Capítulo 32
"Porque quando algo dói tanto eu sei que é real." — You, Marshmello.
2017.
Gael empinou o quadril para mim, ainda vestido. Segurei seus cachos vermelhos e virei seu rosto para vê-lo, suas pintas estavam ocultas pela maquiagem que gostava de usar.
Gael era diferente dos outros garotos da escola, ele não se importava de parecer feminino demais. Já havia recebido uma ocorrência por usar saia e batom na escola, o que causou uma tremenda confusão. Eu gostava de como ele era ousado e livre, por isso não tive vergonha de me aproximar dele.
O guri estava de quatro na cama do meu quarto e eu passava minha outra mão debaixo de sua saia plissada xadrez, e soltei um gemido baixo ao tocar em sua cueca.
— Jason... — Ele gemeu meu nome e se contorceu, com tesão.
— Quer logo que eu te fodo, bebê?
— Quero. — Ele falou suplicante. — Me dá um beijo?
Sorri e me aproximei de seu rosto, ficando um pouco de lado na cama para beijá-lo de forma mais confortável. Sua boca era pequena e senti gosto de morango pelo brilho labial que ele gostava de usar. Nosso beijo era calmo, mas aproveitei para apertar um pouco seu pescoço pois Gael também havia me revelado em outro momento que gostava de jogos de dominação. Ele tinha dezessete anos e estava se descobrindo, mas conseguia ser mais safado do que eu.
Quando o beijo terminou, me aproximei de novo apenas para dar um selinho rápido em seus lábios. Ele abriu um sorriso pequeno e sua voz saiu obediente e excitada.
— Obrigade, senhor.
Na hora, a única coisa que pensei foi em como era uma graça ver Gael gostar de bancar o submisso me chamando de senhor.
E, na época, foi só isso o que eu notei.
2020.
Charlie brincava com meus dedos, distraído. Já estávamos de volta à minha cama — ou melhor, de Paloma —, depois de comer pela quarta ou quinta vez no dia e se beijar pela decima ou vigésima vez, talvez.
Ele olhava com atenção para meus dedos, as linhas das minhas mãos e até as unhas. De repente, aproximou da sua boca e beijou minha mão com carinho. Em seguida, se virou para mim.
— Esqueci de te dar o gabarito das respostas da sua aula de mais cedo.
— O carinho na mão tava bom... — Resmunguei e peguei a mão de Charlie, dessa vez levei até meu cabelo. — Fala enquanto faz carinho.
— Muito abusado. — Charlie riu e começou a fazer cafuné. — Vai prestar atenção no que vou falar?
— Sim, professor. — O guri revirou os olhos, mas esboçou um sorriso. — Primeiro quero saber o que é queerplatônico.
— É uma relação não-romântica, mais forte do que uma amizade, mas que não é um namoro por não se encaixar nesse padrão. As pessoas podem ser parceiras, gostar da companhia uma da outra, e não significa viveram algo romântico, mas continua sendo especial. Cada um tem a sua forma de viver isso.
— Tipo eu e ti? — Olhei para ele e recebi um sorriso tímido.
— É. — Charlie parecia mais animado pela minha pergunta e fiquei feliz. — Tipo a gente.
Passamos alguns segundos em silêncio, sem saber o que dizer sobre o assunto. Decidi melhorar isso esticando meu rosto para dar um selinho rápido nele, que ficou surpreso com o gesto aleatório.
— Para de babar enquanto me olha e me dá a explicação das outras coisas.
— Ridículo! — Ele tirou a mão do meu cabelo, perdi meu cafuné. — Mas tem razão... Então, tu te prende muito à ideia de dois gêneros. Gay é um homem que gosta de homem, lésbica é uma mulher que gosta de mulher. Se isso fosse verdade, como se encaixariam as pessoas não-binárias?
— Não são pansexuais?
— Tem gente não-binárie que é pan, sim, mas tem gente que é gay, bi, lésbica, ace, e por aí vai.
— Não-binárie. — repeti o termo com o "e" destacado no final.
— Não conhece linguagem neutra? Para mim foi fácil entender, porque o inglês já usa. Isso é um pouco recente no Brasil.
— Eu conheço muito pouco... — falei pensativo. — Mas... Como uma pessoa não-binária pode ser lésbica?
— Ela pode ter um alinhamento feminino. Essa palavra soa estranho pra ti? — Charlie se virou para ficar de barriga para baixo, com os cotovelos o apoiando.
— Um pouco. É tipo uma pessoa não-binária que gosta de coisas femininas?
— Eu não acho que seja legal falar assim... Porque coisas femininas são inventadas. Tudo é questão de cultura. Mas é por essa linha de pensamento, uma pessoa não-binária pode se identificar como lésbica porque ainda se sente ligade a essa orientação, por se sentir atraíde por pessoas alinhadas ao feminino. A mesma coisa com quem é gay.
— E quem é bi?
— Gosta de mais um gênero. Não exatamente dois.
— Mas só existem três gêneros, então? Homem, mulher e não-binário? — Fiquei surpreso em como estava interessado naquela conversa e comecei a olhar para Charlie mais atentamente, sem me mexer na cama. Ele inclinou a cabeça para apoiá-la no próprio ombro.
— Não-binário é um termo guarda-chuva que envolve vários gêneros. Um dia vou te explicar todos.
— Também não precisa disso. — Bufei. Charlie deu uma risadinha baixa. — Ser pan e bi é a mesma coisa?
— Sim, mas não. Tu é bi e eu sou pan. Faz sentido tu dizer que é pan e tentar me ver como bi?
— É, não...
— É uma questão de identificação. Na prática, ficamos com pessoas, mas tu não te identifica com a bandeira pan assim como não me identifico com a bandeira bi. São contextos históricos diferentes.
— Eu nem sei muito o contexto bi, eu só... Sentia que era. — Me lembrei do início da minha adolescência e das conversas que eu tinha com Camila. — Minha irmã gostava de me ensinar algumas coisas, ela também não sabia muito. Lembro quando ela disse que eu poderia ser bissexual e eu fiquei feliz na hora.
— Sério? — Charlie aproximou seu rosto até deitar em meu peito e peguei mais um travesseiro para erguer minha cabeça, queria continuar olhando para ele.
— É, eu me identifiquei na mesma hora. Eu gostava de meninas, mas também queria ficar com os meninos. Mas meus pais nunca falaram dessa possibilidade, quando contei que eu não era uma garota desde pequeno eles colocaram na cabeça que eu era um garoto e que eu devia ser hétero.
Minha fala saiu despreocupada, mas a tranquilidade passou quando Charlie ergueu a cabeça e me encarou, atônito.
— O que foi?
— Repete o que tu disse?
— Ahn? Que eu devia ser hétero?
– Não, antes.
— Que eu não era uma garota?
— Não, depois!
— Ah, pra porra, guri! Tô confuso! — Ergui minha mão reclamando e cruzei os braços. Charlie me observava concentrado e se sentou com as pernas cruzadas na cama. Fiz o mesmo sem que ele pedisse.
— Tu disse que teus pais colocaram na cabeça que tu era um garoto.
— O que que tem? — Pisquei meus olhos várias vezes, confuso. – Sim, eu falei pra eles quando eu tinha seis anos que eu não era uma garota.
— Seis anos... O texto. — Charlie se lembrou de algo repentino e saiu da cama, fiquei mais perdido ainda.
— Dá pra parar de suspense, ô porra?!
O guri me ignorou e foi até seu quarto, ouvi o som de sua mala sendo aberta ao longe, pois ele ainda não guardara suas coisas na cômoda de visitas. Alguns segundos se passaram até ele voltar com um pequeno caderno que parecia ser de anotações.
— O que tem aí? — Estiquei a cabeça para ver Charlie mexendo em vários papéis presos com elástico ao redor da contra-capa. Ele se sentou e começou a folhear a ponta de cada um, em busca de algo. — Dá pra me dizer?
— Achei! — Ele quase gritou e abriu o papel amassado. — Pode me achar maluco, mas... Eu guardei. Iria te devolver um dia, porque depois que tu foi pra delegacia com a Paloma eu esqueci de te entregar de volta.
— Tu tá falando do meu texto daquele concurso? — Fiquei em choque. Charlie guardou meu texto por dois anos?! — Eu achei que tivesse jogado fora!
— Eu nunca faria isso, ficou maluco? — Charlie ralhou irritado para mim e pegou o papel, seus olhos rodaram nervosos pelas palavras. — E isso o que tu me disse agora... Também disse aqui. Eu não acredito que nunca notei isso. — Sua última frase saiu baixa, ele falava mais para si mesmo do que pra mim.
— O que tu nunca notou? — Sussurrei, assustado de repente. Charlie estava concentrado.
— "Quando eu tinha seis anos, contei para os meus pais que eu não era uma garota." — Charlie citou meu próprio texto e depois me encarou. Seu olhar mudou para preocupação, com uma mistura de dúvida e surpresa, muita coisa junta.
— É, eu escrevi isso. Que que tem? — Franzi as sobrancelhas. Charlie balançou a cabeça, tentando afastar algo da mente.
— Jason, você... Você nunca disse que era um garoto. — Ele olhou para mim novamente. Seu sotaque se sobressaiu ao falar, nervoso. — Você só falava sobre não ser uma garota, desde sempre. Você... Mas você nunca disse que era... — Os seus olhos brilharam de repente, estavam lacrimejando. — E eu nunca percebi.
Eu não conseguia dizer nada. Abri a boca, mas qualquer coisa seria inútil de se falar, nem eu sabia como explicar aquilo tudo.
Subitamente, uma raiva surgiu dentro de mim.
— Já chega de ficar me analisando. — Minha voz saiu mais fechada e meu olhar se perdeu do de Charlie. — Sai do quarto.
— Para com isso, Jason, eu só quero te ajudar! — Ele esticou os braços para me tocar mas me afastei na cama.
— Mas eu não te pedi! — Instantaneamente abracei meu próprio corpo e só me dei conta de que estava chorando quando uma lágrima molhou minha boca e senti seu gosto salgado. — Porra, eu nunca te pedi!
Charlie ficou ainda mais desesperado ao me ver chorar, isso era raro. Eu não queria, mas foi automático. Me senti exposto sem nem saber o que realmente estava sendo exibido.
— Me perdoa. — Sua fala saiu culpada e ele me olhava com súplica, mas fechei os olhos para não vê-lo e abaixei a cabeça.
— Vai embora, depois a gente conversa.
— Eu não queria te deixar mal!
— Vai embora. — Cobri o rosto com as mãos para tentar esconder meu choro.
— Jason...
— VAI EMBORA, CARALHO! — Levantei a cabeça para gritar com ele, com o rosto mais quente do que nunca. Charlie engoliu em seco e se levantou devagar.
O guri foi até a porta e notei que ele também estava chorando, mas de forma silenciosa. Não cedi, não me arrependi de ter gritado e não iria voltar atrás, queria ficar sozinho de verdade.
— Me desculpa, mesmo. — Ele disse com agonia e fechou a porta do quarto. Ouvi seus passos e o barulho de outra porta batendo.
Minha primeira reação foi socar o colchão de tanta raiva. Eu não estava aguentando mais isso, a cada conversa Charlie me arrancava uma lembrança diferente que eu trabalhava tanto para esquecer. Ele não tinha o direito de fazer isso comigo.
Mas ao invés de me sentir aliviado com ele fora do quarto, meu coração se apertou ainda mais. Charlie era quem me ajudava a me libertar de todas as merdas que eu acreditava no passado e eu caminhava a passos de tartaruga com ele, pois era um covarde do caralho para admitir meus problemas.
O arrependimento de ter gritado chegou mais rápido do que eu imaginei. Charlie estava se esforçando para evoluir comigo, e eu andava lento demais...
Voltei um milhão de casas. Me senti fechado outra vez. Queria chamá-lo de volta, mas outra casca invisível se formou ao redor de mim.
Isso doía demais e eu não sabia como fazer parar.
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