Capítulo 4

De pé no topo do monte, encaro a imensidão azul das águas a minha frente. Desde menina sempre me perguntei o que existiria para além do horizonte que podemos ver. Jamais saberemos, no fim das contas. Os Deuses nos deram essa terra para cuidar e criar raízes, construir famílias e perpetuar nossa linhagem pelas gerações futuras, sob seus princípios. Me pergunto se os Deuses se arrependem disso.

O dia está ensolarado e a água reflete a luz do sol, criando uma película de gotículas prateadas que dançam sob meu olhar. O efeito é hipnotizante, quase poético, o que parece adequado considerando dia que tenho pela frente.

Já se passaram quatro dias desde a morte do Rei, e o resultado das investigações da Sanatrix não trouxeram respostas. Pelo contrário, a lista de perguntas só parece aumentar. Não posso adiar mais a Cerimônia de Despedida, até eu sei que existe um limite até onde se deve desafiar os Deuses. O Rei está morto e seu corpo deve ser entregue aos Deuses, para que sua matéria e sua alma sejam ofertas para Aqueles que nos criaram e seu legado possa ser eternizado em mármore. Sua morte precisa ser coroada com o surgimento de uma nova vida - a minha vida - para que o ciclo se complete.

Começo a caminhar de volta em direção à cidade, descendo o monte a passos diminutos, repassando mentalmente os últimos dias. Espero que eu esteja tomando as decisões corretas para com o meu Reino e meu povo. O início do meu reinado ainda não foi oficializado, e o Ministro insiste que eu deva usar de cautela. E eu odeio que ele tenha razão.

Um anúncio foi enviado aos outros três Reinos, e representantes de cada um deles chegaram naquela mesma noite, vindos para a Cerimônia em nome de seus Reis. Como a tradição foi quebrada e quatro dias se passaram, eles foram recebidos como convidados no Castelo para uma estadia maior do que a esperada, e inevitavelmente algum nível de politicagem foi praticado, ainda que o momento não pedisse. Layla se incumbiu de todos os detalhes da estadia de cada um dos convidados, e não foi nada além de magistralmente agradável. Toda sua boa vontade e simpatia foi dirigida a eles, fatalmente não sobrando nenhuma para mim. Minha irmã ainda não superou a minha decisão de autorizar a autópsia no corpo do Rei e tem me tratado com a mais educada indiferença nos últimos dias.

O que verdadeiramente me irrita nessa história é o fato de a autópsia não ter trazido os resultados esperados, que eu tinha certeza que traria. Será que fiz a escolha correta? Valeu a pena arriscar a ira dos Deuses?

De onde estou ainda posso ver boa parte da cidade, apesar de não haver muito construído na área em que estou. O Templo, à minha direita, o pequeno lago de carpas à minha frente, logo atrás dos muros do Castelo, os campos abertos que permitem que uma brisa suave torne o dia um pouco mais agradável a cada uma das pessoas que posso ver se dirigindo ao Templo.

Continuo minha caminhada em direção à grande construção de pedra na qual a cerimônia será realizada em poucos minutos. O templo parece especialmente grandioso hoje, ou talvez eu esteja me sentindo particularmente diminuta, esmagada pelo peso da situação e da responsabilidade pelas decisões que tenho que tomar a partir de hoje - decisões que comecei a tomar nos últimos dias. Rezo aos Deuses que sejam as decisões acertadas, que sirvam de alavanca para a recuperação que meu Reino precisa.

Espero que seja a hora certa de assoprar o dente-de-leão.

Finalmente alcanço o pé do Monte, e vejo um homem à minha espera. O Norte não é particularmente frio; nenhum dos reinos é, e era de se esperar que as brisas da costa do Reino de Fora fizessem com que o clima ameno predominasse, especialmente na Ilha onde o Palácio real está localizado. É uma ilha, afinal. Então fico confusa quando vejo Príncipe Tobiah vestindo um pesado manto verde sobre os ombros, com uma Flor, o símbolo de seu reino, em laranja bordada graciosamente próximo ao peito. O verde do manto realça sua pele escura de uma maneira que tenho certeza ser única a ele. Mesmo à distância seria impossível confundi-lo em uma multidão, seu porte altivo e a imponência em seu andar não passam despercebidos enquanto ele caminha a meu encontro.

O Reino de Fora foi o único a enviar um membro da família Real, a princípio pelo menos. Depois de dois dias, Príncipe Hadaward do Reino do Sul veio ao Norte, substituindo a representante real que havia sido originalmente enviada. Deu uma justificativa qualquer sobre estar preso em uma tarefa que exigia sua presença. O Reino de Dentro não se deu ao trabalho, simplesmente enviou a Chefe de Comunicações. Vou lembrar disso.

- Majestade - ele me saúda, levando a mão ao peito e fazendo uma curta reverência com a cabeça. Sorrio para a formalidade impecável vinda desse menino que não deve ter mais do que duas décadas e meia de vida.

- Ainda não fui coroada, meu Príncipe - respondo, com o mesmo grau de formalidade - Me chame de Kya, nenhum título é necessário.

- Nesse caso, por favor me chame de Tobiah - responde, sorrindo. O sorriso gentil em seu rosto conflitua com a formalidade em sua postura, o que me faz soltar uma pequena risada. O olhar confuso em seu rosto diante da minha reação faz meu sorriso aumentar. Ele pisca algumas vezes, sobrancelhas levemente enrugadas, o que adiciona alguns anos em sua feição juvenil. Por fim, ele sorri de volta e me oferece o braço.

- Permita-me acompanhá-la, Kya? - oferece, e não posso evitar um sorriso. Entrelaço meu braço no seu com alguma dificuldade, já que ele é consideravelmente mais alto que eu, mas encontro uma posição confortável por fim.

- É um Reino surpreendente esse que tens sob seu domínio - diz, os olhos acobreados vagando pelo caminho à sua frente, alternando entre o Templo e o Palácio que pode ser visto à distância. De onde estamos, na península do Reino, não há muito a ser visto a não ser essas duas grandes construções. O coração do Reino, onde o comércio e escolas e os vilarejos estão localizados ficam a quilômetros de distância de onde estamos agora.

- Vejo que teve tempo de conhecer a área, por fim - respondo, lembrando de nossa conversa na noite anterior - Eu te avisei que não há outra alternativa além de se apaixonar pelo Norte.

- De fato, é um reino grandioso. Sua irmã me acompanhou e foi um excelente guia - ressalta. Suspirando, continua - Tenho que admitir que há sim muito potencial para suas terras, Kya. Há muito que possa ser feito aqui, mas eu não precisava vir até aqui para saber disso. Meu pai, o Rei, tem demonstrado interesse nessa região por anos, mas seu pai nunca pareceu disposto a fazer um acordo. Ele dizia que o Norte tem estado sob o controle do Norte desde o início dos tempos e não seria ele o governante a mudar isso.

- Concordo com meu pai. Não aceito ver o meu reino sob o domínio de nenhum governante que não seja nascido e criado em nossa terras. E é por isso - digo, parando e olhando em sua direção - que a proposta que te fiz é a resposta mais vantajosa para ambos os nossos Reinos.

Tobiah me olha de cima, fixamente dentro dos meus olhos, vejo a indecisão cruzar seu olhar diversas vezes em um segundo.

- Kya... - sussurra - Eu fico lisonjeado com a proposta, acredite em mim. Mas... Eu não... tenho quaisquer sentimentos por você - diz, e vejo toda a dor daquelas palavras cintilando em seus olhos - Quero dizer, não ainda pelo menos. E não é que não tenha nenhum sentimento, eu te admiro muitíssimo e-

Usando de todo meu autocontrole para segurar uma risada, liberto uma das minhas mãos e toco seu rosto suavemente, interrompendo-o no meio da frase antes que ele hiperventilasse.

- Tobiah... - digo, no mesmo tom de voz receoso que ele usou comigo um segundo atrás - Eu também não.

A confusão explode em seu olhar e ele franze a sobrancelha, a boca levemente aberta no que só posso concluir que seja um estado de total confusão. Não consigo evitar a gargalhada dessa vez.

- Oh meu querido. Eu te conheci há três dias, acha que me apaixonei tão rápido? Minha proposta de casamento nada mais é do que um acordo político que vai beneficiar ambos os nossos reinos. Seu pai finalmente consegue as áreas de cultivo que tanto almeja, e eu garanto que meu povo vá ser bem abastecido enquanto meu Reinado durar, e garanto que o Norte continue sendo governado pelo Norte.

Vejo seus olhos se iluminarem em entendimento e um sorriso tímido surgir em seu rosto. Suas bochechas cor de caramelo alcançam um tom rosado discreto e ele acena positivamente em concordância.

- Sendo assim, gostaria de mais algum tempo para pensar na sua proposta, Princesa - pede, gentilmente, ao que concordo com a cabeça. É a minha vez de oferecer o braço para ele, o que arranca de sua garganta uma risada adorável, ao que ele aceita meu braço e retomamos nossa caminhada em direção ao Tempo.

Vim observando o Príncipe Tobiah desde o momento em que chegou ao Palácio, quatro dias atrás. Sua educação e gentileza o destacaram dos demais. Mostrou desde o primeiro minuto uma preocupação genuína com meus sentimentos e os de Layla em relação à perda de nosso pai e, ao contrário dos representantes dos outros reinos, em momento nenhum mencionou a Coroação ou como esperava que meu Reinado trouxesse bonança à todos os Reinos. Sua postura me despertou interesse - ou era realmente uma pessoa de uma integridade ímpar, ou um excelente ator, o que de qualquer forma merecia respeito pelo bom trabalho.

O fato de ter recusado um compromisso que indiscutivelmente seria vantajoso ao seu reino por pensar que estaria me enganando adicionou alguns pontos a seu favor.

Chegamos à entrada do Templo e encaro a escadaria à minha frente, respirando fundo por um momento. Quero fugir daqui, não quero nunca ter que encarar o que está atrás daquelas portas, e quero que tudo acabe logo. Sinto lágrimas brotando no fundo dos meus olhos e não consigo forçar minhas pernas a se moverem.

Tobiah toca meu ombro suavemente, me fazendo olhar em sua direção. Seca gentilmente uma lágrima que escorreu pela minha bochecha sem que eu notasse e deposita um beijo suave na minha mão, antes de se retirar com uma reverência e começar a subir a escada.

Fico confusa por um segundo - e irritada por ser abandonada desta forma - até que sinto meu braço sendo tomado por outra pessoa.

Layla.

Ela olha para mim e posso ver que esteve chorando. Sorri gentilmente em minha direção e começamos a subir a escadaria, seguidas pelos guardas que estavam acompanhando minha irmã.

Subimos as escadas em silêncio. Não consigo pensar em nada, e ao mesmo tempo não consigo parar meus pensamentos. Lembro dos olhos avermelhados da minha irmã e a invejo. Ela está sofrendo a perda do Rei. Eu não tenho esse direito. Desde o primeiro minuto após recebermos a notícia, precisei tomar a frente da situação e assumir a responsabilidade por qualquer decisão feita a partir daquele momento. Esse é o primeiro dia do resto da minha vida, e a morte daquele que me trouxe à vida é apenas parte do que estará acontecendo hoje.

Alcançamos o topo da escadaria apenas alguns segundos após Príncipe Tobiah. Vislumbro o interior do Templo, uma construção grandiosa de pedra, adornada em violeta e dourado, as três espirais trianguladas, símbolo do nosso reino, por todo canto no interior do prédio. O Templo é uma construção grandiosa, podendo comportar centenas de pessoas, mas ainda assim não permite a presença de todos os integrantes do Reino. Por isso, nos arredores do Templo, cada espaço disponível ao redor da grandiosa construção é ocupado por alguém, um morador comum, padeiro, ferreiro ou professor, estudante ou cuidador, estão todos aqui para prestar o seu último adeus ao Rei que os serviu pelo último século. Daqui de cima, do topo da escadaria, não parecem nada além de pontinhos distandes segurando uma vela, mas posso sentir o amor e admiração e sofrimento de cada um, de cada pessoa de pé prestando sua homenagem ao meu pai.

Me pergunto se a Cerimônia da minha mãe foi assim também. Não cheguei a conhecê-la - ela morreu no parto; duas crianças foram demais para seu corpo aguentar - mas todos ao redor do Reino parecem amá-la incondicionalmente, mesmo tantos anos após sua morte. Por toda minha vida ouvi histórias sobre como ela era adorável e carinhosa, sempre preocupada com todos e disposta a ajudar. Suponho que tenha sido dela que Layla herdou todo seu carisma.

Entro no Templo, que não está mais vazio que o lado de fora. Cada espaço possível de ser ocupado, assim o está. Layla liberta meu braço, e com um aperto suave em minha mão, me deixa, seguindo seu próprio caminho até a frente, onde estão esperando por nós para dar início à Cerimônia.

Caminho pelo corredor forrado com um tapete violeta. A cada passo que dou, sinto os olhares de cada uma das pessoas ali presente sobre mim. Suas expectativas. Suas preocupações. Suas esperanças e decepções. Caminho. Presto atenção em cada passo. Todos os olhos estão sobre mim, não posso vacilar.

Finalmente, após o que parece uma eternidade, chego ao fim do corredor. À minha frente posso ver a mesa sobre a qual o corpo do rei está respousado, coberto por um grosso manto violeta. A Sanatrix encontra-se ao seu lado, apenas aguardando que eu chegue para se retirar e se sentar na primeira fileira ao lado do Ministro.

Avisto Layla à distância, assim como os representantes dos outros reinos. Me aproximo da mesa, localizada perfeitamente centralizada no altar. Curvo minha cabeça sobre o corpo do Rei, coberto pelo seu manto, tocando-o com a minha testa, e após uma rápida oração, respiro fundo e me viro de modo a encarar a multidão à minha espera.

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