. — Sim, nós te trouxemos. Você estava apagada esse tempo todo. Estava começando a ficar preocupado...

— Como assim apagada? É impossível que eu tenha dormido por dois dias. 

— Kya, eu não sei o que aconteceu. O Ministro nos ordenou que a trouxéssemos-

Ordenou? — rujo. Que poder ele tem para dar ordens? Quase me sinto mal por Tobiah, que parece confuso e frustrado com o rumo que tudo está tomando. Quase. Estou irritada demais para ter uma postura empatética.

— Ordenou com o aval de sua irmã. Na sua ausência, ela é a regente. — ele diz, e faz uma pausa para que eu assimile. Processo a informação, e isso não faz sentido. O Ministro me drogou de alguma forma, disso eu me lembro. Não sei o que me deu, ou como, mas eu fui drogada. E então ordenou-os a me trazer para cá, parece o tipo de coisa que ele seria capaz de fazer, mas de maneira nenhuma Layla concordaria com isso. Como se lesse meus pensamentos, Tobiah continuou.

— Princesa Layla não parecia feliz com a situação. Era possível ouvi-la gritando com o Ministro a cômodos de distância. Não achei que fosse do feitio de sua irmã elevar a voz, mas por você ela o fez. Mas no fim das contas acabou cedendo. O Ministro a convenceu de que essa era a melhor maneira de te obrigar a cumprir a Profecia, caso contrário você arrumaria desculpas atrás de desculpas para continuar no Reino, e todos nós acabariamos punidos pelos Deuses por essa sua escolha.

Quero dizer que é absurdo e eu nunca faria isso, que sairia nessa viagem descabida assim que tudo estivesse pronto, mas sei que não é verdade. Ainda assim, não torna aceitável me drogar e sequestrar. Que tipo de psicopata faz isso? E Layla? Pelos Deuses, ela precisa ser tão inocente e manipulável o tempo todo? Só posso imaginar no que o Reino irá se transformar na minha ausência. O Norte está sendo governado pelo Ministro neste momento, tenho certeza. Layla é incapaz de tomar quaisquer decisões difícies e sempre adorou aquele homem. Preciso voltar para casa o mais rápido possível.

Esfrego meu rosto e dou um nó no cabelo. E agora o que? Estou jogada no meio de sabem-se lá os Deuses onde, sem saber para onde ou como prosseguir. Espero que ao menos tenham trazido o mapa. Tobiah estende a mão e me ajuda a levantar e passa a mão pela minha cintura para me manter de pé, gesto que eu aprecio já que não tenho certeza que seria capaz de me sustentar usando apenas minha própria força. 

Ele me leva até onde o acampamento está montado, o que sequer leva um minuto, mas é tempo o suficiente para que eu repassasse em minha mente a explicação que me foi dada. É plausível, e acredito de todo coração que o Ministro seria capaz de tal ato, mas ainda não tenho certeza se posso confiar em Tobiah. Seus olhos castanhos corrompem meu julgamento o suficente para que eu não confie em qualquer conclusão que eu chegue sobre ele. 

A Profecia alertou sobre lealdade e decisões equivocadas. Seria fácil simplesmente me apoiar no braço que me sustenta de pé; é quente e confortável aqui. Em outra vida talvez pudesse me permitir esse luxo. Nesta vida, me desvencilho de Tobiah e me forço a caminhar sozinha. 

Sento em uma pedra próxima a um amontoado de galhos que parece a preparação de uma fogueira. O clima está agradável, talvez até um pouco abafado, então deduzo que a fogueira está ali para cozinhar e não aquecer. Subitamente percebo que está faltando uma pessoa. Se o homem foi enviado do Reino de Dentro, onde está a pessoa enviada do Sul? Penso em perguntar quando vejo uma mulher andar na direção do acampamento. 

— Ah, vejo que a princesa acordou. — ela diz no que parece ser um tom de deboche que prefiro ignorar. — Larunda, do Reino do Sul. — ela se apresenta com uma reverência exagerada. — Hadaward me enviou para garantir que você volte inteira e nós não sejamos todos condenados ao sofrimento eterno. Bom, agora que você acordou podemos discutir como proceder neste fim de mundo. Ou ainda se sente mal pelo efeito da Dama?

—Dama? — Cathal pergunta, limpando suas mãos em um pedaço de pano antes de se juntar a nós. Tenho a impressão de que ow três não conversaram muito nos últimos dias.

— Sim, Dama da Meia-Noite. A droga que lhe deram. — diz apontando pra mim. Quando ninguém diz nada, ela continua. — Para que você tenha ficado apagada por tanto tempo, a única droga possível é a Dama. É muito usada no Sul, grande circulação, mas precisa saber ser manuseada ou acontece o que aconteceu: uma dose muito forte e o efeito é longo desta forma; um pouco mais e pode começar a afetar suas funções vitais. Você teve sorte. 

Eu duvido seriamente que qualquer coisa na minha vida possa ser considerada sorte no momento. Esta mulher só pode ter perdido a cabeça.

— E para qual finalidade essa Dama é utilizada no seu Reino? — pergunto, tendo certeza que vou me arrepender de tê-lo feito.

— Facilita o transporte de escravos entre as minas, ou quando uma escrava é solicitada em alguma das casas. Elas tendem a ser ariscas. — Larunda diz, dando os ombros, como se fosse a informação mais lógica dos quatro Reinos. E acerto, me arrependi de ter perguntado. Meu estômago embrulha mais uma vez, mas a tal Dama não é a culpada. É puro asco.

O Reino do Sul construiu seu sistema de mineração inteiro baseado na escravização de boa parte da sua população. A riqueza acumulada pela pequena parcela livre da população garantia a estes o grande domínio econômico, o que por sua vez reforçava seu poder sobre aqueles que foram escravizados. Prática completamente inaceitável, mas aparentemente não merecedora da atenção dos outros Reinos. Pelo menos até agora. Os Mestres do Reino do Norte são enviados aos outros Reinos para garantir educação e qualificação a toda a população, como foi acordado no Tratado de Paz após a última Grande Guerra que ocorreu há quase um século. 

Desta forma, o Sul tem poder para reger seus domínios como bem lhes convir, sem a interferência dos outros Reinos, mas não tem poder para impedir o trabalho dos Mestres. Há algum tempo, surgiram boatos de uma rebelião começando nos níveis mais profundos das minas, organizada por aqueles que viram nos ensinamentos dos Mestres uma chance de lutar. Não preciso dizer quem o Norte apoiará caso os boatos sejam reais.

Me forço a morder a língua antes que responda algo que me ponha em uma situação pior do que a que me encontro no momento. Preciso sair deste lugar antes de ser capaz de resolver quaisquer outros problemas. 

Tenho a sensação de estar sendo observada. Olho para os lados e tudo que vejo são árvores balançando e uma leve brisa abafada. Minha pele pinica, tento ignorar. Um arrepio percorre minha espinha e eu tremo. O Ministro definitivamente não tinha nenhuma ideia de como administrar essa bendita droga — ou isso ou estava propositalmente tentando me dirigir à mais pura loucura. Me forço a ignorar essa sensação, a ignorar a eletricidade que sinto percorrer minha pele, respiro fundo e pergunto:

— Quando partimos?

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