Capítulo 18
"Não é preciso ter olhos abertos para ver o sol, nem é preciso ter ouvidos afiados para ouvir o trovão. Para ser vitorioso você precisa ver o que não está visível."
Sun Tzu.
Uma fenda estreita apareceu no meio do nada em um canto cercado de árvores do parque da Redenção, em Porto Alegre. Do outro lado, via-se uma cidade toda feita de cristais. Sorrateiros, três seres vivos atravessaram-na e a abertura fechou-se logo após. Olharam em volta para certificarem-se de que não havia ninguém para ver o ocorrido e saíram para a rua.
– Tu tens a certeza que ele está aqui, amor? – perguntou Eduarda.
– Não está longe, segundo o detetor – Igor olhou para a noiva e riu. Ela aprendeu a disfarçar-se e tinha a aparência de uma velha toda encarquilhada e corcunda. – Bah, Eduarda, tu estás feia demais. Não podias ter maneirado não?
– Olha só quem fala. – Ela também riu. – E tu pareces um velho pirata com esse papagaio no ombro e o tapa olho.
– Papagaio, papagaio – gritou Gwydion. – "Sinto-me meio ridículo deste jeito, então vejam se dá para descobri-lo logo."
– Igor, onde será que ele pode ter-se enfiado?
– Segundo tu disseste, ele estava no Rio, envolvido com politicagem e em quinze dias voltou para Porto Alegre – comentou o noivo, pensativo. – Será que existe aqui algum evento envolvendo políticos?
– Não é época da Expointer? – perguntou-se Eduarda. – É sim, e agora lembrei que a presidente ia para a abertura da feira.
– Tens razão, amor, mas a feira fica em Esteio e ele está na região central de Porto Alegre – concordou o noivo. – Seria o momento perfeito para esse bastardo assumir a presidente. Pessoalmente, detesto aquela mulher, mas esse demônio seria incomparavelmente pior.
– Vamos ver no Palácio do Piratini ou nos hotéis do centro.
Igor transportou-os para a Praça da Matriz, junto ao monumento Júlio de Castilhos, um local que deveria estar vazio, mas, para seu azar, havia bastante gente ali. Uma mulher viu os três aparecendo do nada e começou a berrar e apontar para o casal. Esquecendo-se que pareciam mendigos, apressaram o passo em direção ao palácio do governador e logo a seguir viram-se cercados por três PMs que os seguraram. A pedido, Gwydion alçou voo e ficou sobrevoando de cima, enquanto o casal era levado para a frente do prédio da Assembleia Legislativa, onde havia algumas viaturas da polícia. Com a posição privilegiada, ambos viram a presidente e o governador entrando na viatura oficial sob uma chuva de vaias da população que assistia. Os dois olharam-se e riram, enquanto desfaziam as algemas. Deram-se as mãos e desapareceram no nada, deixando um bando de policiais muito espantados e também assustados. O salto foi curto, apenas alguns quarteirões para a frente porque ele precisava de orientar Gwydion, que apareceu dois minutos depois. Ainda viram os batedores fazendo escolta, mas isso não os interessava mais.
– Não me parece que o ataque seja aqui na cidade – disse Igor, pensativo. – Amor, cuida de nós que eu vou concentrar-me no cristal localizador.
Mal pegou o detetor, descobriu que a criatura não estava mais lá e sim a cerca de vinte quilômetros dali. O casal deu-se as mãos, olhou para os lados e desapareceu da rua para ressurgir junto a um grupo de árvores, perto da entrada do parque Assis Brasil e já dentro dele. Igor apontou para a frente:
– Ali ficam os balcões de informações, mas é melhor mudarmos de disfarces. Mendigos, aqui, vão chamar a atenção no ato.
– É verdade, amor. – Eduarda apontou uns sujeitos que andavam por ali. – Que tal bancarmos os caubóis? Assim passamos por expositores. Falsificar um crachá é moleza!
– Excelente – concordou Igor. – E Gwydion?
– Acho melhor Gwydion ficar como pássaro para não implicarem com ele – sugeriu Eduarda. – Mas pode voltar a ser um gavião...
Como um milagre, os três mudaram de forma. Agora Eduarda parecia uma bela morena de cabelos bem negros, vestindo um jeans justo e uma camiseta acompanhada de jaqueta de couro e botas. Na cabeça, usava um chapéu. Igor também seguia o mesmo estilo, mas não resistiu a dizer:
– Bah, amor, tu estás gostosa pra mais de metro e deu vontade de te dar uns bons apertos. Quem sabe a gente dá uma fugidinha e...
– Para com essa bobagem, Igor. – Ela riu, deliciada com o elogio. – Depois a gente faz a nossa festa particular.
– Tens razão. – No balcão de informações descobriram onde a presidente ia discursar e foram para o local, que tinha um forte esquema de segurança.
– Não vai atacar aqui – comentou Igor. – Ele precisa matá-la e assumir a sua forma.
– E eu acabei de o localizar, amor. – Eduarda apontou para uma mulher a uns trinta metros. – O filho de uma égua está usando o meu rosto.
– Bem, minha linda, pelo menos ele tem bom gosto. – Igor riu da cara dela. – "Gwydion, achas que o podes manter em observação do ar?"
– "Facilmente" – disse o dragão, alçando voo e ficando a cinquenta metros de altura, voando em círculos. – "Mas acho que vão pensar que sou um urubu, girando aqui sem parar."
– "Ora, Gwydion, nem vão olhar para cima!" – O mago deu uma risada. – "Do jeito que estão irados com o governo, vai ser uma vaia só."
Quando a presidente subiu ao palanque, a previsão do Igor mostrou-se um fato e ele tratou de ter mais cuidado porque, na confusão, a coisa podia ficar complicada.
Nesse momento, a falsa Eduarda começou a berrar:
– Arma, arma, cuidado – apontava para um homem na multidão que, sem entender nada, olhava para todos os lados.
O pânico formou-se na hora e os presentes afastaram-se às pressas, correndo para todos os lados, inclusive o suposto criminoso.
Apenas Samuel não se movia e, vendo nisso uma oportunidade de ouro, Igor arremessou uma bola de plasma sobre o demônio, que foi atingido nas pernas, caindo ao solo.
Sabendo que passaria a ser um alvo, ergueu a sua barreira pessoal enquanto Eduarda, com o seu anel brilhando forte, fazia a mesma coisa e afastava-se do noivo para alvejá-lo por outro ângulo. Ela começou a sentir a adrenalina e a excitação da batalha eminente, dando-lhe mais força e confiança.
Os seguranças cobriram a presidente com o corpo e, enquanto alguns pegavam as armas para procurar a fonte do perigo, outros tentavam tirá-la da zona de risco.
A criatura, enquanto na forma humana, era bem mais suscetível de ser atingida, mas agora ela estava furiosa por terem atrapalhado os seus planos. Levantou-se com toda a pressa, dando um salto para trás bem na hora que a bomba de plasma da Eduarda o alcançou, passando de raspão. Samuel, assustado e vendo que o perigo maior era Igor, revidou, jogando uma esfera negra que atingiu o mago sem qualquer efeito, minando a confiança do monstro pela primeira vez. Nesse meio tempo, não havia mais ninguém no gramado exceto os três combatentes e Samuel decidiu atingir Igor no seu ponto mais frágil, preparando um ataque fatal contra a Eduarda. Para atrapalhar um pouco, o mago também passou a ser alvo das forças armadas que o julgaram um terrorista. Enquanto a criatura recuava e preparava o seu contragolpe, Igor viu o que ela pretendia fazer e começou a correr na direção da noiva porque sabia que ela não tinha uma barreira forte o suficiente para aguentar o inimigo, mas, apavorado, concluiu que não a alcançaria a tempo quando Gwydion reagiu e mergulhou, iniciando a metamorfose em pleno voo.
No momento em que alguns dos soldados ouviram um rugido alto e olharam para cima deparando-se com um gavião que se transformava em um lagarto gigantesco cuspindo fogo, debandaram aos gritos, achando que aquilo era demais até para eles.
O demônio recebeu uma nova carga violenta e recuou, muito aflito. Virou-se para voltar a atacar Eduarda, mas foi mais uma vez atingido por Igor que tentava protegê-la a qualquer custo. Gwydion começou a emitir uma cortina de fogo e fumaça, mas isso mostrou-se um erro tático crasso porque a criatura abriu um portal e fugiu às pressas encoberta pelo fumo.
Com uma sonora praga, Igor correu para o local da fuga e tentou sentir para onde ele teria ido, mas foi muito atrapalhado quando todo um batalhão da polícia mais as forças armadas atacaram o trio com armas pesadas e superpesadas. Irritado, jogou sobre eles uma rede de eletricidade estática intensa, conseguindo neutralizar as forças policiais, que se contorciam com as descargas, e abriu um portal na direção aproximada do inimigo, fazendo sinal aos dois para que passassem.
Impotentes, os militares assistiram os terroristas desapareceram como que por encanto e sem que os conseguissem identificar.
― ☼ ―
No mundo para onde foram, os três juntaram-se e começaram a conversar, com uma Eduarda bem animada e o noivo preocupado. Era um local vazio e selvagem à beira de uma floresta verdejante. Havia um grupo de rochas que aproveitaram para usarem de assento para conversarem e pensarem sobre a ação. A temperatura era um pouco baixa e Igor fez uma fogueira surgir do nada junto com alguma lenha para a manter.
– Bem – começou ele, pensativo –, a criatura não resistiu a nós três e isso já é um ótimo começo.
– "O erro foi todo meu" – disse Gwydion, desolado. – "Precipitei-me e acabei ajudando a sua fuga. Desculpem."
– Não tem importância, Gwydion. – Eduarda sorriu para o enorme dragão. Desde que ele lhe mostrou a sua vida anterior ela ficou com uma preleção toda especial pela bela criatura. – Pelo menos, agora nós sabemos que podemos fazer algo contra Samuel e que não estamos mais à sua mercê.
– Sem dúvida. Além do mais, tu impediste que ele atingisse a Eduarda, Gwydion, e serei sempre grato por isso. – Igor pôs mais uma tora no fogo, avivando as chamas. – Ele deve estar perto. Nada que o meu detetor não resolva.
– "Acho melhor eu fazer um rápido reconhecimento por cima para ver se estamos seguros" – disse o dragão.
– É uma boa ideia – comentou Igor –, mas eu consigo rastreá-lo com facilidade e trata-se apenas de uma questão de tempo para o destruirmos.
– Se é apenas uma questão de tempo, amor – disse Eduarda, desconfiada depois que o dragão levantou voo. – Pra que é que tens tamanha preocupação e silêncio?
– Eduarda. – Igor pegou-a nos braços, quase tremendo, e beijou-a com ardor, deitando-a no chão enquanto acariciava o seu rosto com toda a suavidade – eu te amo mais que qualquer coisa neste Universo.
– Também te amo, amor.
– É por isso que não quero que fiques comigo nesta luta – disse, muito sério. – Ainda não estás treinada para um combate mais sério e eu posso ser atingido tentando te proteger. Se ele me destruir, não há ninguém mais com poder suficiente para o pegar, nem mesmo Ezequiel.
– Acontece, meu amor, que Ailin era uma baita combatente e Gwydion despertou-me todas as lembranças passadas ou esqueceste isso?
– Acontece também, meu amor – retrucou Igor, rindo –, que a única forma que ele tem de me destruir é te ferindo e aquele demônio sabe disso. Fará questão de tentar matar-te para me atingir.
– É mesmo? – perguntou, manhosa. – E como ele te atingiria.
– Eu acho que morreria por dentro se te matassem ou ferissem, meu amor. – Igor ficou ainda mais sério e Eduarda parou de brincar com ele. – Não sei se aguentaria.
A garota beijou-o. Quando parou, sorriu e disse, muito safada:
– Eu poderia pensar no assunto, mas só se me prometesses uma coisa – disse ela. – Coisa pouca, uma bobagenzinha.
– E tu pensas que me vais pegar de novo? – Ele riu. – Meu amor, terás todos os filhos que quiseres desde que vás para a Cidadela aguardar o confronto final, mas só depois da crise vencida; eu prometo.
– Combinado. – Eduarda riu, feliz. – E já que estamos apenas os dois neste lindo e desabitado planeta, que tal treinarmos?
– Não estamos apenas os dois, meu amor – Igor sacudiu a cabeça, sorridente –, apesar de nada significar para Gwydion, mas tu sabes que eu sou bem tímido, né?
– Tá bom. – Ela beijou-o. – Eu adoro esse teu lado tímido, sempre amei, desde a faculdade, mesmo antes de virares um monstro grotesco que quase me matou de susto.
O noivo não aguentou e soltou uma gargalhada.
― ☼ ―
Igor abriu o portal para a Cidadela e Eduarda foi-se encontrar com os pais e o amigo. Sentado com o detetor nas mãos tentava obter o paradeiro da criatura quando um portal se abriu atrás dele e Eduarda retornou.
– Puxa vida, amor. – Igor ficou um pouco chateado. – Nós já havíamos combinado que ias ficar na segurança do Mundo de Cristal.
– Desculpa, Igor, mas não dá. Eu não vou aguentar se algo der errado. Por isso voltei. Não briga comigo, amor. Fiz isto porque te amo.
Eduarda aproximou-se devagar, erguendo os braços para o seu pescoço e sorrindo, oferecendo os lábios para o noivo. Igor pegou sua cintura, também sorridente.
Ergueu a garota no ar e antes que ela o beijasse, atirou-a com toda a violência contra a árvore atrás dela. Como utilizou os seus poderes na manobra, a força usada foi tão brutal que a árvore se partiu em dois.
– Só cometeste um erro, Samuel – disse Igor com um sorriso ameaçador. – Eu sou o único mago no Universo que pode transpor todos os planos de uma só vez. Eduarda teria de atravessar três ou quatro portais, ainda mais que tem pouca experiência nisso e precisaria de descansar, ou seja, jamais retornaria tão rápido. Até tu tens as tuas limitações, monstro.
A risada macabra e assustadora da criatura ecoou forte, quando a falsa Eduarda levantou-se. Igor, ao olhar para ela, viu-a nua e provocante.
– Terias coragem de me ferir? – perguntou, aproximando-se sensual. – Logo a mim, o amor da tua vida?
Mesmo sabendo que não era a noiva, Igor vacilou. Foi por pouco tempo, mas isso não lhe custou a vida por um triz, graças à intervenção imediata do Gwydion.
Quando Samuel ia atingi-lo com uma das suas bolas de energia escura que o pegaria em cheio porque o mago estava sem proteção, uma chama intensa acertou a "mulher", que recuou com risadas estridentes.
– "Sabes que não é ela, então controla-te" – avisou o dragão.
Como se acordasse de um transe, Igor sacudiu a cabeça, agradecendo em pensamento. Avançou para a falsa Eduarda e desferiu-lhe outra pancada forte, atirando-a longe. Igor estava zangado consigo mesmo por ter vacilado e isso refletia-se nas suas ações. Ergueu as mãos e uma descarga intensa de faíscas de alta voltagem atingiram a criatura que começou a agonizar, dobrando-se sobre si mesma. Poucos segundos depois, voltava a ficar como uma sombra disforme.
O mago avançou sobre Samuel, que virou as costas e correu, afastando-se o mais rápido que podia. Igor não resistiu à felicidade de, pela primeira vez, ter vencido um round da batalha. Ele começava a aprender algumas características do inimigo e agora estava certo de que a vitória era apenas questão de tempo.
Enquanto pensava, acelerou o passo no encalço da criatura que, ao se ver acossada, abriu um portal às pressas e fugiu para outro mundo. Gwydion pousou ao seu lado e disse:
– "Conseguiste assustá-lo, mas tens que manter um bom controle sobre as tuas emoções. Ele tira a maior parte da sua força daí."
– Eu acabei de me dar conta disso – respondeu Igor, com toda a tranquilidade. – Naquele momento ele começou a crescer, mas depois voltou a decair. Não é a única forma dele ganhar força, mas é, de longe, a mais eficiente. Estou certo de que não me poderá mais derrotar. Ele sempre conseguia arrancar-me uma resposta emocional e era por isso que me derrotava, agora entendo muito bem. Por isso Ezequiel conseguia impedir o avanço dele, embora não vencesse. A sua maior experiência de vida fazia com que não deixasse as emoções subirem à tona.
– "Exato. E então, o que faremos agora?" – questionou Gwydion.
– Vamos caçá-lo sem trégua. Ele não escapa com tanta facilidade porque sou capaz de o rastrear – respondeu o guardião supremo, sorrindo alegre. – Foi por isso que o deixei me tocar, para absorver os fluxos. Volta a ser um gavião que vou abrir o portal. Se o mundo for habitado, procura imitar uma ave ou animal local.
– "Mas isso também o deixou com a mesma capacidade" – comentou Gwydion, enquanto mudava de forma a toda a pressa graças à ajudinha do amigo. – "Não terá sido um erro?"
– É verdade, deixou, mas está longe de ter sido um erro porque agora eu é que o persigo. – Igor voltou a rir. – Ainda bem. Pronto?
O portal foi aberto e ambos atravessaram para um mundo que era um verdadeiro paraíso. O lugar onde surgiram parecia uma ilha desabitada do Pacífico. A praia era toda cheia de curvas e pequenas voltas, com algumas rochas entrando no mar, que tinha um tom azul-esverdeado e mais parecia uma lagoa tranquila do que um enorme oceano. A floresta ficava a cerca de trinta metros da enseada e era verdejante, cheia de pássaros a cantarolar. O sol, um tanto alaranjado, já descia a meio caminho do horizonte e a temperatura era amena e muito agradável.
Ao reconhecer o mundo, Igor disse:
– Este planeta é deserto, sem vida inteligente. – Pensou mais e concluiu. – Como toda a certeza, Samuel tem os dias contados e nunca mais poderá fugir de mim.
Não deu explicações adicionais e, logo depois, viu as pegadas estranhas que iam em direção à floresta, apontando-as para o dragão. Sentou-se em uma rocha e pegou o cristal detetor. Ele sabia que a criatura ainda não havia aberto outro portal para fugir, já que sentiria as perturbações das partículas planares. Assim que descobriu onde estava, resmungou:
– Eu já devia ter imaginado.
Fez sinal para Gwydion e levantou-se, começando a caminhar com passos rápidos para dentro da mata enquanto o dragão seguiu pelo ar. A vegetação era esparsa, por isso conseguia andar rápido e sem dificuldades, mas, mesmo assim, caminhou por quase uma hora até chegar a um pequeno lago com uma cachoeira simpática.
Contrariando toda a lógica, Igor continuou andando para dentro do lago sem, no entanto, afundar, mantendo-se acima da água e parando de frente à cascata. Olhou para a cortina de água, que se abriu ao meio, e atravessou-a, entrando na caverna escura. A criatura estava ali dentro, mas era invisível por causa do breu. Sem qualquer tipo de transição, um globo de luz branca e intensa surgiu sobre a cabeça do mago, que viu o demônio a um canto.
– Tu nunca mais escaparás de mim, Samuel, nunca mais – começou o jovem, muito sério. – Conheço cada lugar que escolheres para fugir, cara.
– Não podes conhecer todos os planetas do Universo, tolo. – A criatura grunhiu a resposta projetando uma tal onda de ódio que Igor até sentiu na pele.
– Tens razão, mas conheço todos os planetas que os magos conhecem e tu absorveste esse conhecimento da Carol – replicou Igor, mantendo a calma. – Sei disso porque este mundo era o seu preferido. Por que não voltas para o teu plano e deixas-nos em paz?
– Porque não consigo abrir aquele plano – confessou o Samuel, irritado. – Além disso, não gosto de lá; é monótono.
Igor suspirou, sentindo que aquilo ia ser bem mais difícil. Samuel movia-se de lado, como se procurasse uma posição estratégica para atingir o oponente e isso não passou desapercebido ao mago.
– Nada do que fizeres será forte o bastante para me afetar e sei que estás ficando fraco, Samuel. – O mago tentou uma tática de intimidação. – Então dou-te duas alternativas: ou eu mato-te sem piedade ou tu rendes-te e podes retornar para o teu plano, pois abro um portal para ti.
– Que garantias eu tenho que não me enganas? – perguntou Samuel.
– A minha palavra de honra – respondeu Igor, solene. – Mas deverás devolver a essência das vidas que tiraste.
– Como sabes sobre as essências?
– Eu sou o Guardião Supremo, Samuel, e não um qualquer; então, sei raciocinar muito bem.
– Pois eu pretendo arriscar. – O demônio agiu muito rápido e Igor foi atingido em cheio por uma bola de energia negra que o enfraqueceu e eliminou logo a iluminação da caverna.
O jovem ficou surpreso com a reação inesperada e escapou porque Samuel estava fraco, mas não perdeu tempo. Reagindo com destreza, desembainhou a espada cuja lâmina refulgente aumentou de brilho e desferiu um golpe contra a criatura, que vinha correndo para agredi-lo.
O demônio preto, como Igor gostava de o chamar, foi atingido em um dos membros e soltou um grito agudo, irreal. Recuou para os fundos e abriu um portal, fugindo mais uma vez. Igor deixou que fosse para poder recuperar-se do ataque, já que sabia com precisão para onde o adversário fugiu.
― ☼ ―
O pássaro dragão aguardava na beira do lago quando o guardião voltou a atravessar a cachoeira. Igor olhou para ele e disse:
– Gwydion, eu gostaria que fosses para a Cidadela dar apoio ao embate final, se for necessário. A criatura não tem mais condições de me derrotar, mas, no mundo para onde fugiu, não será possível que vás comigo por causa dos habitantes. Abrirei um portal de modo não perderes tempo nem te cansares.
– "Está bem" – disse o dragão. – "Estarei de prontidão para ajudar. Avisarei a tua consorte que ela nada precisa temer."
– Obrigado. Avisa a todos que se preparem para os próximos dias. Eu vou tentar fazer com que saia na praça central, onde será fácil cercá-lo quando estiver tão cansado que não conseguirá abrir novo portal para escapar. – Igor abriu a passagem e, segundos depois, viu-se solitário naquele mundo de paraíso.
Assim que ficou a sós, mudou a sua aparência para assemelhar-se a uma criatura do planeta para onde iria. Passou a ter apenas um metro e quinze, com uma cabeça esférica muito grande, talvez uns trinta centímetros. Os olhos eram tão dentro do crânio que pareciam dois buracos e os ouvidos muito pequenos, quase inexistentes. A cabeça era coberta por uma espessa cabeleira negra, que parecia lã, e o corpo tinha uma penugem vermelha. Como boca, ele possuía um bico fino e não era capaz de falar. Em compensação, tratava-se de uma raça de telepatas.
Embora parecessem selvagens, eram seres de uma espécie muito inteligente, porém agressiva e supersticiosa, cuja tecnologia assemelhava-se ao século XX da Terra.
Por último, abriu passagem e atravessou. A primeira coisa que notou era que estava em uma cidade e, naquele lugar, as coisas pareciam tudo menos normais.
A pouco mais de trinta metros dali havia, no chão, um transeunte morto e muitos concidadãos à sua volta, olhando assustados enquanto as autoridades cercavam o lugar de uma forma que lembrava muito como se fazia na Terra. Curioso, Igor perguntou a um dos que olhavam:
– "Salve, irmão" – disse, recorrendo ao cumprimento mais comum deles. – "Acabei de chegar e nada sei, o que aconteceu?"
– "Salve, estou aqui há pouco tempo" – explicou o sujeito interpelado –, "mas parece que uma criatura preta atravessou aquela parede. Ela era disforme e muito feia, segundo dizem; mas, depois disso, essa coisa transformou-se em algo enorme e assustador demais, alguma coisa que não era deste mundo."
– "Mas no que foi que se transformou?"
– "Era feio demais, gigantesco, dizem até que duas 'nasifs' desmaiaram quando a viram, de tão assustadora que era. As pernas pareciam duas colunas monstruosas e a cabeça era muito pequena para a altura. Mas os olhos, cinzentos, eram muito assustador porque parecia que iam saltar e cair do seu rosto. As orelhas eram tão grandes que deveria voar com elas, igual à lenda do 'Assarat' gigante que podia voar com as orelhas, e o pior ainda era o nariz, porque estava de tal forma saliente que quase que uma criança poderia pendurar-se e balançar. E olha que em vez de um lindo bico alimentador, ele tinha um buraco horroroso! Não faço ideia como não morre de fome." – A descrição era acompanhada com a imagem mental e Igor estava louco para rir. – "Para piorar tudo ele vestia uma roupa branca, com capa e tudo, igual à 'provedora da morte'. A criatura passou aqui, pegou na cintura um objeto grande, cortante e matou o nosso irmão na frente de todos. Com certeza não era deste mundo. Estão dizendo que é o anúncio do fim dos dias."
Igor fez o sinal tradicional para espantar o mal e despediu-se do outro, seguindo o seu caminho. A criatura mudara para a sua aparência, talvez achando que ele entraria na sua forma original e despertaria a fúria dos cidadãos daquele mundo contra si. O jovem mago já notara que Samuel não absorveu muita coisa a seu respeito e agora agradecia à Deusa por isso porque as coisas seriam muito mais difíceis. Mesmo a viagem no tempo foi consequência de uma troca de ideias com Caroline quando estavam no início do nível superior básico, coisa que nem se lembrava mais por não ter achado relevante, embora para a amiga devesse ter sido muito importante a ponto de ter pensado em uma teoria para isso, teoria essa que se revelou correta até demais.
Igor também concluiu que a mutilação não destruiu a criatura, que se devia regenerar e reforçava a hipótese de ser indestrutível. Acelerou bastante o passo, procurando achar o demônio quando sentiu mais um distúrbio planar, sinal que Samuel voltou a fugir para outro local. Procurou uma região vazia e criou a abertura, seguindo atrás dele.
― ☼ ―
O nome oficial desse parque é parque Farroupilha. NA.
Uma gigantesca feira de agropecuária que ocorre anualmente na cidade de Esteio. NA.
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