Capítulo 32

É um quarto. Com tantos outros no Castelo, sem nada em especial. Grande e espaçoso, três camas distribuídas pelo cômodo. O silêncio esmagador que ecoa pelas paredes cor de creme poderia indicar a completa ausência de vida, mas não é o caso.

A primeira a notar minha presença é Laurunda, sentada sobre o colchão, suas costas na parede. Seu queixo está apoiado sobre seu joelho dobrado e seus olhos me fuzilam. O brilho castanho cintila promessas de morte e sofrimento e sorrio em sua direção. Não esperaria nada diferente disso.

Ela levanta as mãos do colo, mostrando-me a corda amarrada ao redor se seus pulsos e, para ser sincera, estou surpresa por seus pés estarem livres. Caminho em sua direção e, sem que nenhuma palavra seja dita, alcanço a Adaga por debaixo do vestido e corto sua restrição.

A corda não oferece nenhuma resistência, o que me faz lembrar o quão afiada essa lâmina é enquanto não está servindo como um receptáculo para todo o mal existente no mundo.

- Majestade, a que nos deve sua ilustre presença? – Cada palavra saída da boca dela destila o ódio contido em seus olhos desde o começo. Desde que me viu, desde o momento em que percebeu que não tinha escolha além de seguir essa jornada insana.

- Sabe – digo, sentando ao seu lado, percorrendo os olhos pelo quarto em busca dos outros dois. Vejo Cathal deitado na cama à direita, a alguns metros de distância. Procuro por Tobiah mas não o encontro -, sei que é difícil de acreditar, mas a verdade é que estou do seu lado. – Ela bufa – Você claramente não pertence a nenhuma das famílias nobres do Sul, ou não estaria aqui. A única outra opção é que você passou a sua vida sendo explorada, ou viu as pessoas que você se importa nessa situação.

A expressão no rosto dela alterna rapidamente entre dor e raiva, e sei que estou certa.

- Sinceramente, Laurunda, eu não tenho tempo para isso, não agora. Daqui a alguns dias vou estar mais do que feliz em sentar e tomar um chá e discutir todos os problemas que você tem comigo. Chá? Não, provavelmente vinho. Cerveja? Você escolhe. Mas agora eu tenho um Reino para salvar, e você pode achar que isso não é problema seu, mas acredite em mim, é sim. – A incredulidade em seus olhos já era esperada. – É problema seu porque se eu não voltar para casa, se eu não retomar a minha Coroa, outra pessoa vai. E essa outra pessoa não poderia se importar menos com pessoas como você.

Ela me encara por um segundo, e outro mais. Sua expressão, sempre rígida e defensiva, se desfaz por um segundo. Posso ver em seus olhos uma garota perdida com um passado conturbado, sofrido, que jamais deveria ter existido. Vejo sua relutância em confiar em palavras vindas da boca da personificação de todo o mal, de tudo de ruim que já aconteceu em sua vida.

E é quando, finalmente, a luz me atinge.

Para ela, eu sou o mal. Se ela tivesse que escolher, agora, alguém para acertar com essa Adaga, essa pessoa seria eu. Ou qualquer outra pessoa com poder nos quatro Reinos que foi omissa durante todo esse tempo.

Para ela, eu sou a Maldição.

Em minha certeza absoluta sobre meu destino, em minha certeza de que, quando estivesse no trono faria dos Reinos um lugar melhor, me omiti durante dois séculos inteiros. Tantas coisas que poderia ter feito. Eu esperei, esperei até ser seguro, esperei.

É verdade que, no momento em que a Coroa repousou com segurança sobre minha cabeça, não hesitei ou esperei um minuto sequer para começar a trabalhar. Mas, ainda assim, desperdicei muito tempo.

Eu fui criada para governar, em todos os sentidos possíveis, e não desempenhei minha função.

E, agora, o futuro do meu povo pode estar nas mãos de pessoas que se importam somente com seu próprio benefício.

Sinto minha boca cair aberta quando a certeza me atinge. 

Estava diante dos meus olhos o tempo inteiro.

Como pude duvidar do óbvio por tanto tempo?

Eu sei quem é ele.

Laurunda está de pé na porta, vigiando a saída conta algum perigo mortal que só ela enxerga.

É verdade, Neka não é a mais gentil das Deusas, o que, por sinal, é realmente confuso. Mas ela não vai matar ninguém, ela não pode.

O que também não faz sentido, ela é uma Deusa, poderia fazer o que quisesse. Esse sistema dos Deuses é completamente desconexo.

Cathal continua dormindo profundamente. Lauraunda me explicou que eles combinaram de dormir em turnos, e ele tinha acabado de pegar no sono quando entrei no quarto. Abro, com cuidado para não fazer barulho, a porta anexa que dá acesso ao que parece ser um banheiro. Parada, com os braços cruzados, recosto no batente e observo Tobiah de costas para mim.

Ele está com a cabeça abaixada sobre um tonel de água, lavando o rosto. Sua camisa, em tão bom estado quanto meu vestido, está enrolada até a altura do cotovelo, revelando arranhões e cicatrizes antigas.

Caminho em sua direção e, sem que ele tenha notado minha presença, toco seu braço. Seus olhos encontram os meus, repletos de confusão e incertezas.

Lembro das palavras de Zader antes de entrar no quarto.

Talvez possamos, juntos, começar um novo mundo no futuro

Talvez possamos. É difícil contemplar a imortalidade quando não se está preparado para isso, e ainda não consigo entender bem o que isso significa, mas talvez possamos. No futuro.

Mas agora, aqui, isso não importa.

Percorro os dedos pelas linhas esbranquiçadas em sua pele escura.

- Algumas são tão antigas que não lembro de onde vieram – diz. – Mas são todas marcas de colheita. Meu pai nunca gostou da ideia do Príncipe Herdeiro estar metido no meio de plantações, mas não consigo conceber a ideia de ser um bom governante sem saber exatamente quais são as necessidades do meu po-

Meus lábios tocam os dele antes que eu possa me dar conta do que estou fazendo. Parte de mim o beija unicamente para que ele pare de falar. Mas a maior parte de mim o beija vislumbrando a possibilidade de um futuro próximo, um futuro onde a paz tenha sido alcançada e possamos governar nossos Reinos, lado a lado, e construir uma vida melhor para nosso povo.

- Você pode me contar todas as histórias sobre todas as colheitas daqui a alguns dias, quando tudo isso estiver acabado – digo. – Temos outras prioridades agora.

Corto as cordas que amarram suas mãos, como as de Laurunda, e percorro os dedos por seu pulso por um segundo antes de mover o olhar para o seu rosto. Ele sorri em minha direção.

- Lidere o caminho, Majestade. – Adoração genuína pode ser ouvida em sua voz e não posso evitar de sorrir.

Voltamos ao quarto e Tobiah se encaminha diretamente para a porta onde Laurunda está e, quando ambos estão prontos para ir, viram em minha direção.

- Fechem a porta por favor. Vou estar aí fora em um minuto.

Laurunda dá os ombros e vai para o corredor. Tobiah olha para mim por um segundo mais e acena com a cabeça antes de segui-la. Sento na beirada da cama de Cathal e o cutuco com o cabo da Adaga. Ele acorda em um pulo, olhando ao redor, até focar em mim. Seus olhos são inquisitivos e cautelosos.

Sorrio em sua direção, um sorriso frio e mortal. Giro a lâmina entre meus dedos.

- Temos muito o que conversar, cunhado. Comece a falar.

O dia está ensolarado fora das acinzentadas paredes do Castelo. As poucas e esparsas nuvens no céu permitem que os raios do sol aqueçam minha pele enquanto caminhamos em direção ao pequeno porto à leste.

Posso ver o barco à distância, não porque trata-se de uma grande embarcação, mas porque o horizonte plano permite que minha vista se estenda ao longe.

Nos aproximamos e me deparo com os dois homens, os gêmeos, que nos trouxeram até aqui.

Zader e Arath conversam entusiasmadamente, gestos amplos sendo feitos no ar. Não consigo entender o conteúdo da conversa, mas Arath apresenta uma expressão tranquila como nunca antes vi. Quando notam nossa presença, imediatamente se calam e caminham em nossa direção.

- Aqui está sua carona para casa. – Arath aponta para o barco, grande o suficiente para confortavelmente acomodar dez pessoas. – Já decidiu a rota que vai fazer?

Olho para Cathal e ergo uma sobrancelha, esperando uma resposta. Ele bufa.

- É mais rápido se atracarmos no Sul, podemos ganhar meio dia se terminarmos de cruzar a cavalo. Mas vai ser impossível passar despercebido.

Principalmente se estiver tudo funcionando como o esperado e o Sul estiver enfrentando a guerra civil planejada. Ele está certo. A melhor opção é atracar no porto do Reino de Fora mais próximo ao Norte e terminar a viagem de lá. Com sorte, não teremos nenhum problema.

Tobiah não me pergunta, em momento algum, o porquê de Cathal continuar com as mãos amarradas desde que saímos do quarto, apenas se limita a segurar seu braço e conduzi-lo.

Sua confiança cega em mim é, ao mesmo tempo que a maior prova de lealdade que eu poderia pedir, consideravelmente preocupante.

Toco seu braço e preço que entregue Cathal à Laurunda, mas ainda mantenho minha atenção voltada aos dois. Sei que são amigos, e não tenho certeza sobre quais as implicações disso.

- Preciso te pedir um favor – digo a Tobiah que me olha com atenção.

- O que você precisar.

- Preciso que você me prometa que não vai se deixar levar cegamente pelas minhas vontades – peço.

Ele me olha, confuso, como se em minha testa tivesse nascido um chifre, como aqueles de animais místicos descritos nos livros antigos.

- Kya, não são vontades, são delegações. Você é minha Rainha, nossa Rainha. Sem considerar que você vai ser minha esposa. – Ele sorri e se inclina em minha direção, sussurrando em meu ouvido. – E todo mundo sabe que é a mulher que manda no relacionamento.

Sorrio e reviro os olhos.

- Mas entendo o que quer dizer – ele continua. – Não perguntei o motivo de Cathal estar amarrado e Lauruna solta quando, até onde me consta, deveria ser o contrário, porque tenho certeza que você tem motivos para fazer as coisas dessa forma – explica. – Não significa que não vou, jamais, questionar suas decisões, Kya. Você é a pessoa mais capaz para esse trabalho, mas não significa que não vá cometer erros. Vou fazer o possível para te ajudar a evitar que isso aconteça.

Olho em sua direção e o analiso com atenção.

Lembro do nosso encontro, ao pé do monte, pouco antes do enterro do Rei. Lembro de sua recusa em se casar comigo por não querer me iludir, lembro de sua decisão em vir nessa jornada por não querer confiar a outra pessoa a responsabilidade com minha vida. Meu pai gostaria dele.

- Você vai fazer o que for preciso – peço. – Não importa o que seja. A prioridade é o povo, o Reino.

Ele balança a cabeça em discordância.

- Minha prioridade é você. – Ele toca meu rosto e segura meu queixo, fazendo-me olhar em sua direção. – Enquanto o Reino for sua prioridade, então será a minha também. Mas minha prioridade é você.

Assinto com a cabeça e abro a boca para responder, mas sou interrompida por uma voz cortante e ferina atrás de mim.

- Achei que sua decisão tivesse sido tomada, Kyara. – Neka cospe as palavras em minha direção e viro para encará-la. – Vejo que estava enganada ao pensar que sua prioridade seria salvar seu Reino. Aqui está você, perdendo seu tempo com essas – ela acena com a mão – pessoas.

Deusa ou não Deusa, essa mulher é irritante.

- Essas... pessoas – imito seu gesto com a mão -, vão comigo.

Seu olhar complacente não deixa seu rosto quando o sorriso debochado cruza seu semblante.

- Se você acha que vou esperar outros quinhentos anos porque a princesinha se recusa a fazer as coisas do meu jeito, você está muito enganada. Nada, nada, vai ficar no caminho dessa vez. Nem que eu tenha que, eu mesma, matar esse seu amiguinho.

Ele aponta o dedo para Tobiah, que ameaça dar um passo em sua direção. Sei onde ele está indo com isso, sei que vai tentar colocar-se entre eu e ela. Sei também que ela acha que todo mundo é estúpido o bastante para aceitar quaisquer ameaças, que ela acha que não tenho ideia de como funciona a dinâmica de poder aqui.

Realmente não entendo a fundo, a forma como tudo foi estabelecido e como funciona é irreal demais para fazer qualquer sentido. Mas sei, também, que ela precisa de mim tanto quando eu dela. Talvez mais.

Em um movimento só, apanho a Adaga e aponto em sua direção, a ponta afiada tocando seu pescoço. Ouço Zader gritar meu nome e vejo os olhos de Neka se arregalarem.

- Tobiah, querido – chamo. – Leve todos para o barco. Estamos de partida. Certo? – confirmo com a Deusa, que destila ódio em seu olhar.

- Você vai se arrepender disso – cospe. Dou os ombros.

Vivi a minha vida inteira ouvindo que os Deuses me puniriam, pelo menos agora há um motivo para isso.


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