Capítulo 26

"Eu tenho a coisa certa se você está tão tenso."

2006.

Cheguei da escola correndo em busca da minha mãe. Ouvi barulho na cozinha e fui atrás dela, ainda com a mochila nas costas, e nas mãos eu segurava meu tufo de cabelo.

— MÃE! — Ela se virou para mim assustada e largou o que fazia na pia para correr até mim.

— O que foi, Jade?! O que é isso na sua mão? Isso é cabelo?

— Foram as meninas! — Comecei a chorar e apertei meu cabelo perto do rosto, minha mãe me abraçou agachada.

— Mas por que elas fizeram isso, meu amor? Pode me contar?

— Elas... — funguei e tentei parar de tremer. — Falaram que eu era Maria-macho de novo. Os meninos me zoaram! — Chorei ainda mais ao lembrar dos garotos da sala rindo de mim, com aquele pedaço de cabelo faltando.

— Meu filho, sabe que você não é isso de verdade, as crianças não entendem e...

— Eu não quero saber! — Fiquei tão nervoso que gritei e tentei me afastar da minha mãe. Ela olhou em choque para mim. — Não quero saber deles e daquela escola, eu cansei!

Abracei meu cabelo cortado e corri para meu quarto, minha mãe não foi atrás de mim. Fechei a porta e passei a chave para ficar sozinho, e só então tirei minha mochila das costas e corri até a cama.

Eu amava meu cabelo grande, ele era todo liso e bem preto, eu gostava de fazer penteados nele mas papai vivia reclamando que eu não teria cara de garoto se deixasse meu cabelo assim, igual o da minha mãe. Eu precisava raspar minha cabeça ou ter um corte bem baixinho para as pessoas acreditarem em mim, era o que ele dizia, mas eu não precisava de ninguém fazendo isso, eu só queria que me deixassem em paz. E aquilo não iria me fazer cortar o cabelo igual papai queria, eu só iria ficar com ele na altura do ombro pra ficar tudo retinho de novo, porque ele era muito bonito e eu me sentia bem assim, mesmo ele falando que eu parecia uma menina, e que eu já tinha o corpo de uma e não deveria deixar o cabelo igual também.

Eu não entendia por que tentavam me falar que eu era uma garota. Eu não me achava nada parecido com as outras alunas, elas tinham alguma coisa que não existia em mim... Só que também era a mesma coisa com os garotos, também não me sentia parecido com eles. Eu nem sabia se queria ser parecido também, eu só queria ser algo diferente de garota para pararem de me perturbar com isso, e eu falei isso pra mamãe e papai!

"Eu não sou uma garota."

Eu posso não saber de muita coisa, eu sei disso, mas uma garota eu já sabia que não era. E aí eu lembro da minha mãe me abraçando e dizendo "tudo bem, meu amor, eu te amo sendo um garoto também." Mas eu também não disse que eu era um garoto!

Abracei meu tufo de cabelo, decidido a passar um elástico em volta e guardá-lo em algum lugar. Eu estava tão confuso, não entendia por que exigiam que eu fizesse tantas coisas para ser um garoto e outras mais para não ser visto como garota.

E se eu não quisesse ser nada disso?! Aí eles fariam o quê?

Tive uma vontade absurda de ir até meus pais e gritar com eles, dizer que já estava cansado de tentar parecer um garoto, assim como também não aguentava mais ser tratado como garota fora de casa. Tudo aquilo doía tanto, eu só queria poder ser eu mesmo. Há uns dias, ouvi minha mãe gritando com meu pai de que as coisas que ele me falava estavam me matando por dentro.

Eu não sabia mais quem eu era, não tinha nem mais certeza se eu queria mesmo ser um garoto como meus pais queriam. Porque, poxa, se eu precisava passar por tudo aquilo para me aceitarem como um, então eu desistiria disso.

Eu não podia ser outra coisa além de menino ou menina? Isso era tão cansativo...

2020.

Era o segundo mês de quarentena, mas já parecia uma eternidade.

Charlie tinha seus surtos de ansiedade momentâneos e eu podia notar que em alguns momentos ele parecia perdido, então coçava o nariz e eu me lembrava de que o maluco havia trago pó na viagem, e como estava sem ele precisava aprender a lidar com isso.

Eu tentava não fumar, o que era um pouco difícil. Mesmo sendo cigarro eletrônico, a ideia de usá-lo era diminuir a frequência do fumo e eu ainda não melhorara nisso. Basicamente haviam dois caras lutando contra a abstinência dentro de uma casa, em quarentena.

Claro que isso daria merda em alguma hora, pois os sentimentos estavam à flor da pele. Por isso, num momento em que eu estava irritado e xingando o coador por ter derramado pó de café para fora, no minuto seguinte havia Charlie querendo descontar a tensão que estava sentindo passando aquela bendita mão na minha bunda e transformando minha raiva em tesão.

— Tu tá irritado de novo? — Ele falou perto de mim ao ver o ocorrido com o café. — É a terceira vez essa semana, acho que precisa relaxar.

— Tu é engraçado, guri. — Ri de nervoso e fechei a garrafa térmica após terminar de passar o café. Lavei minhas mãos e aproveitei que estavam molhadas para passar no rosto.

— Tentando apagar teu fogo, é? Vira pra mim. — Charlie se afastou e me virei, fiquei vergonhosamente tonto ao ver seus olhos me encarando daquele jeito.

Sem dizer nada, ele se inclinou para o balcão abaixo da pia ao meu lado, e de lá tirou o rolo de papel toalha. Calmamente destacou uma folha e se aproximou de mim.

— Tu não devia jogar água no rosto assim nesse frio, fecha os olhos. — pediu e o fiz, em alguns segundos ele passou o papel pela minha testa e bochechas.

E eu podia estar ficado pirado da minha cabeça por culpa da quarentena, mas eu tinha certeza de que Charlie tentava me provocar a qualquer custo.

Ele só falava olhando para minha boca. Não conseguia chegar perto de mim sem encostar em alguma parte do meu corpo. Quando eu mandava alguma indireta, ele rebatia com outra pior, e quase todas com a mesma insinuação: "uma hora eu vou te foder."

Eu devia estar mesmo pirado da cabeça.

No fundo, eu sabia por que nós dois estávamos assim: ficar dentro de casa o dia inteiro sem mais nada para fazer era enlouquecedor. Nós maratonamos toda a franquia da Marvel, todas as temporadas de Rupaul's Drag Race — Charlie implorou para isso — e até os filmes antigos da Barbie.

Então as opções de lazer estavam acabando e o bastardo criou um novo hobby: me provocar vinte e quatro horas por dia.

Mas uma hora eu iria dar o troco, ah, se eu ia.

Quando Charlie terminou de me secar, amassou o papel e o deixou em cima da pia para deixar as mãos livres, que rodearam meu pescoço e me fez inclinar o corpo até beijá-lo; minhas pernas estavam abertas e ele se colocou no meio delas, em uma posição que era provocante até demais. Ele não estava de packer, o que agradeci mentalmente, porque se eu sentisse alguma coisa ali não seria responsável pelos meus atos seguintes.

Muita coisa se passava em minha cabeça desde que eu havia percebido que Charlie também usava packer, mas eu ainda não tinha coragem de fazer minhas perguntas, estava esperando o momento certo.

— Te beijar é bom. — Ele disse baixo depois de afastar sua boca da minha. — Mas eu ainda acho estranho fazer isso.

— Imagina se não achasse, ia me beijar muito mais. — falei sorrindo e Charlie revirou os olhos. Suas mãos continuavam ao redor de mim.

— É que só é estranho, porque não imagino a gente sendo... Casal.

— E desde quando a gente precisa ser? — Ergui as sobrancelhas e Charlie piscou várias vezes, então notei como minha fala poderia ser ruim dependendo da interpretação. — Quer dizer, não é isso...

— Relaxa. — Ele me deu outro sorriso pequeno. — Eu sei que tu é arromântico.

— Eu não sou isso, Charlie! — Reclamei mais alto do que o normal e o peguei pelos pulsos para afastá-lo. O guri começou a me encarar confuso e ficou longe de mim.

— Por que tu se dói tanto quando eu falo isso?

— Não fico me doendo!

— Fica, sim!

— Foda-se também, eu hein! — Me virei para o lado e andei para fora da cozinha.

— Por que tu é assim?! — Ele gritou para que eu o ouvisse, mas não respondi e andei com raiva até o quarto.

Eu não tinha motivo nenhum para estar com raiva, mas estava e pronto. Não suportava Charlie falando sobre eu ser... Aquilo.

Me deitei na cama e fechei os olhos para tentar dormir, mesmo sendo seis horas da tarde. Nem era necessário pensar no tempo durante a quarentena. Infelizmente eu não estava com sono e fiquei apenas virando de um lado para o outro, sem conseguir acalmar minha mente. Eu odiava quando Charlie me deixava desse jeito.

De repente, senti uma dor incômoda abaixo da barriga. Pareceu apenas uma fisgada, então só ignorei e continuei deitado, mas depois de alguns minutos ela começou a aumentar. Fiz uma careta de dor e juntei as pernas rente ao corpo na tentativa de pressionar a região e diminuir a dor.

Não adiantou. Estava aumentando e eu queria ignorar o quanto pudesse, vai que era só dor de barriga, eu iria passar vergonha à toa chamando por ajuda. Já faziam varias horas que eu não ia ao banheiro e talvez fosse isso, algum problema de constipação por algo que comi no dia.

Mas a dor continuou ali, e não parecia vir do intestino, era de outro lugar que eu não reconhecia.

— Charlie!!! — Gritei com ainda mais dor e agarrei o travesseiro. Em alguns segundos, a porta se abriu.

— Sério que tu quer conversar depois... Jason? — Ele começou a reclamar, mas parou quando viu que eu estava encolhido no meio da cama. — O que você tem?

— Tô sentindo muita dor no corpo, queria aquele remédio da Paloma. — falei com um gemido de dor logo em seguida, mas ao invés de ir direto buscar a maleta o guri foi até mim e tentou me virar para ficar de barriga para cima.

— Tenta ficar nessa posição.

— Tá doido! — Me soltei dele e voltei a abraçar minhas pernas. — Me deixa quieto, vai, só te pedi o remédio.

— Só que não sei que tipo de remédio tu precisa! Vira pra mim! — Ele mandou e eu não tive outra escolha a não ser obedecer igual o bom idiota que sou.

Apertei meus olhos de dor enquanto sentia Charlie apalpando minha barriga. Quando pressionou embaixo do umbigo, minha careta aumentou.

— É aqui, então. Ah, Jason, relaxa! É só cólica! Achei que seus hormônios bloqueavam...

Hormônios. Cólica.

MEUS HORMÔNIOS!

O choque foi tão grande que ignorei a dor completamente para me erguer e encarar Charlie, assustado.

— Meus hormônios... — Minha voz foi sumindo à medida que eu me dava conta da merda que havia feito. — A receita... Não tá aqui.

Me segurei no lençol com força a ponto dos meus dedos perderem a sensibilidade, pois eu sabia que estava à beira do colapso. Minha respiração também começou a diminuir e fiquei ofegante rápido demais, precisava me acalmar e pensar em como pegar minha receita.

— Tu não tomou hormônio desde que eu cheguei, você esqueceu de comprar? — Charlie perguntou, mas eu já estava com a cabeça longe dali.

Eu nunca havia passado um mês sequer sem tomar testosterona, desde que eu completara dezoito. Meu corpo não podia ficar sem ela, de jeito nenhum. Não podia, não podia, não podia.

— A receita... — Me lembrei de que o papel ficou na casa do meu pai. Eu precisava daquilo, urgentemente.

A dor pareceu ficar pior quando meu corpo descobriu o motivo. Abracei minhas pernas sentado na cama e não consegui dizer mais nada, muito menos olhar para Charlie.

Meu corpo estava gritando por dentro, implorando para manter a rotina hormonal a que eu sempre fui tão fiel. Por isso meu humor estava insuportável.

Eu queria achar uma solução para esse novo problema, mas não conseguia pensar em nada. Meu cérebro queria entrar em curto circuito.

— Jason? — Charlie se sentou do meu lado e passou o braço ao redor do meu corpo. — Tem como resolver isso?

Não respondi, continuei encarando o vazio à minha frente, a parede branca do quarto.

— A receita... — Comecei a projetar a casa do meu pai na mente, até sabia aonde aquela merda estava guardada, na gaveta da minha escrivaninha. Eu fui burro ao extremo por ter deixado aquilo para trás.

— Ei, fica tranquilo, tá? Deita aqui, vou cuidar da tua cólica, tu não deve sentir isso tem uns anos já.

Eu ouvia Charlie, mas não compreendia e não conseguia responder. Por que ele estava tratando aquilo como algo tão natural? Eu não podia sentir cólica!

Alguma coisa estava fora do lugar dentro de mim. Quando pensei mais sobre isso, duas lágrimas quentes escorreram em cada lado do rosto e cravei as unhas na minha pele, queria sentir dor física para tentar abafar o zumbido que se fez na minha cabeça e a dor interna.

— Jason... — Charlie me chamou com tristeza ao ver meu estado e praticamente me forçou a deitar na cama, mas continuei encolhido e com o olhar distante. — Eu já volto, tá? Tudo bem?

Eu queria responder, mas não conseguia. Havia um nó na garganta.

Eu não sabia viver sem tomar hormônios, eu tinha de dar um jeito de ter minha receita e continuar usando. Eu precisava consertar isso.

Os mais espertos estão captando os detalhes pra entender o quão deturpada ficou a cabeça do Jason ao longo dos anos, haja quarentena com o Charlie pra tratar isso

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