Verossimilhança (Um instante com ela)

Eu estou acabado. Destroçado. Destruído. Em pedaços. Desterrado. Exilado. Solitário. Expatriado. Um rio de Heráclito. Intermitente. Descontinuo. Indeciso. Incerto. Estou decidido. Entregue. Fluido. Quente. Fervente. Ardente. Meu Deus! Estou descontroladamente reluzente. Que sensação é essa que me deixa tão inconstante e perdido, porém, que ao mesmo tempo faz com que eu me sinta tão convicto e achado? Eu queimo em brasa por dentro, mas por fora meu corpo está frio. Suando frio. Sou o Kilauea entrando em erupção no Havaí. Isso, meus caros, só pode ser...

Porcaria, antes de qualquer coisa devo explicar a situação. Então vamos lá. Sem enrolação que estou apressado hoje.

Meu dia começou de forma maravilhosamente extraordinária. Minha inspiração estava nas alturas. Minha última obra prima teve uma repercussão tamanha que todos estavam loucos para saber quem eu era. Não vou mentir que esse não era meu objetivo, já que eu visava, antes de tudo, minha satisfação pessoal e não ser “ovacionado” pelo público. No fim das contas, mas me decepcionei por toda essa fama do que fiquei orgulhoso. De toda forma, isso serviu apenas para que eu me inspirasse mais e mais e mais.

Eu tanto falo e não me apresento, não é mesmo? Pois bem. Charlie. Isso é tudo que precisam saber sobre mim. Não é meu verdadeiro nome, mas é um dos meus pseudônimos mais queridos. É um nome artístico e belo, além de muito similar com o de um grande ídolo meu. Coisa para outra história.

“Inspirado e cheio de energia, o jovem Charlie saiu de sua casa a procura de uma nova inspiração. Ele buscava mais que tudo na vida atingir o patamar máximo da arte. Aquilo que fazia seu coração bater forte e seu sangue ferver de emoção. Que o levava ao delírio e o deixava em estado de estase. Um dia já havia sido um menino tolo, mas agora não mais.”

“O jovem procura incansavelmente alguém que o satisfaça como artista. A vida, porém, não é tão boazinha e sempre mostrava que Charlie não tinha obtido êxito em seu objetivo. Ele precisava encontrar alguém que se encaixasse na sua arte. Uma pessoa que, de tão satisfeita com a vida, imploraria até a última gota de energia para continuar a vivendo. E então teria suas expectativas quebradas por Charlie, quebradas em mil pedaços e escorridas na mais bela cachoeira de sangue.”

“Ele estava convicto que encontraria a pessoa desta vez. Oras, não é difícil dar de cara com uma pessoa vomitando arco-íris de felicidade na rua. Dito e feito! Após andar apenas alguns metros fora de casa, ele se deparou com uma verdadeira obra de arte. Ela tinha tudo que ele buscava. Cabelos vermelhos perfeitos para ser o córrego do sangue. Um amor nítido pela vida, notável pelo sorriso que saltava de seu rosto. Um corpo que levava muitos homens a loucura pela sua composição assimétrica, inclusive o próprio Charlie. E, o mais importante de tudo, seu olhar casou com o de Charlie.”

Esse foi o momento ímpar. Quando ela me olhou e eu a olhei...

Eu senti o sangue fervendo e o coração palpitando mais forte. Eu tinha que matar aquela mulher e fazer dela meu trunfo. Aquela sensação de estase estava chegando e eu não podia esperar. Tomada pela inocência a jovem sorriu. Não fazia ideia do que eu planejava com ela. Foi então que nossos olhos se desalinharam. Apenas por um momento, pois, assim que passamos um pelo outro, nossas cabeças parecem ter sido atraídas para trás e cruzamos olhares mais uma vez. Ela novamente dirigiu um sorriso para mim. Paralisei e continuei a olha-la.

A jovem de cabelo vermelho voltou a seguir seu rumo e quando ela virou a rua, sem perder um segundo, parti em sua direção. Segui-a por um breve momento, até que a rua ficasse desolada e restasse apenas eu e ela. Era engraçado como ela fingia não me notar, pobre de mim... Quando não existia mais sinal de vida além do nosso, atingi-a com um golpe no pescoço que a fez desmaiar. Era hora de voltar para casa.

Na comodidade do meu lar, no cantinho mais confortável dele, a querida “garagem”, eu preparava calmamente o meu show. A moça estava deitada sobre uma mesa e seus pulsos e pernas estavam amarradas. Ela ainda dormia calmamente, como uma princesa. Ouvindo a relaxante ressonância de sua respiração, eu amolava minha querida faca Ka-Bar Marine. Quem dera, era uma Tramontina básica, mas muito útil! Querida amiga e fiel aliada. Ela bastava para esse que eu acreditava ser o espetáculo que me realizaria. Porém... É aqui que as coisas começam a desandar.

Quando fui acordar a jovem pude notar que ela na verdade não estava dormindo. Como fiz essa análise? Simples, ela estava com um sorriso imenso no rosto e forçava os olhos para continuarem fechados. Eu sinceramente me segurei para não rir. Foi tão inusitado que chegou a ser hilário. Inicialmente pensei que ela havia se dado conta da situação que estava e por não saber como reagir começou a rir. Para meu pânico, não era nada disso.

Quando cheguei mais próximo começamos a desenvolver um pequeno diálogo, que abalou toda a minha repugnante psique e eu me dei conta de quão tamanha era a minha inferioridade. Do quanto eu não era um terço do que achava pensava ser. Do quanto eu não era nada diante da presença dela...
- Então quer dizer que você está rindo, senhorita. É uma reação comum para aqueles que estão no limiar entre vida e morte. Acredite, já presenciei muitos desses casos. Minha única dúvida é: porque você continuou fingindo que estava dormindo mesmo após já ter acordado?

- Eu estava fingindo? Não, não, gatão. Eu estava interpretando a minha personagem. Mas, me desculpa lindo, não dá pra te levar a sério. Amolar a faca cantando até passa, mas essa tentativa de dialogozinho de psicótico revoltado com a vida, mestrado em língua portuguesa e protagonista de seriado de TV, não dá para aguentar não!

Eu juro para vocês que nesse instante minha vontade foi de fincar minha querida Tramontina na garganta dela! Por que eu não fiz? O riso perante a morte pode ser desespero, mas o dessa mulher era a certeza de que ela estava viva. Não pude entender, naquele instante, o quanto a proximidade com a morte pode nos fazer sentir tão vivos. Ela sem dúvidas sabia. Por isso não a matei. Eu precisava entender o que era aquilo. Todavia, eu não sou o tipo de pessoa que leva tudo na esportiva. Ela não me levava a sério? Essa era uma coisa que eu não podia deixar passar...

- Não tem como me levar a sério? A senhorita notou que está em uma situação bem desconfortável, não é?! Então, por favor, não venha afrontar o seu algoz dizendo que ele não pode ser levado a sério. Já estou lhe dando um tratamento agradável ao mantê-la encima de uma confortável mesa, poderia muito bem tê-la colocado em...

- Caramba, lindo, como você fala merda. Tá vendo como não dá para te levar a sério. Metade das coisas que saíram dessa tua boquinha maravilhosa é bosta. A outra metade é uma tentativa falha de me dar medo, ou seja, mais bosta. Quer me dar medo mesmo?! Então me rasga! Me arranha! Me bate! Me usa como brinquedinho de más intenções! Me mata!

Nunca havia me deparado com uma pessoa implorando por maus tratos. Eu não sabia o que fazer. Parecia que depois de tantos assassinatos era a primeira vez que eu estava empunhando uma faca. Meu interesse por aquela mulher só crescia mais. Eu não sabia o que fazer. Se eu não impunha medo a ela, se ela não se sentia ameaçada comigo, para que eu iria matá-la? Que prazer eu encontraria em satisfazer ela? Onde estava o apego com a vida que eu vi nela? O seu sorriso que agora deveria estar se convertendo em lagrimas. Seria uma atuação? Uma personagem?

-... E aí, vai ficar olhando para a minha cara mesmo? Eu sei que você é um gato, e eu posso até de dar uma chance, mas tô perdendo o interesse desse jeito. Não foi pra isso que eu deixei você me pegar tão fácil.
De fato, ela queria que eu a pegasse. Meu coração começava a bater mais forte. Estava à beira de um delírio. Eu não era nada... Um punhado de estrume valia muito mais que a minha existência... Tanto tempo me afundando na loucura para perceber que eu sequer havia chegado ao leito do rio. Ela, porém, já havia nadado e bebido o quanto podia das águas do rio, e ainda queria mais. Calor. Frio. Aquilo estava tomando conta de mim.

- Calada... Não ligo para o que você acha de mim, muito menos se você deixou ou não eu te pegar. Não ache que por falar essas besteiras eu vou deixar de fazer com você o que eu já fiz com tantos e tantas outras...

- Ui, ui. E quem disse que eu não quero que você faça o mesmo comigo? Mas, gostei dessa pegada mais séria! Continua assim que eu fico molhada logo, logo!

Eu não iria matá-la, mas eu não podia sair do meu personagem. Se ela conseguiu me enganar por tanto tempo, eu tinha que conseguir ao menos um pouco... Aproximei-me dela. Levei a faca até a sua garganta, antes, porém, passeie pelo seu corpo fazendo cortes leves e precisos. Nossos rostos estavam a centímetros um do outro. Quente. Frio. Coração batendo forte. Mas eu perseverei... Estava suando frio, mas minha expressão era de tranquilidade. Eu era um assassino e podia matar qualquer pessoa... Foi então que...

- Ainda acha que não dá para me levar a sério? Que eu estou brincando? Vai continuar rindo mesmo? Que se dane... Vou te mostrar o que é uma brincadeira de verdade...

... Minha mão tremeu. Ela percebeu. Sorriu. E então...

- Agora... Eu vou cortar... Sua gar...

... Destruindo-me e, ao mesmo tempo, acertando-me, veio ele...

- Você é um pirralho que finge tão bem ser um homem!

... O beijo.

Esquentei! Meu sangue ferveu. Ferveu mais do que quando eu cometia um homicídio perfeito. Meu coração bateu. Bateu muito mais do que quando Bolt quebrou o recorde dos 100 metros. Minha língua junto à dela. Nossos lábios namorados...

Apavorei. Como eu podia estar fazendo aquilo com alguém que há segundos eu estava pronto para matar? Gelei. Era algo contraditório demais para que eu pudesse entender. O fervor interior estava me fazendo suar frio.

Quando me dei conta do que estava acontecendo, parei o beijo em um instante. Eu acabei virando a vítima da situação.

- Uau, que beijo! Porque você saiu? Estava tão bom. Vem cá de novo e me solta. A gente pode fazer mais do que dar apenas um beijo.

- Você é louca, menina? Não percebeu até agora que eu estou tentando te matar?

- Você sempre faz isso com as suas vítimas? Se a resposta for sim, me mata logo. Aí eu posso renascer, de preferência mais atraente, e ter o melhor primeiro encontro da minha vida de novo!

- Quantos parafusos você tem a menos nessa sua cabeça, garota?

O que estava acontecendo comigo? Eu não fazia ideia. Até meu jeito de falar havia mudado. Ela fez algo comigo que ninguém tinha seque chegado perto de fazer. Eu estava hipnotizado pela voz dela. O que ela dizia era lei.

- Não sei. Até hoje não parei para contar. Mas devem ser muitos. O que eu perdi quando minha mãe morreu, antes o de quando meu pai batia na minha mãe, e mais antes ainda o de quando os dois batiam em mim. Aí teve meu cachorrinho que morreu, minha amiga atropelada, meu pai me molestando, a morte do Gleen em The Walking Dead... Essa foi a mais difícil de superar... Enfim, agora só quero mesmo é perder mais um ou dois parafusos com você!

Uma mente verdadeiramente atingida pela loucura. Autentica. Real. Uma obra a se inspirar. Nada de superficial, como eu, como ela havia me feito acreditar que eu era... Ela era loucura pura. Loucura essa que eu não podia deixar de provar! Loucura que eu precisava mais que tudo conhecer e adentrar.

- E...eu... Não sei se entendi essa frase...

-Isso foi uma deixa para você vir aqui, me soltar dessa mesa e a gente fazer o “bom e velho entra e sai”, se é que me entende. Claro, o recomendável é que você me maltrate o máximo possível!

“Entra e saí”... Ela conhecia laranja mecânica, uma das maiores inspirações para a minha vida de assassino. Eu apenas encarnei Alex. Sem me conter, rasguei as amarras que estavam prendendo-a. Em seguida, suas vestes. Ela era tão linda quanto a Vênus em seu nascimento.

Ia jogar minha faca para longe, ela, porém, segurou minha mão e trouxe-a, junto com a faca, até perto de suas costas, começou então a se cortar. Eu tirei minhas vestes também, não de forma tão bonita como ela, mas as tirei. Éramos Adão e Eva no paraíso. Não podia me conter de tanto tesão. Vê-la se cortando e sentindo prazer. Sentir seu corpo despido e tão perfeitamente definido. Ver seus cabelos vermelhos e olhar seu rosto angelical. Um anjo mortal e letal.

Eu a beijei violentamente e então entrei nela. Foi maravilhoso. Ela me arranhou com suas unhas grandes. Eu gostei. Estava adentrando na loucura. Senti que devia retribuir os arranhões. Mordi-a e arranhei-a. Estava sendo tudo tão natural. Era a primeira vez que eu fazia o “entra e sai”, mas em momento nenhum precisei me concentrar ou senti qualquer insegurança. Éramos dois cães jogados ao chão, em cima da mesa, na verdade.

Eu estava por cima e ela por baixo. Isso não por muito tempo. Ela saiu de mim de forma tão esguia e rápida que não pude sequer perceber como ela fez aquilo. Estava tomado pelo tesão. Aquilo era infinitamente melhor que a masturbação. Ela me jogou no chão. Eu caí e ela subiu em cima de mim. Beijou minha barriga e todo o resto do meu corpo, subindo até meu rosto e me beijando na boca. Sentou com tudo em mim e eu entrei nela novamente. Ela segurou meus cabelos violentamente. Retribui segurando seus glúteos. Tão perfeitos e durinhos.

Fizemos mais do “entra e sai” nas mais diversas posições que ela pode me proporcionar. Terminado tudo. Ela pegou uma toalha e as chaves da minha casa. Se “vestiu” com a toalha e saiu por uma porta que tinha na garagem, jogando as chaves por uma pequena janela. Junto às chaves, seu nome e número de telefone.

E eu? Eu estava nu. Nu e jogado no chão, tomado pelo êxtase. Encontrei o que faltava para que eu pudesse ser um artista completo. Mas, naquele momento eu estava “Destroçado. Destruído. Em pedaços...” e todos os outros adjetivos possíveis.
Nesse momento já me acertei, botei minhas roupas e estou escrevendo sobre esse ocorrido. Não sei um final para essa crônica estardalhada, só sei entendi o que estou sentindo! Não sou um grande conhecedor do universo emocional, mas posso garantir que essa sensação se chama realização. O artista que encontra sua musa inspiradora, e mais do que encontra, interage com ela. Essa é a minha realização, afinal, uma musa não é nada com roupas!

Tenho que encontrá-la.  E Indubitavelmente deve ser imediatamente.

Sem mais delongas, me despeço das senhoras e senhores. Meu objetivo com estas palavras e devaneios literários foi concluído. Um final decente. Sei lá: “E então Charlie viveu a procura dela para sempre!”.

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