Capítulo 6

Olho pela janela do escritório que agora é meu. Sinto a presença esmagadora de cada uma das outras cinco pessoas que estão na mesma sala, sinto seus olhares queimando minhas costas, o silêncio esmagador consumindo cada gota de oxigênio do ambiente, me fazendo sufocar. Foco o olhar na cidade a minha frente. Da janela do escritório real é possível ver boa parte do Reino. Quarteirões de pequenas casas se estendem até se perderem de vista, montanhas ao fundo completam o cenário, circundando as construções. A praça ovalada localizada no centro de um quarteirão começa a receber sinais de vida. Crianças começam a se amontoar em volta dos brinquedos, jovens casais sentam debaixo da sombra de árvores. Pessoas voltam à suas rotinas diárias após o fim da cerimônia.

Não lembro de muito o que aconteceu depois da cerimônia. Me forcei a continuar seguindo em frente com as formalidades após o Medalhão. Todo governante do Norte tem o símbolo do medalhão do Reino gravado em sua pele, e esperei ansiosa pelo dia em que teria as três espirais trianguladas marcando meu ombro. Esse dia nunca chegará; ao invés disso, tenho a espada alada cravada na minha pele e na minha alma.

Sinto meu ombro esquerdo arder sob o tecido pesado do vestido. A marca do medalhão queima, mas não é uma dor aguda. Funciona como uma pontada constante, uma lembrança física daquilo que não posso esquecer. Respirando fundo, me forço a retirar os olhos da paisagem pacífica à minha frente e me virar para dentro do cômodo e encarar as pessoas que estão ali por quase uma hora agora esperando que eu tome alguma atitude.

Eu mesma estou esperando uma atitude minha, mas não há nada que eu possa fazer nesse momento; não enquanto a Sanatrix não voltar com o maldito pergaminho da Profecia, que pelo tempo que está levando deve estar enterrado no sétimo andar subterrâneo do Mundo dos Mortos. Esse trabalho não deveria ser exercido pela Sanatrix. Sua função é a regeneração do corpo - e da alma em certas ocasiões quando o Sacerdote não consegue resolver. Não deveria ser a bibliotecária, mas o antigo cuidador dos livros e pergaminhos deixou essa existência anos atrás, e ninguém tomou seu lugar. Apenas mais uma das disfuncionalidades desse Reino.

Sento-me na cadeira de madeira atrás da grande mesa de onde vou governar esse Reino. Brinco distraidamente com o medalhão nos meus dedos enquanto encaro pela primeira vez cada um dos rostos nessa sala. O escritório é um cômodo espaçoso, com estantes de livros cobrindo duas das paredes, quatro poltronas perfeitamente alinhadas aos pares em lados opostos da sala e um grande e felpudo tapete cobrindo boa parte do chão de madeira. De onde estou sentada posso ver a grande porta dupla na parede oposta, fechada, zombando da minha impaciência. O que pelos Deuses pode estar levando tanto tempo?

Layla está sentada em uma das poltronas acolchoadas, com o manto cerimonial dobrado em seu colo, o Ministro de pé ao seu lado. Os representantes dos outros Reinos estão dispersos pelo cômodo. Tobiah está sentado em outra poltrona, folheando distraidamente o livro que tem em suas mãos. Se desfez das vestes formais que usou para a cerimônia, tem o manto pendurado nas costas da poltrona e é a primeira vez que o vejo em uma postura displicente, despreocupada.

Adaliz, a enviada do Reino de Dentro, está de pé, estoica, em frente a uma das estantes, e sua postura não disfarça seu treinamento militar. O Príncipe do Reino do Sul está andando em círculos mal feitos pelo meio da sala, retornando à porta, e novamente até o meio da sala.

- Vai acabar abrindo um buraco no meu tapete, Hadaward - ouço Layla dizer, em um tom gentil involuntário e com um sorriso no rosto. Minha irmã tem um talento nato com as pessoas; se fosse eu a dizer essa frase seria imediatamente acusada de arrogância e falta de modos, talvez com razão. Mas não há um pingo de ignorância ou grosseria em seu tom de voz, e isso faz com que o Príncipe interrompa sua caminhada e acene com a cabeça. Ouço Adaliz bufar e quando olho em sua direção não me escapa o seu revirar de olhos.

- Majestade - diz, se aproximando a passos largos da mesa onde estou sentada - Espero que não tome isso como um ato desrespeitoso, mas gostaria de saber quando poderei voltar ao meu Reino. Há muitos afazeres pendentes que exigem minha presença, tenho certeza que é capaz de entender? - Adaliz mantém sua postura perfeitamente ereta, olhar afiado e tom de voz firme que tenho certeza não permite questionamento de nenhum de seus subordinados em treinamento.

O sistema de governo do Reino de Dentro é constituído pelo poder militar em regência, o que faz sentido já que sua ocupação primária é exatamente o treinamento militar. Adaliz é uma das Comandantes em poder no momento, e parece bastante incomodada com o fato de ser sido enviada para uma função social que, dado sua organização social, poderia facilmente ser cumprida por alguém de um nível hierárquico mais baixo que o seu. Não conheço a fundo os outro quatro Comandantes no governo, mas sei que Adaliz é a única mulher a fazer parte do grupo. Não deve ter mais de quarenta anos, mas suas feições rígidas e sua postura altiva - assim como algumas rugas de preocupação em seu rosto, provavelmente consequência do trabalho que desempenha -adicionam alguns anos a sua conta.

- A Profecia se aplica aos quatro Reinos - responde o Ministro antes que eu tenha a chance de dizer alguma coisa, enquanto caminha em minha direção. - Tenho certeza que o protocolo é conhecido pelo seu Reino, assim como todos os outros? Nossos Mestres são instruídos a ensinar a história do Antigo Mundo a todos os cidadãos...? - ele deixa o questionamento no ar, ao que Adaliz confirma com a cabeça.

- Como andam os trabalhos nas Bases Militares, Comandante? - retomo a conversa, silenciosamente dispensando a contribuição do Ministro. Ele deveria aplicar seus esforços em descobrir o porquê de este bendito pergaminho estar demorando tanto para ser encontrado, e não para responder perguntas que foram direcionadas a mim.

- Não tenho do que me queixar, Majestade - responde - As escolas por todo o meu Reino estão em perfeito funcionamento, e os níveis mais elevados de especialização militar têm mostrado um resultado positivo com o trabalho em conjunto com os nossos soldados e os Mestres Especialistas enviados pelo antigo Rei.

A responsabilidade pelo desenvolvimento educacional dos outros três Reinos é do Norte, e é assim que mantemos os quatro Reinos funcionando em conjunto e em paz. O Reino de Dentro é responsável pela defesa de nossas fronteiras contra qualquer ameaça de venha das Terras Distantes - apesar de o último incidente ter ocorrido séculos atrás, tempo demais para que até eu não me lembre do ocorrido -, assim como a patrulha interna dos outros Reinos, disponibilizando uma quantidade razoável de soltados para cada governante. Em troca, sua educação militar e, consequentemente, desenvolvimento de tecnologia para aprimorar seu trabalho é de responsabilidade dos Mestres no Norte.

O mesmo ocorre para os outros dois Reinos, mas o fato de o Norte ser o maior dos Reinos em tamanho e número populacional faz com que nossa parte justa a ser recebida de provisões vindas do Reino de Fora seja nada mais que o suficiente para a sobrevivência do meu povo - problema que pretendo resolver assim que Tobiah aceitar minha proposta, e ele vai aceitar. Não posso evitar de olhar em sua direção. Ele ainda mantém o livro em repouso no seu colo, mas presta atenção atentamente à conversa. Acena com a cabeça e sorri quando me vê olhando em sua direção.

O Reino do Sul sempre foi o grande problema. A distribuição da moeda extraída e produzida pela população dificilmente pode ser considerada justa, uma vez que retém grande parte do poder econômico para si. É um mistério para mim como o sistema de governo do Sul funciona. Oficialmente, o Rei tem poder limitado, já que suas ações precisam ser aprovadas por representantes eleitos pela população. Ainda assim, e apesar de toda riqueza concentrada em suas terras, as condições de vida da população não poderiam ser piores. No fim, todo o poder continua concentrado nas mãos do Rei, o que não seria um problema se o Rei se importasse com alguma coisa. Príncipe Hadaward não é seu pai, mas não demonstra nenhum esforço em mudar em nada a situação de seu reino, e isso faz com que eu não seja capaz de mostrar nenhuma simpatia por ele.

Agora sentado na poltrona ao lado de Layla, observo os dois conversando, enquanto minha irmã mexe despretensiosamente no anel em seu dedo. Nunca conheci seu pretendente; ele deveria ser oficialmente apresentado em algumas semanas, mas os planos tiveram que ser alterados dado os acontecimentos recentes. Talvez deva mandar um comunicado ao Reino de Dentro e solicitar que ele seja enviado para representá-los, resolvo assim dois problemas de uma vez já que Adaliz pode retornar às suas funções. Preciso ter certeza que criar laços o suficiente de interesse mútuo para nós duas antes de permitir que parta; pode ser uma boa aliada para falar em meu nome com o Comando quando necessário.

Estou a ponto de me levantar da cadeira e ir eu mesma à biblioteca quando a porta se abre e a Sanatrix entra acompanhada de dois soldados e o pergaminho e um pequeno livro nas mãos. A sala instantaneamente cai no mais absoluto silêncio, todos os olhos virados para a mulher parada na entrada do cômodo. Parece que envelheceu décadas nos últimos dias, grandes olheiras formadas debaixo de seus olhos indicam noites mal dormidas no que eu imagino que seja o reflexo de sua dedicação em trabalhar no corpo do Rei. Ela caminha silenciosamente até mim e deposita o livro em cima da mesa, mantendo o pergaminho consigo.

- Esse é o diário do Primeiro Bibliotecário - explica, quando pego o livreto nas mãos - Há todo tipo de anotações sobre a Profecia, e relatos sobre a Era em que os Deuses caminhavam sobre os Reinos. Acredito que vá ser muito útil na sua Jornada.

- Jornada? - pergunto, devolvendo o livro à mesa. Layla levanta da poltrona e anda na minha direção, parando ao meu lado. O brilho rosado de seu vestido me distrai por um segundo antes que eu estenda a mão em direção ao pergaminho.

- O Ministro precisa ser aquele que lê a Profecia, Majestade - explica a Sanatrix quando não me entrega o rolo de papel em suas mãos. Me esforço para evitar de revirar os olhos e aceno positivamente com a cabeça, enquanto o Ministro anda em nossa direção e toma o pergaminho em suas mãos. Posso ver que ele se esforça para mantar uma feição neutra, mas o pequeno sorriso de satisfação lhe escapa os lábios.

Ele anda até o centro da sala e para, virando de frente para mim. Todos estão olhando em sua direção, aguardando ansiosamente as palavras contidas naquele pedaço de papel velho - que na verdade está em melhores condições do que deveria dado o tempo que existe. Cuidadosamente, ele quebra o lacre e começa a desenrolar o pergaminho, recitando as palavras ali contidas

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top