Capítulo 21
Não consigo entender a cena à minha frente. Simplesmente... não faz sentido. É tomada por um impulso que ignoro a dor excruciante que circunda minha perna e me forço para frente. Quero gritar quando apoio o pé no chão, e acho que grito, mas meus gritos se perdem por entre os gritos deles. Alcanço Tobiah primeiro. Ele está de joelhos no chão, as duas mãos em volta da cabeça, unhas cravadas em sua própria pele. Um grito gutural sai de sua garganta, apenas mais um perdido entre tantos outros, mas, ainda assim, diferente. Posso ouvir seu grito de agonia, sua voz grossa corta o ar e penetra meus ouvidos com clareza, assim como os gritos distantes de Lauruna e Cathal. Posso ouvi-los.
Os outros gritos... não sei de onde vêm, não tenho certeza de qual direção. Não chegam a mim como vozes perdidas, mas como uma onda de energia sufocante, como se alguém gritasse dentro da minha cabeça. Como se eu mesma estivesse gritando em meus pensamentos, implorando por libertação. Só que não sou eu, não é minha voz, é a voz de milhares de homens e mulheres misturadas no compõe uma sinfonia distorcida.
É difícil andar, não só por causa da minha perna machucada. Parece que uma massa de ar me empurra para trás a cada passo que dou. Mas, mesmo assim, percebo que estou melhor do que os outros três. Tobiah não é o único jogado no chão, incapaz de se mover; Laurunda e Cathal também estão na mesma situação. É como se a força dos gritos os estivessem prendendo na grama negra pontiaguda com cheiro de morte na base do monte que acabamos de descer, onde estamos parados. Começo a me perguntar se o nome da Cordilheira é literal. Almas Perdidas.
Foi piorando com o tempo. Quando alcançamos a base da cadeira de montes e montanhas, a grama deixou de ser um verde brilhante e foi substituída por um tom acinzentado. Não demorou muito para se tornar completamente escura. O ar foi ficando mais pesado, o dia foi perdendo a luz. O curioso é que não parece me afetar tanto quanto aos outros.
Com esforço, mal conseguindo ignorar a dor, puxo Tobiah pelo braço, tentando fazer com que fique de pé. Precisamos sair daqui. A ponte está logo ali, apenas alguns metros de distância, só precisamos andar para a esquerda no terreno irregular coberto por pedras soltas. Ele levanta a cabeça e me olha, os olhos castanhos escurecidos, olhando perdido para os lados, como se fosse incapaz de focar em mim ou processar o que está acontecendo. Sua boca está entreaberta, como se eu o tivesse interrompido no meio de outro grito, e posso ver seu peito subir e descer rapidamente em sua respiração descompassada. Ele se levanta, devagar, piscando apressadamente como se tentasse focar no que vê.
- Consegue andar? - Pergunto. Não sei se sussurro ou se grito, mas ele balança a cabeça em concordância. Retiro a mão de seu braço e me viro em direção à Laurunda. Sou interrompida antes mesmo de conseguir dar um passo quando um grito de dor sai da garganta de Tobiah e ele volta ao chão. Confusa, tento erguê-lo novamente e seu corpo vem a mim de bom grado. Estou tentada a soltar seu braço mais uma vez, só mais uma vez. Será que ele vai ao chão novamente? Por que eu estou conseguindo andar quando ninguém mais está? Me forço a calar minha curiosidade e, mancando, caminho com ele em direção à ponte.
A cada passo que damos, a sensação se sufocamento parece diminuir. Não vai embora, mas é mais fácil respirar. Os gritos parecem um pouco mais silenciosos e tenho menos vontade de morrer do que tinha alguns segundos atrás. Vejo a grande estrutura de madeira maciça, larga o suficiente para que cinco cavalos pudessem ser enfileirados, lado a lado. Do outro lado, o sol brilha, convidativo, em um céu de azul limpo sem nuvens. Ao longe, no horizonte, o Castelo. Posso vê-lo mais de perto agora; é muito mais alto do que achei que fosse, uma torre única, alta, cercada por uma muralha baixa feita de tijolos alaranjados. Há uma janela virada em nossa direção e não consigo me livrar da sensação de que tem alguém olhando para cá. Quando estamos a alguns passos de pisar na ponte, não resisto e solto o braço dele.
Vejo Tobiah cambalear e tropeçar em seus pés antes de, com dificuldade, conseguir se manter de pé. O ar desesperador e sufocante não é tão forte aqui, mal passa de um leve incômodo e não causa mais do que uma falta de ar, daquelas que se tem ao fim de uma atividade física intensa. Por isso o soltei, sabendo que, caso eu estivesse certa, nada de mal lhe aconteceria. Mas qual a razão disso? Ele apoia na beira da ponte, as duas mãos segurando a madeira e vira em minha direção.
- Vá. - Ele diz em uma voz rouca e engasgada, pigarreando na tentativa de recuperar seu timbre. Olho para ele e franzo a sobrancelha, percorrendo minha mente apenas por garantia, tendo a certeza de que não dividi meus pensamentos com ele. Ele sorri fracamente. - Eu percebi que só consegui me levantar quando você me segurou e que foi mil vezes pior quando você me soltou de novo. - Ele suspira. - E não pense que não percebi o que você acabou de fazer aqui, Majestade. - Ele cuspe a última palavra de forma debochada, exageradamente franzindo as sobrancelhas em uma careta de insatisfação. Sorrindo, viro as costas e me arrasto de volta para o centro da dor e desespero que assola essa terra, minha perna queimando mais do que antes, e me recuso a olhar. Sei que deve estar em um estado terrível, posso me sentir febril e enfraquecida, mas não tenho tempo a perder com isso.
Cathal e Laurunda não estão distantes um do outro e agradeço silenciosamente por isso; não tenho certeza se posso percorrer esse caminho mais uma vez. A caminhada de onde passamos a noite até aqui durou quase cinco horas. Poderíamos ter feito na metade do tempo se eu não estivesse andando tão devagar. As palavras da Profecia sobre não poder confiar nas minhas decisões ressoam em minha mente em um tom debochado e meu tornozelo pulsa como se para me lembrar de que tudo tem uma consequência. Me sinto cada vez mais sufocada a cada passo milimétrico de dou e, quando estendo minha mão e puxo pateticamente Cathal para cima, estou a ponto de perder as forças. É com mais dificuldade que Tobiah que ele se põe de pé, mas parece se recuperar mais rápido. Me ajuda debilmente a alcançar Laurunda e, o mais rápido que posso, caminho de volta com os dois para a entrada da ponte onde Tobiah espera.
Laurunda cai sentada na estrutura de madeira assim que a alcança, respirando alto e tremendo. Sento ao seu lado e coloco a mão por sobre seu ombro.
- Você está bem? - Pergunto.
- Ótima - ela rosna em resposta, balançando o ombro na tentativa de tirar minha mão de lá, e fracassa.
- Você me odeia, eu sei. - Reviro os olhos e estendo a outra mão para pegar o cantil de água que Tobiah oferece. - Aqui. - Entrego a ela que, relutantemente, pega. Posso ver que está lutando com seu orgulho quando o faz, mas é sensata o suficiente para entender que não é hora para isso agora.
- O que é esse lugar? - Cathal é o primeiro a perguntar em voz alta o que tenho certeza que está sendo remído na mente de todos nós. Alguma brincadeira de mal gosto dos Deuses que não têm mais o que fazer da sua existência do que fazer minha vida ser miserável, quero responder, mas mordo a língua. Ninguém responde, simplesmente porque não há o que ser respondido.
- Conseguem andar? - Pergunto, a todos e a ninguém. Tobiah balança a cabeça negativamente e os outros dois o acompanham. Não entendo a extensão do dano, porque tenho certeza que não sofri metade dele, mas não posso me dar ao luxo de perder outro dia enquanto eles descansam. Tento me pôr de pé e não consigo, meu tornozelo falha e caio no chão. Contrariada, levanto a barra do vestido e não consigo evitar um grunhido quando vejo o estado do machucado. A cauterização que Tobiah fez no corte para estancar o sangramento havia provocado queimaduras em minha pele, disso eu já sabia. Mas agora, bolhas grandes de pus amarelado saltam de minha perna, dando à minha pele uma cor doentia.
- Certo - digo, abaixando o vestido. - Vamos descansar por alguns minutos, mas precisamos seguir logo. Não quero perder outro dia. Comam alguma coisa, lavem o rosto. Vamos partir em meia hora. - Anuncio e finjo que não vejo Laurunda revirar os olhos e grunhir. Cathal não parecer mais feliz que ela, mas seu treinamento militar o impede de mostrar insatisfação em qualquer circunstância. - Tobiah? - Chamo, e ele levanta a cabeça do mapa que estava analisando em silêncio. Laurunda e Cathal caminham em direção ao extenso rio, sentando em sua margem e tirando os sapatos. Ficamos sozinhos ao pé da ponte, Tobiah e eu. Ele joga a bolsa nas costas e se senta ao meu lado. Levanto a barra do vestido e deixo minha perna à mostra, e ele respira profundamente, quase soltando um assobio. Vejo seus olhos atentos sobre minha pele, e sorrio ao perceber que reconheço suas expressões faciais o suficiente para saber que ele está tentando arrumar uma solução. Mas eu já tenho uma solução.
- Eu preciso de uma faca, álcool e uma toalha - digo, e seus olhos pulam em minha direção.
- O que você está pensando em fazer, Kya? - ele pergunta, nervoso. Posso ver que não tem certeza se atende meu pedido o não, há dúvidas em seus olhos. Inclino a cabeça de lado e sorrio fracamente. Tobiah balança a cabeça e começa a vasculhar a bolsa pelo que eu pedi. Ele abre um cantil e cheira, confirmando que é álcool o seu conteúdo, e o entrega para mim, junto com uma faca afiada que tira de uma bainha de couro e um pano pequeno. Derramo uma boa quantidade de álcool na lâmina e outra porção sobre minha pele que está quente ao redor das bolhas infeccionadas. Enrolo a toalha e coloco em minha boca, mordendo-a com força.
- Kya... - Tobiah sussurra no momento em que percebe o que vou fazer, apenas um segundo antes de eu levar a lâmina de encontro à minha pele, cortando as bolhas. Mordo a toalha e sinto lágrimas brotando em meus olhos, a dor é quase insuportável. Tobiah pega outro pedaço de pano e embebe em álcool, imediatamente passando sobre as bolhas estourada por onde escorre a secreção amarelada. O ardor é tamanho e grito por entre os dentes. Ele termina de limpar e enrola minha perna em um tecido fino que queima contra minha perna. Demoram alguns minutos para que minha respiração volte ao normal e a cena parece uma repetição patética da noite anterior. Espero que isso não volte a acontecer com frequência.
Sinto mais do que vejo Tobiah se mover e sentar atrás de mim, uma perna de cada lado do meu corpo, me acomodando em seu colo. Não conversamos sobre a noite passada, simplesmente porque não havia o que conversar. Não posso negar o quão agradável foi ter sua companhia durante a noite, conversar até o sono nos envolver, sentir o calor de seu corpo perto do meu, e seu sorriso é uma boa visão para se ter ao acordar de manhã. Mas, além disso, nada aconteceu, então a intimidade silenciosa que foi desenvolvida o suficiente para que ele possa me acomodar contra si ainda é uma sensação nova e inexplorada. Recosto a cabeça contra seu peito e fecho os olhos por um minuto. Abro-os novamente quando seu peito se move em uma respiração profunda.
- Qual o problema? - Pergunto, e sou respondida pelo silêncio. Desencosto de seu peito e viro meu corpo para que esteja de frente para ele. Seus lábios estão entreabertos e seus olhos confusos procuram em mim a resposta para a pergunta não feita. Sua mão está tremendo quando ele a estende em minha direção, tocando minha bochecha com o polegar enquanto envolve meu pescoço com os outros dedos. Me inclino em sua direção apenas o suficiente para que ele entenda que a permissão foi concedida, e ele termina de diminuir a distância. Seus lábios são macios e suaves quando tocam os meus, delicadamente moldando minha boca em um beijo que transborda carinho e reverência. E, quando o aperto por sobre a manga da camisa, ele me puxa para si, acabando com a distância entre nossos corpos. Estou em seu colo, envolvida por seu braço e, nesse momento, não há outro lugar que eu queira estar. Sinto sua mão se mover pelo meu pescoço e um arrepio de prazer sobe pela minha espinha.
Entregue aos seus braços, fico confusa quando ele interrompe o beijo e se afasta, apenas o suficiente para que possa me olhar nos olhos. Não consigo decifrar o misto de emoções que cruza seu rosto nesse momento e ele encosta sua testa na minha. Tobiah suspira fundo e roça um polegar pela minha bochecha.
- Me desculpe. - Ele sussurra antes de se afastar e arremessar pela borda da ponte o colar que ele tirou do meu pescoço.
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