Capítulo 8
A citação hoje é: obrigade pelos comentários positivos no meu mural sobre o uso de neolinguagem, pra quem não notou eu estava falando sobre mim. Ainda tô um pouco confuse sobre isso, não vou mentir, mas espero o carinho de vocês (sério quero mto o carinho de vocês pq vcs sao muito legais e eu não quero que me deixem sozinhe kkkkk). Não vou falar sobre meu gênero ainda porque não me sinto confortável, o que posso falar é que pelo sistema APF eu uso (o/elu/-e). Qualquer dúvida pode falar.
AGORA BORA PRO CAP
2014.
Minha mãe já estava pronta para a festa Beneficente. Como ela iria se movimentar bastante nas barraquinhas, o seu vestido era rodado e solto, como uma dona de casa de comercial, mas de alguma forma aquilo não ficava feio nela. Andressa parecia uma modelo atemporal, tão alta e impactante, com os cabelos extremamente lisos e pretos que chega brilhavam.
Meu pai não nos acompanhava nessas festas para resolver seus... Trabalhos de pastor. Eu não sabia o que um pastor fazia quando não estava pregando, nem me importava também.
Eu estava tendo dificuldade para dobrar a manga da blusa social para cima, então tive que pedir ajuda à minha mãe. O que eu havia levado quase dez minutos tentando, ela conseguiu realizar em trinta segundos.
— Tu tá uma graça, meu amor. — Ela disse após dobrar a outra manga e conferir se meus botões estavam alinhados. — Mas por que não colocou aquela blusa vinho, parecida com essa? Ia ficar mais bonita pra noite.
— Ah, não, azul é mais de garoto. — falei com uma careta discreta enquanto conferia meu visual no espelho. O topete estava um pouco espetado, mas era proposital, e eu usava calça jeans preta e um tênis também totalmente preto.
— Cor não tem gênero, pode parar que eu não te ensinei isso. — Minha mãe chamou minha atenção e me puxou para ajeitar a gola desarrumada da minha camisa. — Às vezes te acho muito exagerado com algumas coisas.
— Pô, mãe, isso de novo não! — Reclamei e me afastei dela na mesma hora em que finalizou minha gola.
Minha mãe e eu tínhamos nossas desavenças. Ela não concordava com algumas imposições do meu pai e questionava certos comportamentos meus. Ela não tinha por que falar disso porque ela não estava no meu lugar para saber como era, então aquilo me incomodava.
— Só não quero te ver reproduzindo essas besteiras achando que isso vai te fazer ser homem! — Andressa colocou a mão na cintura, destacando sua silhueta. Abri a porta do guarda-roupa e peguei meu relógio para colocá-lo no pulso. Novamente, ela se aproximou para fazer isso para mim com as duas mãos.
— Eu já sou homem, mãe, tu sabe! — Reclamei com o pulso erguido para ela, enquanto o relógio era colocado.
— Eu sei, meu bem, mas você tem que controlar seu pensamento. Teu pai fala muita besteira, não pode ouvir tudo não. O que te faz homem? É a cor da sua blusa? Já parou pra pensar?
Minha mãe prendeu o relógio e olhou fixamente para mim. Fiquei um pouco envergonhado.
— Bah, mas se eu não sou mulher, eu sou homem, né?
Andressa piscou e respirou fundo. Eu sabia que era difícil para ela também.
— Vamo' logo, vou pegar as chaves. — Ela se afastou de mim antes de passar o polegar pelo meu rosto rapidamente. — E não esquece de pegar a travessa de doces que tá em cima da mesa.
Saí do quarto quando ela já estava no carro, com o porta-malas aberto enquanto colocava as garrafas de refrigerante que combinou de levar. Peguei os doces e coloquei cuidadosamente no banco de trás.
Eu estava um pouco ansioso por causa da promessa implícita da Fabi, que disse que eu veria a menina que gostava de mim na festa. Eu já estava imaginando os garotos me zoando que eu deveria ficar com ela e as garotas gritando. Eu não fazia ideia de como seria isso, estava com um pouco de medo, mas era besteira, pois garotos não podiam ser assim.
Meu pai iria gostar se eu ficasse com uma garota, talvez isso desse certo.
Entrei no banco do carona e minha mãe logo após, no lado do motorista. Ela deu a partida e coloquei o cinto de segurança, então seguimos rumo à escola.
— E aí, tá animado? — Minha mãe puxou assunto assim que deu partida no carro e saiu da vaga da rua.
— É, acho que sim. — Passei as mãos no tecido da calça, um pouco ansioso.
— O pessoal tá te tratando bem na escola, né?
— Ah, tá sim, tá de boa. Tu tem aquelas balinhas de menta ainda aqui? — Eu já estava pensando no meu provável primeiro beijo.
— Eu nem sei, olha aí. — Ela disse concentrada no volante enquanto eu vasculhava os espaços do carro. Quando abri o porta-luvas, contudo, fui surpreendido com uma coleção de encartes e papéis coloridos que caíram no meu colo e nos meus pés.
— Que que isso?! — Peguei as folhas que caíram no chão e deixei todas em cima das minhas pernas. Minha mãe olhou surpresa para mim, mas depois sua expressão se aliviou ao ver do que se tratava.
— São só os informativos daquele grupo das Mães & Diversidade, eu deixo no carro e vou lendo de vez em quando.
— O pai sabe que tu ainda tá indo lá? Ele não pode ver isso aqui não, mãe!
— Jason, pelo amor de Deus! Eu tenho um filho transgênero, eu preciso me informar dessas coisas pra saber como te ajudar!
— Tá, mas eu não sou igual os outros, eu sou, sabe, já sou assim! — Usei as mãos para indicar meu próprio corpo. — E o pai não queria que tu ficasse indo pro pessoal não descobrir!
— Dá pra parar de levar tudo o que o teu pai fala como verdade absoluta? Eu sou sua mãe! Eu também sei das coisas! — Andressa me olhou com fúria rapidamente, mas logo depois teve que voltar a olhar para a frente para fazer uma curva. — E eu tô muito preocupada contigo, tá reproduzindo uns discursos que não te fazem bem! Você quer causar os mesmos problemas que os outros garotos causam pra sua mãe também? Eu vou ter que me preocupar com um filho preconceituoso agora? O que vai fazer em seguida? Vai querer beijar um monte de garota? Vai arrumar confusão na escola? Vai usar drogas pra se enturmar com os garotos?
— Não. — falei com uma careta, incomodado com o assunto. Eu não queria estar levando um sermão minutos antes de entrar na festa da escola.
— Então é bom você mudar esse teu comportamento! Não criei um filho pra isso! — Ela disse um pouco nervosa, já estacionando o carro em uma rua perto do portão da escola.
Graças a Deus eu ia sair daquele carro.
Peguei os papéis no meu colo e os arrumei para colocar de volta no porta-luvas, mas minha mãe, assim que tirou a chave da ignição, estendeu a mão e tocou em um deles que estava acima dos demais.
— Quando tiver um tempinho, lê esse aqui. Pelo menos esse, e você vai entender o que eu tô falando.
O título da cartilha era "A transgeneridade e as construções sociais impostas aos gêneros binários." Eu não fazia ideia do que aquilo significava, mas eu sabia que não tinha a ver comigo.
E eu também tinha coisas mais interessantes com o que me preocupar, como o fato de que eu iria beijar uma garota naquela noite.
Isso sim era o mais importante.
2020.
Desativei temporariamente, mais uma vez, minhas redes sociais.
Eu entrava de tempos para me atualizar das coisas, mas desde que meu pai conseguiu ficar em liberdade eu recebia comentários desagradáveis de todos os cantos. Até meu número de celular teve que ser trocado.
Ricardo era quem organizava tudo para mim – mais como uma forma de favor por sermos amigos, do que por realmente ser o seu trabalho. Eu não entendia nada da lei e nem sabia o que fazer, mas ele sim. Conversávamos praticamente todos os dias e ele tentava me explicar o que estava fazendo, os artigos que estava se baseando para condenar Maximiliano e as precauções que eu precisava tomar durante o dia a dia. Eu não podia tocar no assunto em público, pois alguém poderia coletar alguma informação sobre mim. Ninguém era confiável. No meu perfil, pessoas que eu reconhecia serem da igreja do meu pai ou colegas de trabalho tentavam me ofender.
"Uma vergonha, fazendo o pai passar por tudo isso! Filhos devem respeitar os pais! Deus tenha misericórdia!"
"Honre teu pai e tua mãe para que se prolonguem os seus dias na Terra, que o Senhor, teu Deus, te dá." – essa era a clássica.
"Sem vergonha, sei que esse show todo foi porque Maximiliano é um homem correto que não aceita viadagem! Ninguém fala mas eu sei que foi por isso que tu incriminou teu pai, espalhou essas mentiras igual o Diabo faz! Mas Deus é justo!"
"Certeza que apanhou de algum namorado quando tava fazendo aquela sem vergonhisse e falou que o Max que fez."
"Que nojo! Um filho nunca devia ir contra um pai!"
E era por essas coisas que eu não suportava ficar uma hora na internet.
Eu já havia denunciado vários. Tirava capturas de tela e enviava para Ricardo, que disse que depois de tudo isso tomaria uma atitude a respeito, pois também era um crime. O fato de ser cometido na internet não minimizava sua gravidade.
Exclui alguns aplicativos e olhei as horas, pensando se Charlie demoraria a voltar. Eu queria saber o que tanto ele estava conversando com Samantha. Até torcia para que ele tivesse bebido fora para chegar em casa bêbado e eu conseguir arrancar alguma confissão.
"Tá doido, Jason, coitado do moleque."
Passei o dedo pelos recomendados do YouTube e curiosamente havia um vídeo do garoto. Ele já contava com mais de cem mil visualizações e nessas horas que eu me dava conta de que Charlie estava famoso, muito famoso.
O vídeo recomendado não era tão recente e vinha com o título "Como descobri que sou trans?". Ao invés de clicar na capa, fui para seu canal conferir os outros conteúdos.
Haviam algumas playlists com séries de vídeo específicas. Uma sobre o movimento pan, outra só sobre a identidade de gênero transmasculina. Havia uma sobre orientações sexuais diversas e outra chamada "Identidades não-binárias".
Era muito conteúdo. Eu me sentia meio burro. Eu nem sabia o que significava "não-binário" e Charlie teve conhecimento para produzir seis vídeos sobre isso.
Mas uma playlist me chamou a atenção, logo abaixo dessa.
"Orientações Românticas."
Charlie disse que era panromântico e demissexual. Como ele podia ser essas duas coisas? Não fazia sentido.
O primeiro vídeo possuía sete minutos e havia o seu rosto de forma caricata, confuso olhando para o desenho de uma bandeira que eu não conhecia: uma faixa verde, outra de um verde mais claro, depois branca, cinza e por fim uma faixa preta. O título estava em letras garrafais: "O que é a arromanticidade?"
Eu não tinha nada para fazer e queria esperar por Charlie acordado. Estava preocupado com ele.
"Vai ser só para passar o tempo e aprender alguma coisa diferente."
Então cliquei no vídeo.
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