Capítulo 34



Quando o barco atraca em um porto improvisado à extremo leste do Reino de Fora, no último pedaço de terra antes da fronteira com o Norte, o sol começa a se pôr por detrás das montanhas.

Um riacho de águas convidativas cintila sobre o tom alaranjado que preenche o céu, chamando-me pelo nome para me afogar em seu leito acolhedor.

Estou em casa.

Finalmente.

Por um momento, esqueço que estou com pressa. Esqueço minha missão, esqueço meus objetivos, e apenas encaro o nada. O tudo. Saboreando o ar carregado com o cheiro familiar que me cerceou durante toda a vida.

Descalça, sinto a grama espetando minha pele e jogo a cabeça para trás, oferecendo aos céus meus agradecimentos silenciosos, que são interrompidos por uma risada que irrompe minha garganta.

O absurdo disso tudo está prestes a acabar.

Estou pronta para tomar minha vida de volta.

Ouço sussurros agitados atrás de mim quando Laurunda retorna. Assim que atracamos, ela se ofereceu para deixar o grupo e correr até a vila mais próxima. A mulher volta com um pequeno carregamento de comida, cantis de água, e o que parece ser informação relevante e nada agradável pela expressão em seu rosto.

- O casamento da Princesa Layla vai acontecer essa noite – ela diz, mastigando cada palavra, lentamente pronunciando cada sílaba.

As palavras demoram a começar a fazer sentido. Encaro Cathal, que olha para a mulher com incredulidade estampada em seu rosto. Sua boca cai em um círculo perfeito e ele não consegue esconder a surpresa em sua feição. Quando lágrimas cintilam em seus olhos e ele os fecha, com força, contorcendo-se em uma careta de dor, me aproximo e apanho a Adaga em minhas mãos.

Um grito furioso escapa por sua garganta quando corto a corda que o restringia, liberando-o para o mundo, permitindo que ele absorva e externe a raiva que acomete sua alma.

Em um grito profundo, ele chuta uma pedra com força, e seu grito de raiva é instantaneamente substituído por um grito de dor.

Não foi a escolha mais inteligente.

Ele se sente traído, isso é claro.

Por mais que seja incapaz de confiar em sua presença, posso ver que, o que quer que tenha feito, fez em nome do seu amor por minha irmã.

Lembro-me mais uma vez de nossa conversa antes de embarcarmos de volta para cá, a paixão em seus olhos ao falar de Layla, a sinceridade destrutiva quando disse que não acreditava que eu fosse merecedora do Trono.

Ele não imaginava ser traído dessa forma.

O que, pelos Deuses, você está fazendo, Layla?

Olho para o céu, absorvendo suas cores. Não falta muito tempo até que o sol se vá. Parece que estão seguindo as Tradições, seguindo os mandamentos para a realização de um Casamento Real. Se for esse o caso, temos apenas algumas horas até que a Cerimônia comece.

Vejo Cathal sentado na pedra que acabou de chutar, a cabeça enfiada entre as mãos, os dedos puxando os fios de seus cabelos.

- Precisamos ir – anuncio, chamando para mim a atenção de todos.

Laurunda ergue uma bolsa que parece pesada.

- Trouxe roupas limpas. Temos tempo para um banho?

Aceno com a cabeça.

Alguns minutos não vão fazer mal.

A noite é silenciosa aqui, nesse vão de terra vazio entre os Reinos. Ao longe, o Castelo do Reino de Fora brilha, destacando-se na noite escura, como um ponto perdido no meio do mar, em uma ilha afastada do continente.

Quando estamos todos prontos para partir, vou de encontro a Tobiah que encara o ponto luminoso.

- Seus pais – digo, e ele acena com a cabeça. – Eles devem estar preocupados com você.

Ele concorda em silêncio, seus lábios apertados em descontentamento. Ele não precisa dizer nada para que eu entenda o quanto ele gostaria de ir até lá, dizer que está bem, que está vivo, que está de volta.

Tobiah fez tanto por mim até aqui, sem que eu nunca tenha pedido nada. Sem que nenhuma promessa de recompensa fosse feita.

- Por que você não pega o barco e vai até lá? Tenho certeza que eles vão ficar felizes em te ver – sugiro, e ele me olha com uma ruga entre os olhos. – A menos que você não saiba velejar – provoco, e ele sorri.

Suspiro aliviada, incomodada com minha própria reação. Não estou acostumada com sua feição desgostosa. E não gosto disso.

- Não temos tempo para isso – Tobiah diz, dando os ombros e se aprumando em sua melhor postura. Ele me oferece o braço, que não aceito.

- Você não precisa ir – declaro.

Tobiah bufa e encaixa meu braço no seu, caminhando em direção à Laurunda e Cathal.

- Você perdeu o juízo, Majestade – ele provoca, com um sorriso triste nos lábios.

Os três me olham, esperando por instruções. Solto um grunhido contrariado. Estendo o braço e arranco do manto de Tobiah o broche com o símbolo de seu Reino. A rosa dourada é pesada para seu tamanho, e é o marco da família real. Dou dois passos em direção à Laurunda e paro à sua frente.

Pergunto-me por um segundo se a lealdade inabalável de Tobiah me cegou. Se perdi minha capacidade de julgamento, se um voto de fé a essa altura dos acontecimentos é uma escolha sensata.

Estico a mão e entrego a ela o broche.

- Preciso que você vá até o Castelo e avise aos pais de Tobiah sobre a nossa volta – peço. Não é uma ordem, e sei que ela pode perceber isso pelo meu tom de voz.

Larunda me olha relutante por um segundo e, por fim, acena com a cabeça, virando-se em direção ao barco sem que nenhuma palavra seja dita.

- Parece que somos só nós três – digo aos dois homens que me olham e, em silêncio, começamos a curta caminhada em direção à minha casa.

O burburinho é acolhedor. O Templo se projeta à distância, iluminado em violeta, e posso ouvir a suave música ecoar e ser dispersada pelo vento frio que corta a noite.

A cada passo que dou, a tensão em meu corpo parece aumentar. Sinto meu coração bater acelerado e o peso da Adaga aumentar em minhas mãos.

Os arredores estão vazios, desertos, abandonados. Posso somente imaginar que todos estão prontos, esperando a cerimônia ter início.

Se já não tiver se iniciado.

Os dois homens ao meu lado caminham com segurança, seguindo meus passos em silêncio. Sequer presto atenção no caminho, andando intuitivamente guiada por anos de memória gravada em mim. Tenho certeza que sou capaz de percorrer o Reino inteiro de olhos fechados sem jamais me perder.

Paro ao pé da escada que leva ao Templo, levando meu olhar para cima, encarando a entrada. Vejo soldados, plantados à porta, olhando para baixo, tentando identificar-nos. O que é impossível na escuridão da noite, mas também não há motivo para que eu fique parada aqui.

Ainda sem dizer uma palavra, começo a subir os degraus, um passo de cada vez, em um ritmo constante.

- Qual o seu plano? – Cathal pergunta, sussurrando à minha esquerda. Essa é uma excelente pergunta para a qual não tenho resposta.

Alcanço o último degrau e vejo um dos guardas caminhar em minha direção. Sob a luz da construção, vejo seu olhar desconfiado quando leva a mão ao seu cinto, segurando o que suponho ser alguma lâmina afiada.

Ele abre a boca, mas a palavras ficam presas em sua garganta quando o reconhecimento atinge seu olhar. Incrédulo, leva seu joelho ao chão.

- M-majestade. – Sua voz, trêmula e surpresa, me atinge de uma forma que não esperava.

Nas últimas semanas, o único reconhecimento ao meu título foi feito na forma de ironia e sarcasmo por parte dos meus companheiros de viagem. Após o que parece ser uma eternidade, o guarda voluntariamente reconhece minha presença e presta as honras devidas.

Mas não me sinto honrada.

Toco seu ombro, fazendo-o olhar em minha direção e, com um gesto, ordeno-o que fique de pé.

- Abra a porta para mim – ordeno.

Vejo o conflito em seu rosto, enquanto ele tenta decidir entre obedecer prontamente ou se abster de interromper uma cerimônia oficial. O homem acena a cabeça, por fim, liberando a entrada.

Ao dar o primeiro passo para dentro da construção, deixando meus pés tocarem do tapete adornado que se estende por todo o longo corredor, sou inundada pela voz ressoante do Sacerdote, que imediatamente cessa, inundando o Templo em um silêncio esmagador.

Pouco a pouco, todos os presentes de viram em minha direção, e ouço exclamações diversas espalhadas pelo salão. Vozes surpresas e alarmadas, questionamentos abalados.

Não consigo evitar a memória da última vez em que estive aqui. Parece que foi em outra vida.

Em meus pensamentos, ainda vejo o corpo do Rei, repousando em seu descanso eterno. Vejo Layla me entregando a Coroa, vejo o Medalhão da Profecia. E percebo como minha jornada foi diferente de tudo o que eu esperava.

E, ainda assim, aqui estou eu. De volta ao ponto de partida.

Sou arrancada de meus devaneios quando vejo todos os convidados, um a um, ajoelharem em seus lugares em uma saudação respeitosa.

Reconheço a maioria dos rostos ali presentes. Rostos pertencentes às famílias do Reino, que representam o meu povo, as pessoas a quem jurei devotar minha vida. Convidados de outros Reinos, de famílias nobres, que me encaram contrariados por se verem obrigados a se ajoelharem diante de mim, mas incapaz de deixar de seguir a Tradição.

De pé, ao fundo, o Ministro me encara com fúria em seus olhos. Ele se inclina em direção à Layla e sussurra algo em seu ouvido, sem nunca parar de me olhar. E é então que minha irmã parece notar minha presença pela primeira vez.

Virando-se em minha direção, ela leva as mãos à boca, surpresa. Sem hesitar, corre em minha direção, desvencilhando-se da mão de Hadaward que tenta impedi-la.

Ouço seu nome ser chamado em um grito autoritário que ecoa e se perde por entre as paredes de pedras acinzentadas.

A luz esbranquiçada que inunda o ambiente reflete as pedrarias de sua tiara enquanto Layla se aproxima, cintilante como uma revoada de vaga-lumes que compete com um céu estrelado em uma noite sem nuvens.

O dourado, cor símbolo do Reino do Sul, colore suas vestes que voam baixo pelo tapete, enquanto seus pés tocam o chão em passadas pesadas e sonoras.

O impacto de seu corpo contra o meu quando seus braços me envolvem e me apertam contra si faz com que eu perca o equilíbrio momentaneamente.

- Eu pedi tanto aos Deuses que você voltasse – ela sussurra ao meu ouvido, a voz embargada em lágrimas que escorrem por seus olhos e molham meu ombro.

Retribuo seu abraço, quente e cálido, que me traz de volta para casa. Ouço o burburinho recomeçar ao meu redor, mas não me movo. Permito-me afogar no abraço da única pessoa que esteve ao meu lado em todos os momentos de minha vida até aqui.

Layla sempre foi meu porto seguro, a pitada de doçura e gentileza que me falta, o escape do mundo recheado por imperfeições.

Liberto-me de seu abraço e seguro suas mãos, trêmulas por sob a luva que adorna seu vestuário. É como se todos os quadros existentes nos quatro Reinos tenham sido pintados usando-a como inspiração. Sua beleza irradia e trespassa as barreiras do imaginável e, mesmo agora, com os lábios trêmulos e o rosto borrado pelas lágrimas, Layla exala de cada poro de seu corpo que nasceu para ser uma Princesa.

Mas eu nasci para ser Rainha e não posso me permitir ser arrastada pela névoa de emoção que ameaça sufocar meu peito.

- Tobiah – chamo, e sinto mais do que vejo ele se aproximar de mim -, esvazie o salão.

Consigo recuperar a firmeza em minha voz quando vejo o Ministro e Hadaward, de pé ao altar, parados, como presas arredias esperando o bote de uma fera faminta. Me olham com cuidado, analisando cada movimento meu, estáticos. Mas não se movem, não se atrevem a dar um passo em minha direção.

Atitude bastante corajosa vinda de dois homens que acham que têm qualquer capacidade de governar esse Reino.

Libero o caminho quando a massa de pessoas começa a sair, esvaziando rapidamente as fileiras de bancos de madeira escura que as abrigavam minutos atrás. O último a deixar o Templo é o Sacerdote, que para por um momento à porta, nervosamente olhando ao redor. Quatro guardas permanecem, recostados à parede, alertas. Tobiah tranca a porta atrás de si com um estrondo, e escuto Layla engasgar sonoramente, tomando minha atenção para si.

- Cathal... – Sua voz não passa de um gemido sofrido enquanto lágrimas escorrem torrencialmente por seu rosto ao notar pela primeira vez a presença do homem.

Ela solta minhas mãos e dá um passo em sua direção, mas Cathal não se move. É difícil saber o que se passa em sua cabeça. Seu rosto parece cravado em mármore, em uma expressão firmada de modo a ser impossível decifrar seus sentimentos. Ela se aproxima, por fim, estendendo a mão para tocar seu rosto, e um grunhido de surpresa escapa por sua garganta quando ele agarra seu pulso.

- Como você pôde? – ele pergunta, em um rosnado, enquanto aponta para Hadaward com a outra mão. – Como pôde fazer isso comigo?

A última frase ressoa em um grito enquanto ele aumenta a força de sua mão ao redor do pulso de minha irmã, e vejo um guarda dar um passo à frente, pronto para intervir.

- Espero não ter que me dar ao trabalho de mandar que você a solte – sibilo, e ele mantém seu olhar fixo ao de Layla por um segundo mais antes de se afastar.

Como se aceitando que não há como escapar da minha presença, o Ministro começa a andar em minha direção, em passos lentos. Sua postura é altiva, sua cabeça, erguida de modo a olhar para mim de cima. Quando me alcança, um sorriso corta seu rosto, mas o ódio mal contido em seus olhos faz com que seja impossível não saber o quão insatisfeito ele está em me ver.

- Majestade – ele me cumprimenta com uma meia reverência, artisticamente movendo sua mão. – Bem-vinda de volta.

Não consigo evitar que um sorriso se espalhe por meu rosto diante da sua prepotência. Sou obrigada a admitir que não há ninguém melhor em jogos políticos do que o velho homem à minha frente.

Seu ponto fraco, contudo, é sua incapacidade de aceitar que seus planos são falhos.

Que suas atitudes frívolas são como almas mortas que voltam para assombrá-lo à noite.

Que ele, ao contrário do que acredita, não é a pessoa mais inteligente no cômodo.

O que ele não percebe é que sua arrogância vai ser sua morte.

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