6. Amizade Inesperada
Ser assistente de uma matrona trazia mais dificuldades que benefícios. De modo geral, significava que ela precisa exercer bem o seu trabalho e garantir que as outras meninas fizessem o mesmo. Logo, os primeiros momentos de Lana na corte consistiram basicamente nos afazeres intermináveis e nos enfadonhos relatórios que ela precisa prestar para a Matrona Qin.
Antes da primeira semana chegar ao fim, as mãos de Lana já estavam em carne viva. Ela rapidamente aprendeu que nunca mais voltaria a dormir bem e que comeria bem menos ainda. Embora cada alojamento contasse com sua própria cozinha, ninguém dispunha de ingredientes, lenha ou vontade para preparar as refeições. As criadas sequer tinham suas próprias panelas, então a maioria acabava se munindo da comida comunitária que era servida na cozinha, uma papa insossa e inidentificável que grudava nos dentes e pouco sustentava. A única coisa pior que a comida eram as camas duras e cheias de percevejos, e a única coisa pior do que as camas era o próprio trabalho em si.
As criadas pessoais precisavam cuidar dos desejos de um só senhor, mas servas como Lana precisavam suprir a necessidade de todo Palácio. Como a maioria das servas era realocada diariamente, as tarefas pareciam nunca ter fim. Haviam quantidades exorbitantes de roupa para serem lavadas e uma quantidade infindável de cômodos para serem limpos. As coisas pareciam precisar de novos reparos tão rapidamente quanto eram substituídas, e não havia um dia em que Lana não terminasse seus afazeres tomada pela dor e pelo cansaço. Apesar disso, nem todas as tarefas eram desagradáveis. Lana gostava de cuidar do jardim e de cozinhar, mesmo que as refeições dos nobres fizessem seu estômago doer de desejo. Além disso, sua posição permitia um contato indireto com as posições mais altas. De vez em sempre, era necessário entrar nos aposentos pessoais dos príncipes para trocar as esteiras do chão ou a palha da cama, e, em algumas situações, ela até conseguia pescar fragmentos de informação durante os banquetes. Apesar da utilidade que essas coisas pudessem ter no futuro, Lana sabia que elas não passavam de migalhas e que precisaria de muito mais para concretizar sua vingança. Essa percepção não era fruto de uma alma necessariamente ambiciosa, mas principalmente ferida. Lana sentia que não teria paz de espírito até ver a cabeça do Príncipe Herdeiro rolando. Seria melhor ainda se fosse ela quem a cortasse. Por causa disso, era preciso encontrar uma rápida maneira de obter mais.
Numa noite fria, Lana e Linete haviam ficado sozinhas em seu dormitório. As outras criadas que dividiam o espaço com elas estavam servindo no banquete e tinham deixado para trás de si uma irremediável paz de espírito. Sentadas sobre um catre áspero, as duas conversam livremente enquanto Lana enfaixava as mãos da amiga com emplastros de ervas. Os dedos de Linete estavam inchados e sangrando depois de um dia de trabalho nas fazendas reais, mas uma simples composição com plantas comuns devia bastar para curá-los.
— Fico contente que os ensinamentos de minha mãe acabaram sendo úteis, senhorita. — disse Linete. A mãe dela era a mestre da cozinha no castelo do Norte e, assim como Linete, Lana havia recebido alguns ensinamentos menores de fitoterapia quando se interessou em aprender culinária.
— Não precisamos de toda essa formalidade entre nós, querida. — Lana disse com suavidade. — Sua mãe é uma mulher muito sábia e foi uma honra aprender com ela.
Os curativos não demoraram muito mais para serem finalizados. Quando Lana terminou, Linete olhou para as próprias mãos com admiração e flexionou os dedos até onde as ataduras e as dores permitiam.
— Você sente falta de casa? — ela perguntou, de repente.
— Sim, muita.
— A vida na corte deve estar sendo muito dura para você. — a voz de Linete não estava desprovida de ternura. — Não pensa em voltar para casa?
— Eu tenho um papel a cumprir. — Lana soava triste, mas resignada. — Não acho que esteja sendo muito mais fácil para você. — com o queixo, ela fez um gesto na direção dos dedos feridos da amiga.
Linete deu de ombros.
— Servi-la era infinitamente melhor, senhorita, mas eu até gostei da corte. A vida é dura, mas fascinante.
— Talvez seja muito melhor se deixar levar pelas belezas imperiais quando não se tem pilhas de roupa fétida para lavar.
— Permita-me discordar. — Linete tinha um ar muito sonhador. — Outro dia eu estava podando os arbustos do jardim quando um pássaro canoro pousou em uma moita perto de mim. Era muito belo e me coração se encheu de alegria. Tive vontade de apanhá-lo, mas o lugar de um pássaro é no céu.
Lana se limitou a concordar.
— Às vezes eu queria retomar meu estatuto de nobreza apenas para ter tempo de ficar contemplando a beleza do mundo. — ela disse. — E para não ter mais afazeres tão árduos, principalmente.
Linete sacudiu a cabeça.
— As belezas do mundo estão aqui independentemente da nobreza, você só precisa saber apreciá-las.
Depois disso, Lana se pegou pensando muito em passarinhos. Quando dormiu, sonhou que era um deles e que voava para longe, para onde a sua inocência jamais tinha sido maculada.
Naqueles tempos, um gato alaranjado começou a rondar as imediações dos edifícios reais. Ele não parecia estar abandonado, mas também não possuía nenhum dono evidente. Como Lana sempre teve um fraco pelos animais, ela rapidamente forjou uma amizade com o felino. Até dava uma porção de suas refeições diárias para ele, embora o pão endurecido não agradasse a nenhum dos dois. Rapidamente, o gato também passou a acompanhá-la de volta para casa e muitas vezes dormia na cozinha abandonada do alojamento. Apesar de seus momentos de travessura, o bichano costumava ser dócil e muito inteligente. Às vezes, Lana tinha a sensação estranha de que ele entendia tudo que ela dizia, mas considerava que isso era apenas fruto de sua imaginação fértil. Gatos não eram capazes disso. Ou eram?
Esse era um daqueles momentos em que o dever dava um tempo. Lana estava sentada nas escadas do Salão da Obediência, com um prato em seu colo e o gato a seus pés. A Matrona Rose havia dado uma fatia de torta de abóbora para todos os servidores da cozinha, pois haviam sobrado muitas. Provar algo tão gostoso depois de tanto tempo era quase orgástico e o gato parecia saber disso. Ele se esfregava nas pernas de Lana, clamando por um pedaço. Quando ela atirou um bocadinho para ele, o gato pareceu prestes a explodir de felicidade. Ele ainda queria mais, mas Lana não estava disposta a dividir o resto.
— Você é muito guloso, Laranjinha. — ela repreendeu.
A torta se dissolvia em nuvens de prazer na boca de Lana e estava tão boa que seria um sacrilégio dividir mais um pedaço dela. Quando Lana deu por si, o prato já tinha sido esvaziado e restava apenas farelo. Nem as migalhas escaparam e, enquanto ela lambia os dedos, um som distante pareceu capturar a atenção de Laranjinha. Com as orelhas e o rabo erguidos, o gato deu um galope e atravessou as portas meio abertas da entrada.
Lana deu um salto e imediatamente se pôs a persegui-lo. O Salão da Obediência era um dos edifícios mais importantes do Palácio Real, pois abrigava os magistrados. Esses homens eram os responsáveis pelo cumprimento e análise das leis e frequentemente recebiam visitas do próprio Imperador. Não era o tipo de lugar onde se esperava encontrar um gato de rua e a presença de Laranjinha podia trazer muitos problemas para Lana. Ele podia até mesmo topar com o próprio Imperador e isso implicaria em um castigo extremamente duro para os dois.
Com isso em mente, Lana não hesitou em perseguir o gato através dos ambientes suntuosos que se abriam para ela. Laranjinha era ágil e dobrava os corredores com a velocidade de um raio, mas Lana não ficava para trás. Quando ela viu a luz do sol se estendendo pelo piso, finalmente compreendeu que o gato corria para o pátio na área externa do prédio. Por um segundo, ela teve medo de não poder capturá-lo mais, mas Laranjinha subitamente parou no longo corredor de pedra que conduzia ao exterior. Percebendo que o gato estava imóvel, Lana se aproximou cuidadosamente com a intenção de pegá-lo por trás, mas abruptamente parou ao notar no que os olhos verdes do felino se fixavam.
Três servas discutiam de maneira acirrada. Duas delas usavam o mesmo uniforme que Lana, envergando saias compridas e blusas de manga longa e gola alta, tudo na cor lilás. A terceira evidentemente pertencia a um estamento superior, pois trajava um longo vestido verde, com mangas longas e uma gola alta e bordada. Esta, por sua vez, parecia estar sendo assediada pelas outra duas e assumia uma postura corporal tensa e vulnerável.
— Desculpe, eu não tive a intenção de pisar nos seus sapatos. — dizia a garota de vestido verde. — Eu não usei meus sapatos novos ainda, se for o caso eu posso trocar com você!
— Eu não quero seus sapatos. — uma das criadas disse. Lana percebeu que era a mesma garota loira que tinha mostrado petulância nos testes de admissão. — Eu só quero que o meu seja limpo. Não estou pedindo muito, estou?
— Você! — uma pontada de raiva pareceu surgir no rosto da garota de verde. — Você deliberadamente tentou me empurrar e eu pisei nos seus pés tentando evitar isso!
— A culpa não é minha se você é uma imbecil. — a serva de cabelos claros abriu seu mais cruel sorriso. — Quero que você se abaixe e limpe meu sapato agora mesmo!
Lana não suportou ver a garota sendo acossada por uma questão tão trivial. Agarrando o gato com um movimento rápido, Lana se aproximou das três com passos decididos. A criada loira não conseguiu esconder o desprezo que sentia ao vê-la.
— Por que é que vocês estão brigando por uma coisa dessas? — Lana dirigiu a elas seu olhar mais duro. — Aposto que a matrona adoraria saber! Vamos fazer com que ela seja a juíza.
A serva loira deu uma risada sarcástica.
— Ora, vejam só quem se sente arrogante apenas porque foi promovida.
Algumas das novas contratadas ficaram insatisfeitas quando ficaram sabendo que Lana começaria em uma posição ligeiramente superior a delas, e sempre a vitimavam com seus olhares hostis e sua insolência quando eram reprimidas. Por causa delas, Lana achava que lidar com as criadas era a parte mais desagradável de seu trabalho.
— Você sabe que eu sou sua supervisora e que posso impedir suas contendas, não sabe?
— Desculpe? — a loira dissimulou uma expressão arrependida por um breve momento, mas depois suas feições se desfizeram em uma carranca de ódio e ela tornou a rir de maneira irônica. — Você nem sequer sabia lavar roupa, mas mesmo assim se tornou minha supervisora. Você não engana ninguém, queridinha. Provavelmente há algo obscuro por trás de sua contratação.
Já fazia algum tempo que as novas criadas haviam ingressado no Palácio e Lana sempre agira com a maior competência possível, não deixando espaço para que duvidassem a seu respeito. Mesmo assim, as dúvidas existiam e ela tinha consciência de que algumas servas fofocavam a respeito dela. Não a surpreenderia de forma nenhuma se aquela mulher presunçosa tivesse sido o primeiro motor de todas as desconfianças.
— Algumas de nós apenas tem capacidade, minha cara. — Lana disse de maneira ácida. — Eu apenas fui mais esperta do que você, mas não é difícil ver que você é contra a inteligência. Se estava tão insatisfeita, deveria ter reclamado com a matrona meses atrás, quando chegamos aqui. Mas pelo que vejo, além de ser contra a inteligência, você também é contra a coragem.
Diante dessas palavras, a raiva da loira apenas se inflamou mais. Ela se lançou sobre Lana, com as mãos erguidas e prontas para se fecharem ao redor de seu pescoço, mas esta limitou-se a desviar. A outra serva de trajes lilases tentou impedi-la agarrando-a pela cintura, mas mulher de cabelos claros ganhou uma nova força devido a sua fúria. A garota de verde apenas olhava toda a cena com espanto, incapaz de se mover.
Percebendo a confusão, um grupo de guardas se aproximou. Um homem alto e bonito tomava a dianteira. Seus cabelos castanhos estavam presos em uma longa trança, mas seus olhos azuis eram frios como gelo e o rosto não demonstrava nenhuma reação. Lana sentiu um estremecimento percorrer seu corpo quando o reconheceu.
— Lorde Heng! — Lana disse apressadamente. — Por favor, me ajude!
Ao escutar o nome do supremo general do exército, a criada loira conteve seus ânimos. Antes que alguém pudesse dizer alguma coisa, ela se pôs a reclamar aos berros, afirmando que Lana e a outra garota foram as iniciadoras de toda a confusão. Lorde Heng não parecia nem um pouco disposto a continuar ouvindo tantos gritos, então tratou de silenciar a criada com um gesto e exigiu que Lana contasse sua versão dos fatos. Lana apenas ignorou a irritação visível na face da outra mulher e contou ao general tudo exatamente como tinha acontecido. A loira tornou a explodir de raiva.
— Nada disso é verdade! — ela gritou. — Você deveria prendê-la, general, pois é óbvio que ela esteve manipulando os funcionários ao seu favor.
— Você continua afirmando que eu subornei a Matrona Qin, mas sequer tem provas disso. — Lana disse calmamente. — Você não acha que, se eu tivesse feito isso, agora eu seria no mínimo uma assistente? Eu não estaria limpando penicos ao lado de alguém tão insolente quanto você, que sequer tem coragem de falar com os superiores.
Vendo que sua estratégia não estava dando certo, a mulher se atirou aos pés do general e forçou sua melhor expressão de desamparo.
— Senhor, por favor! Acredite em mim! — ela implorou, juntando as mãos. — Se esta mulher foi capaz de comprar a matrona, ela poderá lidar comigo facilmente. Tenho medo da sua vingança!
O general a puxou pelos ombros, colocando-a de pé com um gesto rude.
— Ela tem um ponto. — ele disse. — Se você tem tantas suspeitas a respeito dela, por que simplesmente não se reportou às matronas ao invés de começar uma briga no Salão da Obediência? Que tipo de confusão você está tentando criar?
A serva ficou claramente nervosa diante da reprimenda. Lana precisou segurar uma risada ao ver a expressão que se apoderava de seu rosto.
Lorde Heng sacou uma pequena bolsa de couro de dentro dos trajes e depositou uma moeda de prata na mão na loira.
— Minha irmã sujou seus sapatos sem querer. — ele disse. — Leve essa prata como compensação, mas não torne a arrumar tais confusões ou serei obrigado a açoitá-la.
Ao pensar que tinha ofendido a irmã do supremo general do exército, o rosto da mulher se converteu em uma máscara de puro terror. Ela agradeceu e rapidamente saiu dali, com a amiga a tiracolo.
— Irmão! Ainda bem que essa moça estava aqui para me defender. — a garota de vestido verde finalmente disse. — Eu não sei o que seria de mim diante de tantas acusações se ela não tivesse intervido.
Lana se limitou a assumir uma postura humilde, fazendo uma reverência contida para os dois.
— Aparentemente, essa criada tem o hábito de fazer acusações falsas. O nome dela é Grisa e não é a primeira vez que preciso intervir em uma confusão em que ela estava metida. Vou ficar de olho nela. — os olhos do general se fixaram em Lana e ela sentiu outro arrepio percorrendo a sua espinha. — Qual é o seu nome, senhorita?
— Lana Solo, senhor.
A expressão no rosto dele pareceu suavizar. Seus longos dedos voltaram a penetrar na bolsa de couro e submergiram de lá com duas moedas de prata. As bochechas de Lana coraram quando ela se deu conta do que ele estava fazendo.
— Eu não posso aceitar, senhor! — ela disse apressadamente. — Não foi nada demais, eu só queria reaver o gato!
Lorde Heng estranhou aquele súbito desapego financeiro, mas guardou as moedas sem levantar mais questões. Se despediu das duas com um gesto, e Lana também achou que era melhor tomar seu próprio caminho de volta para os seus afazeres. Antes que pudesse deixar o Salão da Obediência, porém, sentiu um puxão em suas vestes e se voltou para olhar nos olhos da mesma garota que ela tinha, por acaso, defendido.
— Eu só queria agradecê-la da forma correta. — ela fez um meneio de cabeça muito formal. — Meu nome é Nina. Quero que saiba que jamais deixarei de ser grata.
— Não se preocupe com isso, senhorita. — Lana disse gentilmente. — O único conselho que eu te dou é começar a agir de forma mais imponente, que esteja mais de acordo com a sua posição, ou essas mulheres vão sempre provocar você.
Nina deu de ombros, suspirando.
— Meu irmão já me deu o mesmo conselho, mas eu não sei agir de forma grosseira. Parece que meu gênio simplesmente me impede.
— Você só precisa de tempo, senhorita. Sei que em breve encontrará seu próprio modo de fazer sua autoridade valer.
Nina podia ser uma nobre, mas ao invés de assumir um posto como dama de companhia, acabou sendo indicada à um cargo de assistente pessoal do magistrado Voulie. Tinha uma alma realmente doce e pouco autoritária, como Lana pode constatar por si mesma a medida que as duas ficavam amigas. Não é como se elas estivessem nos mesmos lugares ao mesmo tempo, mas às vezes suas funções se chocavam e elas podiam dialogar. Às vezes, Nina até lhe dava um doce ou dois, pois sabia que era a coisa que ela mais gostava. Apesar das vantagens evidentes de se ter a irmã do supremo general como aliada, Lana passou a ver na garota uma verdadeira amiga e decidiu deixá-la de fora de seus projetos de vingança. Esse tipo de conhecimento do outro acabou se mostrando como mais uma vantagem da servidão, pois em sua vida anterior Lana jamais tinha tido contato com Nina.
Vagarosamente, Lana começou a apreciar seu retorno ao castelo, mesmo que a dureza do trabalho nunca tenha amainado. Ela realmente passou a ter conhecimentos que jamais teria obtido de outras formas e sempre cuidava de deixar esse ponto claro nas cartas que enviava para os pais. Em pouco tempo, ela não conseguia mais se imaginar sendo uma imperatriz ou uma rainha. A serva estava consumindo o lugar da majestade.
Foi então que o inverno chegou e com ele mais problemas.
♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡
Se você está gostando da história, não esqueça de deixar sua estrelinha e o seu comentário. Isso me motiva a continuar escrevendo!
♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡♡
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top