Capítulo 50

"Na verdade, eu não me conheço
É frustrante, estou sempre preocupado
Me responda
Me uma resposta, uma resposta clara por favor
Se você não pode então por favor pare de interferir." — District 9, Stray Kids.

2020.

O clima era o mais estranho possível.

Paloma não fazia ideia do que estava acontecendo, por isso alternava o olhar entre a guria e eu, procurando por uma explicação.

– Ei. — Samantha forçou uma tosse e estendeu uma garrafa de champanhe, seus olhos eram impassíveis para mim. — Só passei pra te desejar Feliz Ano Novo.

— Acho que já te vi na Marie Curie! — Paloma se empolgou de repente. — Tu é a fotógrafa que sempre faz a cobertura dos eventos internos!

— Isso! — Ela voltou a atenção à mulher e deu um sorriso mais animado. — E tu é a coordenadora de Psicologia, né? Só não sei teu nome!

— Paloma, prazer, querida! — Ela estendeu a mão animada para Samantha. — E o seu?

— Samantha, ou só Sam. Aqui, eu soube que vocês gostam de beber então trouxe um presente.

— Como sabia disso? — Paloma pegou a garrafa com surpresa, eu apenas encarava a cena estranha à minha frente, sem saber como reagir.

— Charlie me contou, ele que me deu o endereço.

A menção ao guri fez Paloma vacilar no sorriso. Eu continuava sério, com a mão à frente da boca para não mostrar a linha fina que meus lábios se formaram, tamanha a tensão.

— Ah, manda um beijo pra ele. — A mulher se esforçou para voltar ao estado animado. — Já jantou? Tá passando o Réveillon com a família?

— Paloma... — Eu queria interferir no assunto para não gerar um momento estranho, mas Samantha foi mais rápida.

— Não, não, eu moro sozinha no momento. — A guria mostrava estar a mais neutra possível. Sua fala soava formal e me lembrei de quando Charlie estava nervoso e falava da mesma forma, me perguntei quem copiou o costume de quem.

— Então senta com a gente! Vou pegar um prato e aí tu bebe também, nunca vi essa marca de champanhe!

Paloma foi para a cozinha com a garrafa nas mãos e Samantha me deu um sorriso simples, sem mostrar os dentes.

Eu não conseguia me sentir tranquilo com aquilo.

A guria usava uma jardineira e um cropped branco por baixo, os cabelos presos em varias tranças com detalhes brancos nas presilhas.

— Pra quem ia passar sozinha, tu se arrumou bem pro Ano Novo. – soltei de repente, a mão ainda à frente da boca. Eu usava uma blusa social preta porque queria ir contra a tradição, enquanto Paloma vestiu um tomara-que-caia de lantejoulas sem necessidade, pois não íamos sair.

— Charlie me avisou que a primeira coisa que tu diria pra mim seria alguma gracinha. — Ela disse séria, mas eu senti que ela queria sorrir. — Tu sempre foi tão previsível.

— Sempre? A gente nunca conversou.

— Não preciso conversar pra saber como que tu é. — Ela sorriu de verdade dessa vez, e mesmo suas palavras podendo soar ofensivas ela falava de forma tranquila comigo. — Charlie fala bastante de ti.

— Por que tu tá aqui? — Quando vi, falei automaticamente. Na mesma hora, Paloma estava chegando com um prato e uma taça para Samantha e me lançou um olhar desacreditado.

— Ele disse que tu iria te afastar das coisas e me pediu pra te fazer companhia hoje.

— Graças a Deus. — Paloma murmurou após encher a taça de Samantha com espumante e a guria olhou para ela. — Jason tá insuportável esses dias.

— Paloma! — Resmunguei e comecei a comer, era melhor ocupar minha boca para não soltar um xingamento.

— Muito bom ter tua companhia aqui, Sam, pode ignorar as coisas que esse lazarento fala. Tu gosta de lombo? Me dá teu prato que eu corto um pedaço pra ti!

E assim o jantar mais estranho do mundo seguiu.

Samantha não falou em momento algum sobre seus pais para Paloma, e eu agradeci por isso, pois não saberia lidar com aquele tema. Eu podia notar que a guria estava se esforçando para ser simpática, mesmo sendo óbvio o semblante cansado — o rosto de maquiagem leve não era suficiente para ocultar isso.

As duas mulheres conversaram sobre a faculdade e eventos que Paloma participou enquanto Samantha fotografou, enquanto eu apenas comia em silêncio. Eu queria mandar mensagem para Charlie e perguntar aonde ele estava com a cabeça de passar meu endereço para a guria e dizer para ela vir até mim, mas eu não podia aparecer do nada com aqueles questionamentos quando eu nem havia procurado saber dele.

E foi assim que uma hora e meia se passou e faltava o mesmo intervalo de tempo para a virada do ano, e eu me mantive em silêncio durante o jantar.

— Jason, tu pode tirar a mesa? Já que eu fiz a comida! — Paloma estendeu a mão e apertou minha bochecha, afastei meu rosto emburrado. Ela já não estava mais 100% sóbria depois do vinho, do champanhe e de algumas garrafas de cerveja que abrimos e até Samantha bebeu um pouco, entretida com o papo de Paloma. — Eu já tô ficando cansada, não sei se vou esperar dar meia-noite! Vou pro meu quarto.

— Aquele condomínio de luxo vai fazer uma queima de fogos particular que vai dar pra ver do Parque da Cidade, estava pensando em ir. — Samantha comentou e se levantou para me ajudar a levar tudo para a cozinha, Paloma já havia nos deixado para trás e foi para seu quarto com a taça de vinho ainda cheia.

— Tu dirige?

— Só moto. — A informação foi novidade pra mim. — Deixei ao lado da tua lá fora.

— Nunca imaginei que tu dirigia moto. — Liguei a torneira e peguei a esponja para começar a lavar a louça.

— Tu é muito estereotipade. — Samantha passou por mim e deu um tapinha no meu ombro. Franzi as sobrancelhas ao ouvir a linguagem neutra, então ela também sabia.

— Talvez. — Refleti um pouco e concordei com meus pensamentos.

— Deixa que eu lavo a louça, vai guardando o que sobrou da comida.

— Tu é visita, visita não lava a louça.

— Charlie não era visita e eu tô aqui no lugar dele. — O olhar da guria foi incisivo para mim e bufei. Lavei as mãos sujas de sabão e passei a esponja para ela, para então me afastar e começar a colocar a sobra do jantar em potes vazios. — Tu não vai falar nada sobre ele?

— Não. — respondi rápido e direto. Samantha apenas balançou a cabeça e se concentrou na louça.

O lado bom de duas pessoas trabalhando juntas era a rapidez para limpar tudo, então em menos de dez minutos já havíamos finalizado. Paloma não deu as caras para fora do quarto e imaginei que a mulher já estivesse dormindo.

— Tu não bebeu muito, né? — Samantha perguntou depois de secar as mãos com o pano de prato.

— Não, tu e Paloma beberam bem mais.

— Então tu vai digirindo, quero conhecer o seu Fusca azul. — Ela deu de ombros e ajeitou as tranças brancas.

Até sobre isso ela sabia e me irritei de repente, Charlie havia contado tudo para ela descaradamente, como se ela fosse alguma confidente especial dele.

Eu queria xingar a guria, mas ela estava sendo legal comigo e eu sairia como grosso.

— Olha, tu não precisa me fazer companhia por causa do Charlie, tu já viu que eu tô aqui, tô bem, e tá tudo certo.

Pensei que minha fala fosse deixar Samantha irritada ou que ela iria me dar uma resposta atravessada, mas ela apenas me deu um sorriso leve outra vez, foi até a mesa e viu o meu chaveiro.

Sem me pedir, a guria pegou o pequeno Tata que ela mesma havia me dado e estendeu para mim.

— Charlie também me avisou que tu me diria isso. E aí, bora?

Faltava uma hora para o começo de 2021.

Poucos carros estavam circulando e um casal estendeu uma toalha no chão do gramado do parque, provavelmente esperando pela tal queima de fogos do condomínio. Uma festa acontecia na cobertura e eu sabia que isso era proibido, mas era Ano Novo em uma cidade pequena, ninguém iria aparecer ali para multar os moradores.

O Parque da Cidade estava iluminado por diversos piscas-piscas dourados de Natal, eu imaginava aquele lugar repleto de pessoas em outro contexto, tirando fotos e comendo em barraquinhas de comida que também não estavam presentes naquela hora. A pista de skate no meio do parque estaria ocupada por adolescentes ao invés de totalmente vazia, exceto por um morador de rua que dormia enrolado por um grande cobertor.

Samantha saiu do carro e tirou o celular do bolso da frente da jardineira. Deixei a porta aberta e caminhei até ela, me encostando no capô do Fusca.

Em poucos segundos, uma música familiar começou a tocar.

— Fly me to the moooon! — Samantha cantarolou a canção de Frank Sinatra e deixou o celular em cima do capô. — Dança comigo!

— Tá me zoando, né? — Comecei a rir e cruzei os braços, mas ela os segurou e me fez desencostar do carro. Revirei os olhos quando a guria me obrigou a colocar a mão em sua cintura e a outra segurando a sua, como em um baile antigo.

— Charlie me contou. — Ela sorriu de novo ao falar do guri. — Fã de Kim Taehyung.

— Vocês conversam bastante ultimamente, né? — Ergui as sobrancelhas, mas cedi à dança enquanto Sinatra cantava.

— Sim, voltamos a ser amigos.

— Amigos que tiveram uma história juntos.

— E daí?

— Samantha, ele te escreveu em um livro. — falei baixo, como se fosse um segredo. Estávamos em uma distância considerável para conversar em voz baixa e ouvir a música, mas não íntima demais.

— E tu leu a história?

— Não, por quê?

— Christian e Charlotte não terminam juntos. — Ela disse o nome dos personagens e me toquei de que nem o nome fantasia de Samantha na história eu sabia. — E ele tá fazendo a continuação com um cara chamado Zack.

— E tu quer me dizer que esse cara sou eu? — Semicerrei os olhos para a guria, que sorriu em resposta.

— O nome do livro é Feitos de Cinzas e Estrelas.

A fala me fez parar de dançar de repente. Ela me observava curiosa, me vendo tomar uma expressão de surpresa ao descobrir que Charlie realmente estava escrevendo sobre mim.

— E ainda tem outro livro, com uma pegada bem... Vintage. — Ela disse a palavra com uma expressão engraçada. A música havia acabado e agora quem cantava era Louis Armstrong. — Sobre Las Vegas, Guerra Fria e um cara elegante que parece o seu cantor favorito.

— Tu não devia me contar essas coisas. — Soltei um riso nervoso, Samantha girou os pés para continuar a dança e me obrigar a acompanhá-la.

— Ele também fez um livro de poesia sobre formas de amor não-romântico. Eu fico curiosa pensando em tudo o que vocês viveram pra ele ter se inspirado em fazer tantos livros.

— Charlie te contou que eu sou arromântico. — Não foi uma pergunta, eu já imaginava.

— E ele falou que foi por isso que tu foi embora. — A música de Armonstrong foi curta e uma nova melodia apareceu, o que me pegou de surpresa. Samantha, por outro lado, sorriu na mesma hora ao reconhecer a música de sua playlist e se soltou do meu aperto.

— Deixe-me ir, preciso andar! — Ela cantou e se afastou para rodopiar com os pés no chão, comecei a rir e cruzei os braços ao ver a guria sambar sozinha ao som da canção brasileira. — Vou por aí a procurar, sorrir pra não chorar!

Eu conhecia pouco de MPB, apenas Chico Buarque e Caetano Veloso. Ver o gosto musical da guria me deixou impressionade.

— Se alguém for me perguntar, diga que eu só vou voltar depois que me encontrar! — Ela cantou mais alto e riu, seu olhar se encontrou com o meu e seus pés continuavam no ritmo da música, os braços se movimentavam de forma mais contida.

— Tu tá realmente bem?

— Não! Mas se eu continuar pensando na desgraça das coisas, vou ficar bem nunca. — Ela parou de dançar e passou por mim para chegar ao carro.

Samantha pegou o celular e trocou de música, de volta para Frank Sinatra. Em seguida, se inclinou até deitar no capô do carro e decidi fazer o mesmo.

Tal foi minha surpresa ao deitar ao lado da guria e ver que algumas lágrimas começaram a descer enquanto ela cantava muda a letra de "My Way.

"Eu faço o meu caminho", era o que Sinatra falava.

— Me dá vontade de morrer... Todos os dias. — Ela disse com a voz rouca e respirei fundo, sem conseguir deixar de olhar seu rosto, que encarava o céu escuro. — Eu queria explicar, mas não consigo. Nem pro Charlie eu consegui.

— Não precisa. — Virei o rosto e observei o céu junto com ela. — Eu não sei como tu deve tá se sentindo, mas essa parte de não poder explicar como se sente eu entendo bem... E eu sinto muito.

— Eu sei que tu sente... — Ela levou a mão até seu rosto para enxugar as lágrimas. — Deve ser por isso que aceitei vir quando Charlie me pediu. Tu me trata como se nada tivesse acontecido.

— É que eu não sei como agir, a gente não se conhece direito. — Apertei meus braços ao redor do meu próprio corpo.

— E é por isso que é bom, não aguento mais as pessoas que me conhecem. Me olham como se eu fosse quebrar, mas tu só me olha como a ex do guri que tu gosta.

— Aquele miserável. — Não contive a risada triste ao me lembrar de Charlie outra vez. — Ele te explicou o título do livro?

— Sinceramente, não lembro. — O riso de Samantha saiu fraco pelo choro recente.

— Ele disse que quando o céu tá nublado ele não consegue ver todas as estrelas, e que eu sou assim... Tem sempre algo oculto em mim.

— Achei que seria algo mais bonito e romântico, isso é um pouco triste.

— É, verdade.

E ficamos ali pelo o que pareceu uma eternidade, sem dizer mais nada.

Samantha chorou em silêncio e eu fui sua companhia, da forma mais estranha possível. Se alguém me falasse que eu viveria aquilo, eu não acreditaria.

Pela primeira vez, não tive uma sensação estranha por estar perto da garota. Eu não precisava vê-la como uma ameaça, alguém que me tomaria o Charlie. Afinal, eu mesmo fiz esse trabalho de perdê-lo.

Droga.

— Eu queria te agradecer por ter me ajudado no velório. — Samantha cortou o silêncio de repente. — Outro motivo de ter vindo foi porque eu queria saber como posso retribuir isso.

— Não precisa.

— Mas eu quero. — Ela foi incisiva. — Eu sei que tu tá com problema na Justiça, não entendo dessas coisas mas se por acaso tiver precisando de alguma ajuda, queria só te dizer que eu tô contigo também.

Suas palavras me aliviaram em parte — cada apoio seria bem-vindo, principalmente depois que eu jogasse minha história na internet, a qual eu precisava me organizar para contar em breve. Eu nem sabia se contaria mais com o apoio de Charlie, mas eu precisava fazer aquilo mesmo assim.

O que me levou ao meu favor.

— Já que é assim... Tu tem câmera profissional, né?

— Lógico, trabalho com isso. Por quê?

— Sei como tu pode me retribuir, então.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top