22
Quando faço a curva na parte da caverna em que Sander costuma desaparecer, passo por um pequeno túnel e me surpreendo ao logo depois me deparar com... a floresta.
O canto dos pássaros, a luz do sol, o solo coberto de folhagem, as cores vibrantes das árvores. Estamos, de fato, na floresta de Tibbutz.
Doutor Salz não estava brincando quando disse que não era impossível sair.
Ouço o estalar de um graveto e localizo meu objetivo logo à frente.
— Sander — grito, de forma forçosamente amigável, enquanto já disparo numa corrida até ele. — Espera.
Ele olha para trás e, conforme me aproximo, revira os olhos.
— Ótimo, era só o que me faltava.
— Sabe essa sua nova personalidade negativa e resmungona? — pergunto, já caminhando ao seu lado. — Não combina. Acho que prefiro aquele Sander que sempre tinha um sorriso estúpido na cara.
— Aquele Sander...— ele murmura entredentes. — Tinha um sentido na vida. Tinha um plano. Até que veio alguém e estragou tudo.
— Um belo de um plano — retruco, ironicamente. — Qual era o passo seguinte? Genocídio em massa? — provoco.
— Nós poderíamos tê-la salvado! — Sander explode, se voltando para mim e agarrando nos meus ombros, os olhos arregalados e cheios de desespero. — Se você tivesse apenas confiado em mim.
A ideia de confiar em alguém que quebra perna de garotinhas é tão surreal que, por um instante, nem sei o que responder. Apenas fecho ainda mais o semblante.
— Eu poderia tê-la salvado — respondo rispidamente, me desvencilhando de seu toque. — E ainda vou salvá-la.
— Que o Destino não permita que algum dia eu dependa de você para salvar minha vida — revida, retomando a caminhada.
— Não mesmo, porque eu provavelmente não salvaria. — Dou uma risada falsa e depois silencio. Não teve a menor graça porque é a mais pura verdade.
Caminhamos mais alguns minutos em silêncio, até que percebo que o terreno está chegando ao fim, abrindo espaço para um declive abrupto, uma imensidão profunda e imensurável.
O que estamos fazendo aqui? Por que Sander me levaria para perto de um barranco?
Instintivamente, paraliso e dou dois passos para trás assim que avisto a beirada. Sander percebe minha hesitação e começa a me observar com um olhar estranho, os cantos da sua boca quase se erguendo com o antigo sorriso.
— Qual é o problema, docinho? — Ele se aproxima da encosta e chuta alguns pedregulhos para baixo. — Está com medo de quê?
De pessoas que não têm escrúpulos para empurrar outras do alto. Só disso.
Desafiadoramente, ando até a borda e cruzo os braços, erguendo o queixo.
Sander pode até me derrubar. Mas virá junto.
O rapaz, no entanto, não tem a oportunidade de fazer nada. Logo que chego no ponto mais próximo do precipício, do meio do desfiladeiro surge um objeto negro retangular do tamanho de um pequeno edifício, acobertando a linha do horizonte em meu campo de visão e emitindo um som ensurdecedor. Ele navega rapidamente na minha direção e, instintivamente, pulo na direção das árvores e caio, rolando no chão, entre as raízes. O objeto voa numa trajetória reta e eu me escondo por trás de um tronco, tremendo e arfando.
Após alguns segundos, ouço a gargalhada alta e incontrolável de Sander Kravz. Inspiro fundo, enquanto limpo os restos de folha secas e espinhos da porção de pele ralada nos meus cotovelos e joelhos. Quando giro na direção do imbecil, Kravz tem as mãos sobre os joelhos recuperando o fôlego após rir tanto.
— Vai dizer que não teve medo daquilo? — Afunilo os olhos e me coloco de pé lentamente.
— É só um transporte, Hadassa — ele explica num tom condescendente. — É quase sempre inofensivo. Estava apenas trazendo mais um infeliz inconsciente que logo estará na caverna se perguntando onde diabos acordou.
— Quase sempre inofensivo?
— Bem... estes sãos os não-tripulados. — Ele cruza os braços e para para pensar. — Quando há alguém dentro dele, alguém consciente, há uma luz vermelha que pisca em ambos os lados.
— E aí o que acontece?
Sander contrai as sobrancelhas e seus lábios se curvam para baixo.
— Aí você precisa correr, como nunca correu antes.
A gravidade em sua voz me faz perceber o quão sério está falando e um tremor involuntário percorre meu corpo. Seria essa a punição, da qual Doutor Salz estava falando?
— Como você sabe tanto a respeito disso tudo aqui? — questiono, confusa. Que eu saiba, nós dois chegamos juntos. Ou eu dormi tanto assim?
— A vantagem de ser um pária da sociedade é que as pessoas não prestam atenção. Isso traz uma certa liberdade. Enquanto todos vivem suas vidas, ninguém repara no adolescente que desenvolve um estranho hábito de visitar criminosos.
— Você? — Ergo as sobrancelhas e dou uma risada sem humor. — Está explicado de onde pegou seu senso de moral. Ou a falta dele.
Sander contrai os olhos, vira o rosto de lado e parece me analisar minuciosamente. Ele caminha até mim, lentamente, e a atenção que dedica a mim me leva a me perguntar se há algum bicho venenoso no meu rosto ou algo assim.
— Só uma pergunta: o que você pensa quando me trata assim? — Ele deposita uma mão sob o queixo, com uma expressão de genuína curiosidade.
— Tratar como? — questiono, desconfiada.
— Assim. — Ele abre as mãos na minha direção, como se eu mesma ou a distância entre nós fosse explicação suficiente. — Você se sente poderosa e incrível? Acha que é inteligente? Saiba que isso não faz de você de forma alguma especial. Acredite, querida, o mundo inteiro me tratou como lixo; não é necessária muita habilidade para isso.
— Oh, coitadinho. — Faço um beiço choroso irônico. — Teve uma vida difícil? Adivinha? Todas as outras duas bilhões de pessoas do planeta que não nasceram em Tibbutz também. E, adivinha o que mais, é lixo como você que perpetua a desgraça nesse planeta.
Ele ri pelo nariz uma única vez, antes de sussurrar:
— Você é um caso perdido.
E me dá as costas.
Não. Se tem alguém nesse planeta que não vai simplesmente me dar as costas é Sander Kravz.
— Ah, é? — Apresso os passos atrás dele. — E sabe o que você é?
Ele freia de repente e eu trombo contra suas costas. Imediatamente ele se volta e agarra meus pulsos, me prendendo na altura do peito, com o rosto brandindo de ira.
— O que sou, Hadassa? — O rapaz brada entredentes com olhos flamejantes, o rosto púrpura de ira.
A mudança é tão repentina, do estado de indiferença ao furor, que me assusta tentar imaginar qual das duas atitudes é a mais latente... a mais genuína... a que, por fim, vence.
— Você realmente acha que é capaz de falar algo que já não ouvi? — continua. — Que é capaz de me ferir? Que consegue afetar uma pessoa que simplesmente não tem mais nada a perder?
E, pela primeira vez vejo claramente, por trás da fúria em seus olhos, toda a mágoa acumulada, toda a perda, o senso profundo de ser vítima de uma injustiça. Claro que não na medida do que vi e vivi. Seria impossível para qualquer tibbutzino.
Mas Sander é humano.
Isso significa um ser com uma combinação genética exclusiva, nova e viva. Uma combinação exclusiva, nova e viva, absolutamente incomparável, de experiências e lembranças e vivências. Dentro de seu universo particular único, o que conhece é um universo completo de dor. Adiantaria dizer para alguém cujo balde transborda que existem baldes maiores e mais cheios?
Não justifica, eu repito para mim mesma. NÃO JUSTIFICA, grito para o meu cérebro confuso e solitário e desesperado e medroso que se esforça tanto para me fazer forte e se desvencilhar dos tentáculos da doença compaixão.
Não importa o que ele passou, o quão agonizante tenha sido sua vida e até mesmo quais suas intenções finais.
Jamais justificaria o que fez.
Sander me solta, de repente, e sua expressão se transforma.
Onde havia ira, agora há puro pânico.
Sigo a direção dos seus olhos e observo que o transporte retornou.
E, de cada lado, piscam duas luzes vermelhas.
— Corra — ele sussurra com voz trêmula.
E então começam os tiros.
Nota da autora:
amando ler os comentários de vocês <3
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