Semana 2
Eu poderia passar as próximas 24 horas reclamando desse ser humano que está dividindo o acampamento comigo, mas seria um gasto de energia desnecessário porque ela não vai mudar. Ontem, depois que Mila foi embora nós não trocamos mais nenhuma palavra.
Não que eu faça questão de ouvir suas reclamações infindáveis, mas eu preciso dormir em um lugar minimamente confortável e agora tem um lugar na rede, mas ela me ignora todas as vezes que tento abordar o assunto. Falando nisso, eu me arrependo de ter dito que era um objeto desnecessário. Percebi que pela primeira vez Sarah dormiu a noite toda, mas também, aninhada ao tecido da rede era impossível não dormir. Enquanto isso eu passei mais uma noite em claro, brigando com os mosquitos-palha e com as formigas.
Já é noite e o nosso dia foi perdido, pois tanto eu quanto ela não temos mais energias, tudo o que ingerimos até agora foi a água de um coco dividida para três pessoas e isso não tem calorias o suficiente para nos manter ativos.
Meus olhos estão pesando e o sono me deixa ainda mais irritado. A fome faz com que meus reflexos fiquem mais lentos e que meu corpo peça socorro. Se a gente estivesse na África eu juro que confundiria o barulho do meu estômago com rugidos de leões. Sarah não está diferente, pois apesar do conforto, eu a ouço chorar de fome constantemente.
Cansado de falhar, me levanto da cama improvisada com folhas munido da minha câmera de mão para tentar enxergar algo através da visão noturna e pego o arco e a broca em mais uma tentativa de fazer fogo. Depois de oito dias sem comer, sinto a fraqueza atingir meu corpo quando tento a todo custo gerar calor para acender uma faísca sobre o ninho que encontrei.
Meus músculos doem e eu já não tenho mais forças, nem físicas e muito menos mentais. Chuto as madeiras e começo a chorar feito uma criança. É incrível como esse lugar mexe com as nossas emoções e todos os sentimentos ficam à flor da pele.
Já sem forças até para me sentir frustrado, debruço a cabeça nos joelhos e choro de soluçar. Um choro sem sentido, eu sei, mas eu odeio falhar dessa forma. São oito dias de agonia, de noites frias como esta, de fome porque não adianta pescar se não temos onde assar um peixe.
Acordo com um barulho e ao ligar minha câmera, vejo que William não está em sua cama. Me levanto assustada e caminho com o facão em mãos em direção ao barulho. Me deparo com meu parceiro com o rosto debruçado nos joelhos e só pelo movimento frenético de seus ombros eu sei que ele está chorando de soluçar.
Me aproximo e pergunto se está tudo bem, mas ele me ignora. Ao olhar ao redor através da câmera, encontro o motivo de sua revolta. O meu lado insuportável fica repetindo que isso é um problema dele e que não tenho nada a ver com isso, mas o meu lado "eu" quer ajudar.
– Vem – estendo a mão para ele – Vamos fazer uma fogueira.
– Não precisa me ajudar por dó – ele me responde com a voz baixa.
– Será que você pode abaixar a guarda um pouco?? Eu quero fogo tanto quanto você.
William aceita minha ajuda e pega o arco. A lua cheia ajuda a iluminar o lugar, então mesmo com pouca visão, deixamos as câmeras de lado e focamos nossa atenção no arco.
Eu nunca havia sequer tentado acender uma fogueira dessa maneira, somente com uma pederneira e céus, como é difícil! Com o pé apoiado na madeira, William começa a puxar o arco para um lado enquanto eu puxo do outro. Não conseguimos enxergar a fumaça, mas vimos uma faísca surgir.
– Assopra! – ele fala e apressadamente eu me abaixo e começo a assoprar a brasa até que uma pequena chama surge.
– Traz a lenha!
Ordeno e ele rapidamente surge com alguns galhos secos e assim que os colocamos sobre a chama, o fogo começa a aumentar e a fogueira toma forma, iluminando nossos rostos e aquecendo nossos corpos.
Finalmente temos fogo! Minha vontade de chorar é grande, não vejo a hora de amanhecer para poder pescar alguns peixes e finalmente ter uma refeição! Olho para William e seus olhos estão tão brilhantes quanto os meus, finalmente conseguimos! E conseguido como uma dupla! Sem pensar muito, o abraço forte. Que merda você tem na cabeça em abraçar alguém que você não suporta, Sarah?? Mas isso não importa agora, porque temos fogo!
– Me desculpa – coço a garganta e dou alguns passos para trás.
– Tudo bem – ele fala ainda com o sorriso por ter conseguido – E obrigado pela ajuda.
– A Mila ficaria orgulhosa de ver nós dois trabalhando em conjunto.
Abri um sorriso e segui para a rede, o deixando ainda contemplando a fogueira que finalmente fizemos. No fim das contas a Mila tinha razão, a energia que gastamos nos ofendendo poderia ser útil se usada da maneira certa.
Mesmo passando a noite no chão, o calor do fogo me permitiu cochilar por alguns minutos. Decidi não implicar com a Sarah por enquanto (por mais difícil que seja), afinal se não fosse por ela, não teríamos uma fogueira hoje. Por falar nela, ela saiu animada em direção ao mar carregando a lança que fez com a ajuda do facão.
Estou sentado na areia trançando uma armadilha para pegar algumas lagostas enquanto a observo concentrada no mar. A armadilha consiste em dois cestos levemente cônicos feitos de cipó, um maior e outro menor. Este último vai dentro do outro, e aí quando a lagosta entrar, não conseguirá sair.
Termino de trançar os cestos e os coloco dentro do mar em uma posição em que a maré não leve embora. Volto a procurar por Sarah e dou risada ao vê-la irritada por não conseguir pescar. Por mais que eu esteja com fome, me sinto vingado. Afinal não foi ela que riu de mim por oito longos dias de tentativas frustradas de fazer fogo?!
– Por que você tá rindo? – ela me pergunta com a respiração cansada e voz irritada, me fazendo rir mais.
– Por nada – torço os lábios – Só achei que você fosse uma pescadora nata – sei que disse que não iria implicar com ela, mas é mais forte do que eu.
– Cala sua boca – ela me responde ainda mais irritada e só me faz ter mais vontade de provocá-la.
– Dá aqui essa lança, eu vou te mostrar como se faz.
A minha habilidade de pesca? Baixa. A minha habilidade de pesca primitiva usando uma lança? Inexistente. A minha vontade de irritá-la? Imensa. Sarah se senta onde eu estava e eu sigo até o mar com a lança empunhada.
Não é que eu não me sinta à vontade no mar, mas é que estamos cercados por tubarões e ouriços e isso já me deixa apreensivo nos banhos meia-boca que tomamos na água salgada, imagine então enquanto eu sei que estou tentando roubar o alimento dos tubarões? Eu me atacaria se fosse um deles.
Tentando não pensar nisso, passo pelo menos uma hora sob o sol escaldante e não consigo nem um mísero peixe. Acho que Sarah cansou de me esperar e decidiu se aproximar. Assim que chega ao meu lado, pergunta com um sorriso zombeteiro se já fui capaz de pescar algo e eu estou tão exausto que nem mesmo consigo pensar em uma resposta, então apenas nego sem desviar os olhos da água.
– William, corre aqui!
Sarah me chama com certo entusiasmo na voz e eu sigo até ela, que está a poucos metros de distância. Assim que acompanho seu olhar, vejo um caranguejo enorme – pelo menos perto de qualquer outro que vimos – e preparo a lança, mas ela me barra dizendo que teremos que usar as mãos.
Podem me chamar de fresco, mas uma beliscada de um caranguejo é o que eu menos preciso agora. Mas é isso ou morrer de fome, então de repente estamos nós dois agachados cercando o crustáceo até que Sarah consegue pegá-lo.
O balançando no ar como se fosse um troféu, eu a vi genuinamente feliz pela primeira vez desde o dia em que chegamos. Sarah pode estar suja, descabelada, torrada pelo sol e coberta de picadas, mas ela fica mais bonita quando sorri. Irritantemente bonita. Mas mais bonito do que ela é este caranguejo enorme que ela carrega.
– Finalmente proteína! – comemoro enquanto caminhamos em direção ao abrigo.
– Graças a mim! – ela abre um sorriso triunfante.
– Mas não se esqueça que aí quase não tem calorias. Se tiver umas duzentas é muito.
– Melhor do que zero, que foi o total que você conseguiu.
Sarah dá de ombros e acelera seu passo até a panela que Mila nos deixou. Colocamos o caranguejo na água e nossos estômagos roncam em sintonia enquanto esperamos pela nossa primeira refeição. Não sei se é a fome, mas está demorando uma eternidade para ficar pronto e o silêncio entre nós não ajuda o tempo a passar mais rápido.
– O que você faz fora daqui? – decido perguntar para quebrar o silêncio chato.
– Bartender de quarta à domingo – ela responde sem nem desviar os olhos da panela.
– E você gosta do que faz?
– É mais agradável sobreviver pelada nas Bahamas na sua companhia do que com os bêbados me assediando.
– Então minha companhia é agradável? – sorrio sem perder a chance de provocá-la.
– Não. Pra você ter ideia de quão insuportável é o meu trabalho.
E é com mais uma resposta atravessada que eu volto a ficar em silêncio. Já se passaram nove dias, então já me acostumei com o jeito nada cordial da minha dupla. Permanecemos sem trocar uma palavra até que o caranguejo finalmente fica pronto. Nós o devoramos como dois mortos de fome – o que não deixamos de ser – e a sensação de ter algo no estômago, mesmo que pouco, é consolador.
No restante do dia ficamos afastados. Eu aproveitei para adentrar a mata e procurar por mais alimentos, e pelo o que vi quando retornei carregando dois cocos, Sarah passou o dia deitada sem fazer nada.
Já é noite e por conta dos cocos que tomamos mais cedo, o chão está infestado de formigas. Me recuso a dormir na minha cama improvisada que já deve estar sendo atacada pelos insetos e decido ir até Sarah, que está tranquilamente deitada em sua rede.
– Pode chegar um pouco pra lá, por favor? – peço com mais educação do que o normal.
– Tá doido? – Sarah franze o cenho e altera a voz.
– Continuo lúcido. Tão lúcido que finalmente me dei conta que no primeiro dia você disse que essa rede só cabe duas pessoas e veja bem: um, dois – aponto para ela e em seguida para mim.
– Eu não quero dormir com um cara pelado me encoxando.
– Eu não quero te encoxar. Eu só quero sair do chão.
– Quem me garante isso??
– O seu cheiro garante – dou de ombros.
– Você tá dizendo que eu tô fedendo??? – sua voz sai esganiçada.
– Nós dois estamos, Sarah. Nove dias sem sabonete e desodorante, lembra?
Sarah bufa contrariada e abre espaço para que eu me deite na rede. Deus, como é confortável! Claro que se estivesse sozinho seria infinitamente melhor, mas Sarah não é tão grande e não ocupa tanto espaço, então só o fato de estar minimamente confortável já me deixa extasiado.
– Se eu sentir seu pênis encostando em mim, eu juro que arranco ele fora com o facão num golpe só – sua voz soa ameaçadora e seria mentira se eu dissesse que não estou com receio.
– Fica tranquila, tanto ele quanto eu queremos distância de você – tento soar tranquilo, mas me asseguro de deixá-lo tampado com a bolsa.
– E nada de conchinha, entendeu? Quero você de costas pra mim o tempo todo.
– E se eu precisar virar?
– Aí o problema é seu.
Sarah se vira e acabamos encostando nossas costas uma na outra. Apesar de todo o receio de me virar e encostar qualquer parte do meu corpo no dela, consigo dormir por cerca de duas horas. Aparentemente ela também dormiu, já que mal se mexeu.
Eu não aguento mais dormir com esse traste! Será que ele não tem noção do tamanho dele?? Além de tomar quase toda a rede, ainda me impede de me mexer como eu gostaria. Dormir com a Mila ao menos era confortável, não víamos problemas em nos abraçar durante a noite e eu também não precisava me preocupar com a possibilidade de um pênis me cutucar.
Não que ele tenha feito qualquer coisa que me desrespeitasse nesses dias que dividimos a rede, mas eu nunca fico tranquila estando na companhia de um homem desconhecido, mesmo William sendo muito respeitoso nessa questão. Nesses quatorze dias eu nunca o vi olhar para qualquer parte do meu corpo que não fosse o rosto, nem mesmo o de Mila. Durante a noite ele pega as duas bolsas e coloca entre nós dois, além de tentar manter – dentro do possível – uma distância entre nós.
Hoje o dia amanheceu cinza e nós também, deixando nossa convivência ainda mais difícil. O caranguejo foi nossa última refeição e os bambus parecem mais pesados agora que estamos fracos. Ao menos não nos falta água, apesar de não exagerarmos na dose.
Não sei que horas são, mas pela posição do sol entre as nuvens, deve passar do meio dia. Uma da tarde, talvez? William saiu em direção à sua armadilha mais uma vez, mas eu não acredito que tenha algo lá. Aproveito que estou sozinha e vou tentar pescar com a lança novamente. Vejo os peixes nadando, mas os tubarões cabeça-de-cesto estão por aqui e por mais que essa espécie de tubarão seja pacífica, eu é que não quero me meter com eles.
– É só você pensar que esse peixe é a cabeça do William.
Sussurro para mim mesma ao mirar em um peixe de cerca de vinte centímetros. Sou capaz de ver aquela cara feia do... Tá bom, feia é exagero. Sou capaz de ver aquela cara bonita e insuportável do William no peixe e movo a lança com rapidez, o acertando em cheio.
O tiro do mar apressadamente e o enfio na bolsa para que nenhuma gota de sangue pingue sobre a água, porque seria apenas um chamariz para os tubarões. Animada com o sucesso da pescaria, volto a tentar. Mais uma hora de paciência e mais um peixe para o jantar.
Finalmente pudemos comer peixe. Depois de dois terços do desafio, finalmente estamos sentindo o cheiro de peixe assado invadir nossas narinas e brincar com nossos estômagos. A empolgação de William quando me viu voltar para o acampamento sorridente chegou a ser engraçada, nunca o vi tão feliz por me ver.
– O maior é meu – falo já puxando o espeto do fogo e esperando por sua reclamação.
– Nada mais justo – ele assentiu – Você pescou, você tem o direito.
O vejo puxar seu espeto e ao dar a primeira mordida em seu peixe que nem é tão menor que o meu, faz uma cara de satisfação que poderia brincar com a minha imaginação se estivéssemos em outra situação. Mas não estamos e eu ainda não o suporto! Foco, Sarah!!
– Nossa, isso tá delicioso – William murmura após um suspiro.
– Uma delícia mesmo – o olho de cima a baixo e entendam como quiserem, mas eu estou falando do peixe.
Estamos fazendo a digestão deitados na areia quando vemos um raio cortar o céu e alguns relâmpagos surgirem por entre as nuvens. Não sei ele, mas eu fiquei tensa com isso. Será a nossa primeira chuva aqui na ilha e eu não faço ideia do que esperar. Antes que possamos nos levantar, como um balde virando sobre nossas cabeças, a tempestade começa.
Nos levantamos e corremos para o abrigo, mas isso não impede que fiquemos molhados. O abrigo possui uma goteira ou outra, mas isso é inevitável. Ao menos não há nenhuma em cima da rede e nossa fogueira também está protegida.
– Largados, pelados e molhados – rio da minha própria piada.
– Pelo menos estamos seguros aqui embaixo. Suas habilidades de abrigo são ótimas, devo confessar – ele fala ao se deitar na rede.
– Obrigada – me deito ao seu lado. Eu tenho uma resposta provocativa, mas ele está sendo gentil então não custa agradecer.
Do abrigo, ouvimos a chuva e assistimos os relâmpagos por entre as árvores durante a noite. As horas passam e a tempestade não dá nem sinal de que vai parar, e como deitamos molhados, a rede está úmida e nossos corpos gelados. Sinto a minha temperatura cair bruscamente e me irrito comigo mesma por isso. Não posso gastar a pouca energia que me resta tremendo igual vara verde. Então decido tomar uma decisão que venho postergando há dias.
– William... – sussurro para o rapaz de olhos fechados.
– Sim? – tira o braço de cima do rosto e me encara.
– Você pode me abraçar?
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