Oito - O efeito das flores
A pior forma de ser acordado quando você não está feliz é, digamos, ser acordado romanticamente.
Karen abriu os olhos, irritada com o melodioso canto vindo da janela.
O som alto e agudo que invadira seu quarto a fez despertar de um sonho que envolvia certo príncipe sendo abandonado no altar. Arrastando os pés, ela se forçou a ir até a janela para abri-la e descobrir do que aquilo se tratava.
Imaginou que qualquer que fosse o pássaro que a incomodava, bateria as asas e fugiria para longe assim que se aproximasse. Entretanto, para sua surpresa, uma ave pequenina, de asas negras e cabeça vermelha, a fitava como se olhasse de soslaio.
Enxerido, virava a cabecinha para irritá-la ainda mais. Karen percebeu na hora que se tratava de um uirapuru.
O pássaro do amor, como era conhecido, não se incomodava com sua presença e, por uma ironia do destino, escolheu logo a sua janela para cantarolar naquela manhã.
A princesa, porém, não pareceu divertir-se com aquela peça pregada pela natureza, e esforçou-se para enxotá-lo dali o mais rápido que pôde.
Com a ajuda de Ingrid, que chegou ao seu quarto no horário marcado, ela se arrumou para o passeio no jardim.
A dama a fez um penteado trançado e uma maquiagem leve, ideal para a manhã. Satisfeita com o reflexo de seu vestido branco de renda, que admirava no espelho, Karen colocou uma tiara de brilhantes. Estava perfeita.
Naquela manhã, ela participou do café em família e, mesmo percebendo os olhares furtivos de que Sales insistia em lançar em sua direção, desejou que a refeição não acabasse tão rápido, de modo que o momento em que ficaria a sós com Roque demorasse um pouco mais para chegar. Mas chegou.
E chegou mais depressa do que gostaria.
O príncipe caçula se aproximou com um sorriso largo no rosto e estendeu a mão para pegar a sua. Deu-lhe um beijo demorado, como aparentemente gostava de fazer e ofereceu o braço para que ela o tomasse.
De soslaio, a princesa notou que o olhar de Sales acompanhava os dois até deixarem o recinto e, por algum motivo, isso fez com que ela levasse a mão que estava solta até o braço de Roque, interpretando alegria por compartilharem aquele momento.
Com o canto dos olhos percebeu, pelo movimento de sua mandíbula, que o Delfim¹ trancava os dentes e uma sensação de prazer se ascendeu em seu íntimo sem que ela tenha se dado conta.
Os dois caminharam para o exterior do palácio e chegaram a um jardim. Ela examinou as rosas e hortênsias que embelezam o lugar e acabou lembrando-se das tulipas de sua casa. Por um momento, passou-lhe pela cabeça que o lugar não era tão grandioso quanto seu próprio quintal. Mas Roque não agia como alguém que já chegara a seu destino.
− Posso saber para onde está me levando? − perguntou, tentando não soar tão desconfiada quanto na verdade estava. − Pensei que faríamos um passeio pelo jardim.
− É exatamente o que faremos, minha querida − disse, com uma intimidade que fez Karen sentir uma espécie de embrulho nas vísceras.
Ela não sabia que os dois já estavam nesse ponto do cortejo, onde se apelidavam carinhosamente.
− Contudo, não neste jardim.
Tranquilamente, ele prosseguiu até a muralha que delimitava uma das laterais do castelo. Os dois precisaram andar por um bocado de tempo, até alcançá-la, de modo que o calor já começava a incomodar a princesa. Ainda assim, a moça preferiu calar-se sobre o recente mal-estar, visto que o príncipe parecia tão determinado a concluir o que fazia.
Quando enfim chegaram, os dois pararam em frente a uma grande porta, quase camuflada pela cobertura de plantas trepadeiras que, de um verde muito intenso, estendiam-se pelos tijolos que constituíam a velha muralha. Roque puxou uma chave dourada do bolso e, satisfeito, encaixou-a no buraco da fechadura.
Assim que o príncipe a girou, a porta moveu-se para fora, deixando escapar um vão através do qual Karen conseguiu espiar.
Quando Roque a abriu por completo, a menina já estava encantada. Seus olhos acenderam à visão de uma trilha ladrilhada, cercada por samambaias choronas que abria caminho para um maravilhoso jardim.
Ao seu centro, havia um imponente chafariz de mármore, com três tanques em forma de taça e a escultura de um grande leão no topo. Sobre a cabeça do leão, estendia-se um florão adornado com ramos esculpidos, do qual brotava a água corrente.
Rosas de todas as cores estendiam-se pelo lugar, os tons serpenteavam uns entre os outros, formando uma onda floral em volta do chafariz. No canto direito havia um balanço com dois lugares, cujas correntes que os suspendiam eram cobertas por folhagens.
Toda a atmosfera local recendia à vegetação e Karen percebeu que lá dentro sequer conseguia sentir calor. O jardim era fresco e seu aroma era delicioso.
O som ambiente devia-se a um pequeno córrego. Uma nascente que passava em seus fundos. Ela poderia ficar ali durante horas, até mesmo sozinha, caso tivesse um bom livro que a fizesse companhia.
Soltando-se do braço de Roque, caminhou até o balanço para se sentar e ele a seguiu, fazendo o mesmo, enquanto estudava sua reação.
− Isso é fantástico − exclamou, admirada − Em todos esses anos de visitas eu nunca soube que existia! É novo?
− Na verdade não − respondeu, com os olhos levemente sombrios. − Era da minha mãe.
− Ah, desculpe − se havia uma coisa da qual Karen entendia, era como podia ser doloroso falar sobre seus falecidos pais. − Eu não imaginava.
− Não. Tudo bem. − ele a tranquilizou, tocando sua mão que segurava a corrente do balanço. A mão dele aconchegou-se na dela. Desta vez, entretanto, Karen não se sentiu mal. − Ninguém vem aqui além de mim.
− Nem mesmo seu pai ou seu irmão?
Roque meneou a cabeça em negação.
− É muito dolorido para eles. Você sabe, encarar a verdade. É difícil vir até aqui sem que nos lembremos dela.
− Mas isso não é um problema para você − sussurrou com ternura.
− Não – afirmou, fitando-a profundamente com um olhar dolorido. − Eu gosto de me lembrar.
Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos e Karen encarava as flores, sentindo-se ligada a ele por aquela dor que compartilhavam. Os dois eram apenas príncipes, príncipes que jamais herdariam as mesmas responsabilidades que os irmãos.
Os dois conheciam o alívio por não precisarem ser fortes quando gostariam de chorar e ao mesmo tempo, a angústia por ter a dor negligenciada, como se todas aquelas tragédias familiares não os afetassem diretamente ou com a mesma intensidade em que afetavam os herdeiros. Espiando-o pelo canto dos olhos, percebeu ele ainda a encarava.
Dando-se conta da olhadela, Roque deslizou o polegar sobre a mão que ainda segurava, acariciando-a. Um calor aconchegante tomou conta do coração de Karen, e ela começou a perceber que o terreno que estava pisando era um pouco mais instável do que previra. Ainda assim, não desejou afastá-lo.
Que mal aquele carinho inocente poderia fazer, afinal?
− Como passou a noite? – O rapaz quebrou o silêncio.
− Ótima − respondeu, finalmente virando-se em sua direção. Decidiu encobrir o fato de que sonhara que estava rejeitando um príncipe no altar e, principalmente, que o príncipe em questão não era ele. − Teria sido melhor, não fosse o uirapuru que apareceu muito cedo em minha janela.
Roque franziu a testa, duvidando da veracidade daquela informação.
− Está certa de que era um uirapuru? Esses pássaros são muito raros. Eu mesmo moro aqui desde que nasci e só devo tê-los visto no máximo duas vezes na vida.
− Bom, a menos que exista outra espécie de ave com asas pretas, cabeça vermelha, barriga amarela e um canto estridentemente agudo por aqui, creio que eu esteja certa, sim. Tive que enxotá-lo para parar de me atormentar.
Incrédulo, o príncipe abriu um sorriso travesso, que causou uma súbita comichão no estômago de Karen.
− Privilégio, minha querida. Foi o que você enxotou de sua janela esta manhã. Um privilégio − fez uma pausa, ainda sorrindo, antes de continuar: − Sabe o que dizem sobre ser despertado por um uirapuru?
− Não, não sei − respondeu, preparando-se para o que já previa escutar.
− Acontece quando você será agraciada, no dia em questão, com uma surpresa de amor.
Cobrindo as bochechas com as mãos, Karen tentou evitar, em vão, que o calor que acometia seu rosto a fizesse corar. Antes que pudesse tentar controlar a respiração, entretanto, o príncipe tratou de fazê-la entender que o plano não dera certo.
− Sabe o que eu adoro? − perguntou e aguardou que ela negasse com a cabeça, para apenas depois prosseguir: − Como seus sentimentos acabam transparecendo na pele.
Karen fitou o brilho inconveniente que resplandecia nos olhos dele. Algo estava acontecendo ali. Algo que provavelmente surgira por conta do efeito das flores.
Ela precisava sair daquele lugar perigoso depressa. Fugir da rede na qual ele estava tentando prendê-la. Alguma coisa, entretanto, a tornava incapaz de desviar os olhos dos dele. Alguma coisa impedia que suas palpitações mantivessem o ritmo convencional.
O calor que começara a surgir dentro dela há alguns minutos passou a consumi-la ainda mais. Para seu desgosto, o calor era bom, aconchegante, delicioso.
Malditas flores.
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1 Delfim é o nome que se dá ao herdeiro do trono da França. No Novo Mundo, o Império de Lima é formado por alguns estados da Amazônia brasileira e outros países, incluindo a Guiana Francesa, colônia da França na América do Sul desde 1667 e principal território da União Europeia no continente.
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