Capítulo 12

Não consigo encontrar a lua. Vejo o céu acima de mim tomado por pequenos pontos cintilantes, mas não consigo encontrar a lua. Recosto minha cabeça em uma árvore, meus pés tocam a grama úmida pelo orvalho da noite. Encaro o rio a minha frente em um silêncio contemplativo.

O que é esse lugar?

Penso em todos os livros, em todos os registros que li. Em todas as histórias e lendas sobre as Terras Distantes. Os textos mais antigos narram a versão dos Deuses sobre este lugar, criado para ser seu refúgio quando chegou a hora de abandonar o Reino nas mãos de governantes humanos depois da Maldição. O que é a Maldição continua um mistério, porque todos os relatos dizem que Eles apenas se retiraram dos Reino, dando início a uma guerra política pelo controle da terra, acarretando na divisão dos Quatro Reinos como temos hoje.

Li tudo que existia sobre este lugar durante meus séculos de vida. Fábulas e lendas, registros em diários e ilustrações. Mas não lembro de ter lido nada sobre esse rio. Não que eu espere que exista um registro especificamente falando sobre um rio viscoso no meio de lugar nenhum. Mas há algo nessa água.

O formigamento em meu corpo está de volta e mexo meu pescoço, incomodada. Ouço as vozes vindo do acampamento que foi montado para a noite a poucos metros de onde estou sentada. Posso ouvir o crepitar da fogueira e o cheiro da carne de coelho assando. Não imaginei Tobiah como alguém que, sendo criado como herdeiro do Reino de Fora, saberia como caçar e preparar comida para si, o que é uma surpresa positiva. Não sei se teria estômago para caçar e matar eu mesma aquele pobre coelho que vai servir de jantar.

Não vi muitos animais no caminho desde que acordei até aqui, apenas um canto de pássaro ocasional. Mas deste lado do rio, posso ouvir corujas e grilos e vejo pequenos vultos se movendo por entre os arbustos, e tenho certeza que durante o dia a diversidade vai aumentar. Os animais estão dormindo, coisa que eu deveria estar fazendo também. Teremos um longo dia pela frente ao amanhecer. Mas não consigo parar de encarar o rio e tentar dar sentido ao que aconteceu mais cedo. 

Ouço passos se aproximando e giro a cabeça para ver quem vem. Está iluminado o suficiente para que minha visão esteja perfeitamente funcional, apesar da ausência da lua.

— Majestade — ouço uma voz grave a alguns passos de distância, e vejo Cathal.

— Sua irmã, a Princesa Layla, me pediu para que lhe entregasse isso quando estivesse em condições de recebê-lo — diz, entregando-me uma pequena caixa de madeira pesada, acenando com a cabeça e preparando-se para se retirar.  

— Cathal, espere — peço — Mal tive a oportunidade de falar com você, entre todos os preparativos desde que acordei. Fique aqui por um momento. Sei que não é a melhor das circunstâncias para se conhecer alguém, mas estamos todos presos aqui, acredito que trabalharemos melhor se soubermos com quem estamos lidando, concorda? — pergunto, ao que ele acena com a cabeça. A verdade é que os três aqui sabem sobre mim muito mais do que posso começar a imaginar sobre eles, o que faz com que eu esteja em posição de desvantagem, isso é algo que preciso consertar o quanto antes. Seguro a caixa de madeira escura com um pequeno trinco dourado em minhas mãos e espero que ele comece a falar.

O que não acontece. Cathal mantém sua postura militar, como se aguardasse uma ordem. Exatamente a mesma postura adotada por Adaliz, que não desfez sua pose por um minuto sequer. Ciente que esperar calada não me levará a lugar algum, pergunto:

— Tobiah me disse que você é filho do Segundo Comandante — ele acena com a cabeça — O que te levou a se juntar a essa... — sacudo a mão no ar, buscando a palavra para esse desparate dos Deuses.

— É minha obrigação, Majestade — ele diz, simplesmente. Mas não é. Ele poderia ter enviado qualquer outra pessoa. É um homem de poucas palavras, posso ver. Ah, bom, não vou ser eu a forçá-lo a falar. Agradeço-lhe por ter me entregue a caixa que Layla me enviou e ele se retira. Observo-o se dirigindo de volta ao acampamento por meio segundo, antes de pousar meus olhos na caixa em meu colo. Cathal é um homem mais alto que a média, com os cabelos negros em corte militar — o que já era de se esperar —, feições rígidas e postura impecável. Basicamente o que pode se esperar de um soldado, mas não necessariamente o que se espera do filho de um Comandante. Ele deveria estar se preparando para assumir as funções do pai em algum momento — caso os outros soldados o elegessem para tal função, o que é provável que aconteça. Mas aqui ele está, no meio de uma mata desconhecida. O que há de errado com os herdeiros desses Reinos? Não possuem qualquer senso de responsabilidade? 

O que eu não daria para estar de volta ao meu Reino, liderando meu povo para uma era de prosperidade. Tenho calafrios só de imaginar o que está acontecendo no Norte com o Ministro destilando veneno nos ouvidos de Layla. Espero que o lugar ainda esteja de pé quando eu voltar e haja algo a ser governado. 

— Majestade? — ouço-o chamar novamente e mais uma vez viro em sua direção — O que acha que vamos encontrar nas Ruínas? 

Eu gostaria de ter a resposta para isso. Eu gostaria de ter a resposta para qualquer coisa sobre essa Profecia. Infinitas hipóteses já cruzaram a minha mente. Talvez haja uma adaga e o Deus da Vida e da Morte demande que eu acerte meu coração e me ofereça como sacrifício pela paz do Reino. Talvez a Deusa da Sabedoria espere que eu encontre uma solução para a Maldição dos Deuses — seja o que isso for — e, caso eu não consiga, me ofereça como sacrifício ao Deus da Vida e da Morte. 

Talvez o Deus da Profusão não esteja feliz com o uso que os Reinos estão fazendo dos recursos que tão altruistamente nos concedeu quando criou-nos. E queira me oferecer como sacrifício também, apenas por diversão.

Em todos os cenários que passam pela minha mente, eu morro no final. Então decido descartá-los. O rio já foi morte o suficiente por um dia. Me recuso a aceitar que os Deuses me privariam da minha existência de forma tão leviana. Seria estupidez não me permitir a chance de trazer glória novamente ao Reino que criaram.

Sou sua descendente direta, afinal. Quando deixaram nosso Reino e partiram para seu retiro nessas Terras, abençoaram o Norte com o tempo e a sabedoria. Se não fosse para que governasse, por que me trariam a esse mundo para viver por tanto tempo?

— Suponho que vamos ter que esperar para ver o que os Deuses nos reservam — respondo por fim, e ele enruga as sobrancelhas em resposta — O quê?

— Soa como se acreditasse — ele responde.

— Como se acreditasse... nos Deuses?— pergunto, ao que ele confirma com a cabeça — O que te faz pensar que não acreditaria? Por que outra razão eu estaria no meio do nada se não fosse para seguir o comando ininteligível de nossos Criadores?

— Bom... — ele reluta — Você foi sequestrada ele responde e eu sorrio, porque é a única coisa que posso fazer a essa altura — A palavra que percorre os Reinos é que Vossa Alteza não parece demonstrar qualquer respeito pelos Deuses, e que em sua Coroação chegou a amaldiçoá-los.

— É impossível desrespeitar algo que não existe, Cathal. — digo sorrindo, mas ele apenas concorda com a cabeça, prova de que não entendeu a piada. Paciência. Nem todos têm um senso de humor refinado. De qualquer forma, ele parece satisfeito com a resposta e se retira. Rio comigo mesma com a capacidade das pessoas de distorcerem fatos simples. Amaldicoei os Deuses? De fato não escondi meu descontentamento com o Medalhão dos Quatro Reinos ser retirado do baú, e como poderia? Esperei minha vida toda para governar o Norte, não para ser portadora da Profecia — que até então não sabia do que se tratava; se soubesse seria provável que tivesse reagido ainda mais viceralmente.

Todos somos ensinados sobre a Profecia logo nos primeiros anos de instrução, os Mestres reforçam os ensinamentos principalmente àqueles que serão herdeiros do poder em cada Reino. Mas como poderia imaginar que seria eu a escolhida. Não posso negar que admiro o senso de humor dos Deuses. Tantos indignos e descontentes com sua posição de governo, que ficariam mais do que felizes em abandonar seus postos, e a escolhida da Profecia sou eu.

Posso sentir o cheiro da carne pronta e meu estômago protesta pelo que agora são dias de refeições mal feitas. Dias. É irreal a quantidade de coisas que aconteceram nos últimos dias. Se passou pouco mais de uma semana desde que recebi a notícia da morte de meu pai. Sequer me dei o direito de chorar sua perda, e também não tive tempo o suficiente para fazer muito pelo meu Reino. Esfrego os olhos. 

Antes de levantar e me dirigir de volta ao acampamento, reviro em minhas mãos a caixa que Cathal me entregou, e me pergunto o porquê de não tê-lo feito antes. Abro e fecho os meus dedos na tentativa de me livrar do formigamento em minhas mãos, o que é inútil.

Abro o delicado trinco dourado da caixa e levanto a tampa. Dentro, encontro um bilhete com a caligrafia de Layla.

"Kya, sinto muito que as coisas tenham ido por este caminho e você não esteja aqui para assumir o trono que desejou por toda sua vida. Tenho fé nos Deuses que retornarás logo e em segurança para comandar nosso povo a uma Era de grande prosperidade. Não tive a chance de lhe entregar essa caixa antes, quando a recebi você já havia partido para sua missão, levada pelos Deuses para cumprir o seu destino. Essa caixa veio de papai, e deveria ser entregue a você após sua morte. A mim, ele deixou um lindo anel que pertenceu a mamãe. Espero que esteja bem e volte logo. Sinto sua falta. Que os Deuses lhe protejam em sua jornada. Com amor, Layla"

Dobro o bilhete com cuidado e coloco ao meu lado para olhar o conteúdo da caixa. Sobre uma almofada aveludada encontro um colar. Pego-o e sinto o peso irrisório da corrente cor de bronze com um pingente tão grande quanto a ponta de meu polegar. O pingente é um pequeno espelho cobreado, como um dos espelhos de mão que vejo Layla usando para pentear seus longos cabelos loiros, mas em miniatura. Não se parece com o tipo de adorno que eu usaria, mas decido pendurar o colar ao redor do meu pescoço.

Tento adivinhar qual o motivo para o Rei deixá-lo para mim, sem nenhum bilhete ou explicação; nunca fui dada a joias. É quando vejo, no canto da caixa, uma flor seca. Sinto lágrimas acumularem no fundo de meus olhos e minha garganta arranhar. No fim, não importa o motivo para o cordão — se é que existe um motivo. 

Desde nossa conversa no jardim, tornou-se uma tradição que ele enviasse um dente-de-leão a cada aniversário, para me lembrar de minha missão de vida. Minha responsabilidade e dever com meu povo. Meu destino.

Percebo que me deixei levar passivamente pelos acontecimentos recentes. Fui carregada de um lado ao outro como uma boneca de pano, deixei que tirassem de mim o poder sobre minha própria vida. Não sei qual o objetivo dos Deuses com essa Profecia, mas vou descobrir. Vou descobrir e entregar-lhes o que quer que desejem, e voltar para casa e cumprir meu destino.

E meu destino não é no meio do nada nas Terras Distantes.

Meu destino é no Trono.

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