Capítulo 20
"Lembre-se que, da conduta de cada um, depende o destino de todos."
Alexandre o grande.
No pequeno prédio, que brilhava em diversas cores, Eduarda aguardava sentada em uma cadeira simples e nada no Universo poderia tirar a moça daquele recinto. Os olhos, inchados e vermelhos, estavam carregados de tristeza, apáticos, mostrando o cansaço de uma longa vigília, mas nada de lágrimas porque já não as havia para verter. Foram dias chorando e agora restava apenas o vazio.
Levantou-se e aproximou-se da varanda, contemplando a queda d'água que quase podia tocar com as mãos. Aquele mundo era a coisa mais bela que ela já havia visto ainda nos seus sonhos, antes mesmo de conhecer o noivo, mas agora tudo tinha outra conotação bem diferente e não conseguia apreciar nada, nenhuma beleza; nada poderia servir de consolo para si. Permanecia de tal forma absorta nos seus pensamentos ou talvez apenas na sua dor que só se deu conta da visitante quando ela lhe tocou o ombro.
Virou-se para ver uma moça bonita e delicada, com cabelos tão pretos como carvão e olhos de uma doçura muito grande. A jovem vinha acompanhada por Valdo e ambos tinham um olhar de preocupação pela jovem feiticeira.
– Eduarda, uma estafa não te vai ajudar em nada – disse ela, falando com candura e em um português com leve sotaque. – Vai descansar que eu faço a vigília.
– Não posso, Caroline – respondeu, tremendo. – Sei que preciso, mas não consigo. Nem sei o que fazer da minha vida sem ele.
Valdo avançou um passo a abraçou-a.
– Calma, Dudinha, não te precipites. – Apertou-a mais e continuou. – Eu sei que é ruim, mas precisas descansar. Faz cinco dias que tu não dormes!
– Eu não quero descansar – disse, quase chorando outra vez, mesmo após ter decidido que bastava de prantos. – Eu apenas...
Uma voz, apenas um murmúrio, interrompeu o que a moça ia dizer e talvez nunca mais alguém soubesse o que seria, nem mesmo ela:
– Eduarda, minha amada, juro que pensei que nunca mais te ia ver ou ouvir e isso era o que me deixava triste acima de tudo.
– Igor! – O grito dela ecoou por todo o recinto, enquanto se atirava aos seus braços, ora chorando ora rindo. – Desgraçado, quase me mataste de tristeza e desespero.
– Achavas que te ia deixar assim tão fácil? – Ele sorriu, abraçando-a, ainda muito fraco. – Esqueceste que preciso de cumprir uma certa promessa e jamais deixo de as cumprir?
Caroline apareceu no seu ângulo de visão e ele estendeu a mão, tocando nela. Ao sentir o contato com a amiga que tanto amava, Igor disse:
– Perdão pelo que permiti acontecer, Carol. – Puxou-a até que ela também o abraçasse e continuou. – Jamais deveria ter deixado que fosses sem mim para te proteger. Chorei muito a tua morte, mas noto que conseguimos reverter tudo.
Com lágrimas nos olhos, a feiticeira inglesa beijou o seu mais querido amigo de infância.
– Não tiveste culpa, Igor, e, se não fosses tu, ainda estaríamos aprisionados naquele pesadelo horroroso.
– E os meus pais? – perguntou, ansioso. – Conseguiram?
– Estão todos salvos, Igor, todos os magos. – Caroline tranquilizou-o. – Teus pais foram dormir há algumas horas porque estavam exaustos com a espera.
– Que espera? – questionou o jovem, curioso. – Vem cá, quanto tempo eu fiquei inconsciente?
– Meu, amor – disse Eduarda, sem o largar. – Tu estavas morto, mortinho da Silva, mas os dragões trouxeram-te de volta. Só que eles eram apenas quatro e não doze, que seria o necessário para te curar. Por isso ficaste dez dias em coma e eles temiam que pudesse ser irreversível.
– Mas, bah. – Igor arregalou os olhos. – Por isso é que me sinto tão fraco!
– Vou providenciar algum alimento para ti – disse Caroline, saindo do quarto.
Igor fechou os olhos por alguns segundos, enquanto Eduarda se aconchegava no seu ombro, deitando-se ao seu lado.
– Acabou, meu amor – disse, por fim. Quando não obteve resposta abriu os olhos e virou o rosto para a noiva, vendo que ela dormia.
Chamados por Valdo, os pais apareceram e ainda tinham o ar de preocupação, porém muito aliviados. Quando os viu o jovem sorriu, feliz.
– Imagino que a coisa foi complicada – disse o pai, piscando o olho. Apontou a nora adormecida e continuou. – Não há dúvida que tu tens muito bom gosto, filho.
– É, pai, acho que vocês precisam de aprender algumas coisas que perderam neste período. – Igor riu. – Esta é a Eduarda e podem começar por se acostumarem com ela, porque é com quem pretendo viver. Tive muita saudade de vocês.
– Já tivemos o prazer de conversar com ela, filhinho – disse a mãe, sorridente. – Espero que sejam muito felizes. Mas, afinal, vocês são ou não são casados?
– Tudo é uma questão de ponto de vista, mãe. – Igor riu. – Mas será resolvido muito em breve.
― ☼ ―
O grande anfiteatro encheu-se aos poucos quando todos os magos e feiticeiras obedeceram ao chamado que anunciava a reunião extraordinária e aberta com os guardiões, que foram os últimos a chegar. Era um local que lembrava um pouco os teatros gregos da antiguidade com mesclas de outros povos e uma nuance própria. Na frente, onde ficava o púlpito para o caso em questão ou onde era o palco, havia uma concha acústica enorme. Depois, formando uma meia lua de mais de cinquenta metros de raio subiam as paredes ao estilo do coliseu, cujo topo era irregular com a ideia de inacabado e, em declive até perto do palco, ficavam os assentos muito confortáveis, onde cabiam mais de sessenta mil pessoas. O desenho da acústica do local era tão perfeito que, de qualquer ponto do grande anfiteatro, ouvia-se com perfeição tudo o que era dito. Em uma cidade onde quase tudo era construído de cristal, o grande anfiteatro fazia um contraste enorme por ser de pedra e mármore. Com a volta da amizade dos dragões, vários deles empoleiravam-se a olhar a reunião, curiosos.
Quando os guardiões entraram solenes, a maior parte carregando seus bordões nas mãos, fez-se silêncio total. Um deles era ninguém menos que Ezequiel, que se revelou a todos pela primeira vez.
Eles, pelas suas prerrogativas, sentavam-se à frente. Assim que se instalaram, Igor surgiu do nada bem no meio do palanque. Os presentes levantaram-se e curvaram-se para ele. Depois, bateram palmas para o seu salvador.
– Queridos irmãos e irmãs – começou dizendo. – Eu sinto-me muito feliz de hoje estar aqui perante vocês e ver que, apesar de toda a desgraça que nos aconteceu, não tivemos baixas.
Igor precisou de fazer um gesto para a plateia, voltando a pedir silêncio. Obedecido de imediato, continuou.
– Contudo, eu convoquei a reunião extraordinária porque tenho uma séria dívida com esta sociedade. Eu falhei como Guardião Supremo e não sou digno de governar o Mundo de Cristal. Foi por minha exclusiva culpa que esta catástrofe aconteceu e peço perdão a vocês com toda a humildade. Por isso, vim a este conselho colocar o meu cargo à disposição, no caso de desejarem escolher um novo suserano.
O silêncio que aconteceu foi constrangedor. Esse tipo de reunião, em geral, seria a portas fechadas apenas com o conselho, mas Igor escolheu o contrário, uma vez que achava que devia retratar-se em público.
Caroline, na qualidade de uma guardiã dos portais embora não fosse do conselho governante, foi a primeira a reagir e levantou-se:
– Por que acha que falhou com nossa sociedade, Magnífico, se foi Vossa Magnificência quem nos salvou?
– Porque eu permiti que acontecesse...
– O progresso – interrompeu Ezequiel, levantando-se e cometendo uma grande gafe, mas ignorando-a por completo, como era da sua natureza –, é inevitável tanto no mundo mundano quanto aqui. Se não fosse agora, seria daqui a cem anos, pois assim estava escrito, Magnífico. Foi a vossa dedicação, chegando mesmo a entregar a própria vida pelo bem do todo, que trouxe de volta a nossa sociedade. Eu não apoio a vossa saída.
– Nem eu – insistiu Caroline, levantando-se de novo. – Se alguém é culpado, esse alguém sou eu. Lembre-se, Magnífico, que eu participei em todas as pesquisas e nada indicava haver perigo, nunca um portal trouxe perigo antes disso.
Sergey também se levantou e, na qualidade de antigo guardião supremo, subiu ao púlpito, ficando ao lado do Igor, um direito que cabia a qualquer guardião que usou a capa branca.
– Eu escolhi Igor Montenegro como guardião supremo e não foi uma mera obra do acaso. Como disse Ezequiel, nosso mestre e amigo, o progresso não podia ser contido e Sua Magnificência era o elemento adequado para impedir uma possível catástrofe. Por outro lado, Ezequiel passou os últimos mil anos preparando todos os novos guardiões supremos que eram eleitos para o fato que ocorreria de forma inequívoca, a menos que desejássemos destruir a nossa sociedade. Todos nós, Grandes Guardiões, sabíamos que isso aconteceria e colocamos as nossas vidas nas mãos da Deusa, confiantes nas informações do irmão mais velho. Contudo, não sabíamos quem e quando, exceto no momento em que passei o meu cargo para o nosso salvador de duas eras. Estou certo de que todos vão concordar comigo que, sem ele, não estaríamos aqui, porque foi sua Magnificência que derrotou os bruxos no passado e libertou o nosso povo, também mostrando o Mundo de Cristal a um dos fundadores da Cidadela. Desde tempos imemoriais que essa história está guardada a sete chaves, apenas liga pelos magníficos quando eleitos, mas eu tornei-a pública no dia do nosso retorno e já consta dos computadores para quem quiser estudá-la. Como já disse, não estaríamos aqui se fosse de outra forma e, assim sendo, peço que o conselho se manifeste com a luz verde ou vermelha de forma a resolvermos isso de uma vez, mas quero que se lembrem a quem devemos as nossas vidas duas vezes.
Ele calou-se e retornou para o seu lugar. Os guardiões do conselho levantaram-se e ergueram os seus bordões que começaram a brilhar; o brilho que determinaria o futuro daquele mundo. Igor olhava aqueles homens e mulheres erguendo os cajados, vendo as coisas acontecendo bem devagar, e deu-se conta pela primeira vez que gostava daquela posição e gostaria de permanecer assim. Uma cascata de luz verde jorrou para cima e ele ficou aliviado, sorrindo para todos.
Os outros magos, muito satisfeitos com os resultados, também ergueram seus bordões e lançaram fogos verdes para o céu, aplaudindo de pé. Do alto, quarenta dragões fizeram o ar tremeluzir com os jatos intensos das chamas lançadas, formando uma cúpula de fogo que recobria os arcos verdes dos bordões tal como um telhado de puro fogo em volta do anfiteatro.
― ☼ ―
Igor e Eduarda estavam abraçados na varanda do seu apartamento, apreciando o arco-íris que o pôr do sol fazia na cachoeira mais próxima.
– Então, amor – perguntou ele –, vais mesmo gostar de viver aqui?
– Tá brincando – ela riu –, este lugar é de sonho, mágico, especial. Literalmente! E eu que achava aquele teu papo na universidade coisa de um promissor escritor de ficção!
– Naquela época, achava que nunca mais ia retornar aqui – comentou. – Mas agora que voltou tudo ao normal e o conselho decidiu que eu continuarei como Guardião Supremo, vamos passar uns anos aqui, talvez muitos.
– E tu largarias isto por mim? – perguntou, rindo.
– Tens alguma dúvida? – Igor acompanhou a risada. – Faço isso agora, se quiseres. Basta eu renunciar e...
– Para com isso – disse ela, divertida. – Afinal, onde mais eu seria uma primeira-dama de todo um planeta?
– Verdade, amor, toda a moeda tem dois lados. E então, o que queres fazer agora?
– Bem – Eduarda virou o rosto para ele. – Pra começar, nós podemos retornar ao nosso papo interrompido com a minha abdução, que era o nosso casamento imediato.
– Mas bah, amor, já somos casados – questionou Igor, fingindo espanto –, pelo menos era o que todos diziam na Terra, até os teus pais!
– Nada disso – replicou ela, indignada. – Eu estava dominada por aquele demônio infame e não é justo. Quero que isso seja desfeito de alguma forma e quero ter o meu casamento de verdade e com o homem que escolhi para viver comigo.
– Acho mais fácil – Igor enlaçou a sua cintura e beijou-a –, nós casarmos aqui na Cidadela à moda celta. Os padrinhos podem ser os mesmos, uma vez que o Valdinho já sabe de tudo e tu, com cuidado, contas para a Valéria.
– E lembra-te do nosso bebê.
– Bem, isso podemos providenciar quando quiseres. – O noivo riu e voltou a beijá-la.
– Ótimo. Vais começar a treinar esta noite. – Ela deu uma gargalhada de felicidade.
― ☼ ―
Levi e Fátima entraram no apartamento da filha e do genro, sorrindo.
– Bem, meus filhos – disse a mãe dela. – Precisamos de voltar para Porto Alegre e vamos pegar carona com os Montenegro para aprendermos a usar as cápsulas planares na prática.
– Boa ideia, mãe. – Eduarda beijou os pais. – Quando nos veremos de novo?
– Em breve, meninos. Tudo é novidade para nós e temos que nos adaptar a duas vidas diferentes. Ezequiel providenciou um assessor para nos ajudar. Disse que foi a teu pedido, Igor.
– Bem, já que eu sou o cacique, acho que posso dar uma forcinha para os meus sogros, ainda mais depois de toda a confusão que lhes arrumei – afirmou o jovem –, não acham?
– Obrigado, Igor. Estou muito feliz de me ter enganado a teu respeito porque sempre gostei muito de ti.
Igor abraçou a sogra. Depois estendeu a mão para Levi, sorrindo.
– Aguardo vocês para os fogos de Beltane. Nós queremos fazer um novo casamento, já que eu não estava presente no primeiro.
Quando ia afastar-se, virou-se de novo para o sogro e estendeu a mão. No meio do caminho, Levi notou que ele apresentava um calhamaço respeitável de papéis impressos que surgiram do nada.
– O que é isso? – perguntou o sogro, pegando-os, curioso.
– A pesquisa que vinhamos fazendo, eu já a havia finalizado há bastante tempo, mas não a podia entregar sem expôr o meu disfarce. Samuel provocou um grande prejuízo, mas aqui está toda ela com uns adicionais de brinde. Faça bom proveito, Levi.
– Obrigado – disse, feliz. – Por falar nisso, parabéns pelo teu pai. Poucos cientistas têm o gabarito dele. Não tinha correlacionado os nomes até conhecê-lo em pessoa.
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