Capítulo 21
"Se você der uma olhada dentro de mim e continuar indo mais fundo, você encontrará novos desafios dentro." — Matryoshka, 3RACHA of Stray Kids
2020.
O frio não impediu que fôssemos para o lado de fora e Charlie me pediu para esperar alguns minutos enquanto ele pegava algo que disse ter encontrado há alguns dias escondido na dispensa de Paloma.
Esfreguei uma mão contra a outra e gritei da varanda para que ele me emprestasse um par de luvas. Coloquei o capuz do meu casaco e esperei o guri que, para minha surpresa, voltou com as meias debaixo de um braço, dois copos de shots em uma mão e uma garrafa de conhaque na outra.
— Não acredito que tem isso aqui! — Exclamei encantado ao ver a garrafa dourada de líquido marrom sendo posta na mesa. Charlie estendeu as luvas pretas de algodão e agradeci por poder esquentar as mãos.
— Nesse frio, era para ser obrigatório todo gaúcho ter uma em casa. — Charlie abriu a garrafa e despejou calmamente o conteúdo nos dois copos pequenos. — É a melhor coisa que tem pra se aquecer.
"Tem algo que aquece muito mais, Charlie..."
Dei um tapa na mente suja do meu inconsciente. Eu não faria essa piada.
— Bom, ahn... Imagino que também vai beber pra ser mais fácil me contar sobre ela, né?
— Bah, tu é esperto. — Eu me divertia toda vez que ouvia Charlie falando "bah".
Brindamos e tomei de uma vez o líquido que desceu queimando em minha garganta, com um leve tom mentolado ao fundo. Conhaque era uma das melhores bebidas do mundo, mas era muito mais caro então eu raramente tomava.
"Ainda bem que Paloma não tá aqui pra ver a gente tomando a garrafa dela."
— Como se sente? — Charlie perguntou depois de colocar seu copo na mesa.
— Quente. Se bem que isso, eu já sou. — Sorri e o guri revirou os olhos, com as mãos postas dentro do casaco.
— Tu é um chato.
— E tu vai me contar tua história. — Não foi uma pergunta, quis lembrá-lo disso. Eu estava curioso para saber sobre aquela parte da sua vida.
Charlie tirou as mãos do bolso para encher novamente os copos com conhaque e decidiu falar.
— As coisas começaram a ficar estranhas quando publiquei meu livro. — Ele fechou a garrafa e respirou fundo. — Eu não sei ser famoso, Jason.
— Eu percebi isso.
— Pois é. — Ele deu um sorriso triste. — E a pior parte de ser um trabalho feito online, com divulgação online e literalmente tudo vindo do meu celular, era fácil perder a noção do tempo e ficar preso naquilo, respondendo pessoas, fazendo publicações, estudando, pesquisando, escrevendo ainda mais, era assim o tempo inteiro quando eu estava fora do trabalho.
— E tu parou de dar atenção pra ela.
— É, basicamente. — Ele parou de falar para tomar outro gole. Aproveitei e enchi meu copo novamente. — Outra coisa que começou a incomodá-la foram as mensagens que eu recebia.
Ergui as sobrancelhas, surpreso sem saber por quê. Charlie era atraente, divertido, inteligente, óbvio que iriam dar em cima dele.
— E tu cortava? Ou dava em cima também? Não tô aqui pra te julgar não, tchê.
— Nem um nem outro. — Ele riu baixo, mas seu tom de voz era triste. — Eu só deixava, sabe? E sabia que isso não era legal, mas... Era bom saber que outras garotas héteros eram a fim de mim.
O rosto de Charlie se avermelhou um pouco e me deu a porra da vontade de beijá-lo. Respirei fundo e virei o conhaque rapidamente.
— É... — Senti minha garganta queimar, mas logo passou. — Tu tava tendo o ego levantado e se sentindo validado como homem, todo mundo gosta disso, até eu. Só não pode magoar alguém no processo.
— Eu sei... — Charlie ergueu a cabeça e ficou olhando para a frente. — A pior parte foi que Sammy saiu de casa para morar comigo, os pais dela não concordaram porque queriam que ela terminasse a faculdade primeiro, mas eu insisti e ela saiu brigada com eles por minha causa, tudo porque eu era um carente que achava ser impossível morar sozinho e precisava dela.
Aquela parte me deixou surpreso. Charlie nunca havia comentado sobre o fato de terem morado juntos.
— E como foi ter essa vida de casados?
— Caótico. — Ele deu outro riso, dessa vez mais nervoso. — Eu sempre dizia estar ocupado por causa do trabalho, na Comffy e com meu livro, e ela acabou sobrecarregada com as coisas da casa. Me falava para ajudar, mas-
— Ajudar não, guri. A casa era de vocês dois, tu não tinha que ajudar ela nas tarefas, tu tinha era que fazer mesmo porque era obrigação tua.
Charlie me encarou surpreso e entreabriu os lábios. Sua boca era tão desenhada e estava em um tom rosa tão bonito que desviei o olhar antes de querer fazer alguma coisa.
Se concentra, Jason.
— Nunca imaginei que tu diria uma coisa dessas.
— Sou babaca, não machista. — Dei de ombros e Charlie assentiu.
— Tu tem razão. Eu acho que sempre vi minha mãe sendo assim e minha família era a única referência, então acabei reproduzindo muita coisa sem perceber. De qualquer forma, quando eu fazia alguma tarefa, dava tudo errado, eu saía quebrando alguma coisa ou não limpava direito e Sammy tinha mais um motivo pra reclamar de mim.
— Ela também só reclamava, né?
— Bom, ela sempre teve seus motivos. — O guri suspirou. — Eu devia ter sido um... Marido melhor. — Seu rosto virou uma careta engraçada. — Fala sério, Jason, eu tenho cara e idade pra ser marido de alguém?
Soltei uma gargalhada alta e Charlie acabou rindo também, era bom ver que aquela conversa difícil estava com um clima no mínimo agradável para deixar o moleque à vontade. E realmente, Charlie e a palavra marido não combinavam ainda.
— Tá, já entendi que foi uma bosta! Mas poderia ter continuado assim sendo bem bosta por muitos anos, igual muita gente faz. — Me servi com outra dose de conhaque e também coloquei no copo de Charlie. — Quando foi que começou a desandar de verdade? — falei a última palavra com ênfase.
O sorriso de Charlie se desmanchou na mesma hora.
— Tu tem que prometer que não vai me julgar. — Ele disse apreensivo de repente, e começou a passar a palma das mãos pelo tecido da calça moletom.
— Prometo que posso tentar. — fechei a garrafa e olhei para ele.
Charlie respirou umas três vezes antes de voltar o rosto para o chão e parar de me olhar.
— Ela me viu usando pó.
Foi a minha vez de respirar fundo. Eu nunca quis tanto socar Charlie Stewart como naquela hora e cerrei os punhos embaixo da mesa longe da sua visão para que ele não visse minha reação.
Mesmo assim, minha voz mostrou que eu estava sim, julgando ele.
— Tu não tem noção nenhuma das coisas por querer usar uma merda dessas, Charlie.
— Te falei pra não me julgar!
— E eu prometi que iria tentar, mas porra, tu me fala que usa cocaína e quer que eu fico como? Caralho, Charlie.
Tirei as mãos do meu colo e passei nos cabelos, nervoso. Mesmo com a minha vida fora dos eixos, eu sabia o conceito da palavra limite. Charlie obviamente não sabia.
— Tá, e o que ela fez? Quando soube. Me conta.
— Foi uma merda. — Sua voz saiu mais baixa e com angústia. — Eu não usei aquilo por achar legal, eu juro, mas eu tava no meio de um surto de ansiedade e eu meio que precisava, e ela começou a gritar comigo, eu sei que ela tinha razão, mas eu só queria ficar sozinho, meu corpo todo doía e ela começou a me segurar, me apertou no braço e eu pedia o tempo todo pra me deixar sozinho, e ela ficou me segurando me pedindo explicações, e eu fui ficando mais ansioso e tentando me afastar, mas eu também não tava com a cabeça boa, o pó já tinha surtido efeito, e eu... — Ele parou de falar e se abraçou. Charlie se encolheu na cadeira, estava prestes a chorar.
Eu queria dar a volta na mesa e abraçá-lo, mas não podia fazer isso agora. Eu já havia entendido que quando ele estava ansioso não gostava muito de toques, mesmo que em alguns momentos que a ansiedade estava muito forte ele me deixava abraçá-lo; mas aquele não era um bom momento agora. Ele precisava lidar com aquilo sem minha intervenção.
— O que tu fez? — O incentivei a continuar.
— Eu empurrei ela na parede. — Foi o estopim para as lágrimas do guri saírem. — Então eu precisava ficar longe dela, senão seria pior. Aceitei a proposta pra Porto Alegre e fingi que nada tinha acontecido, que eu tava bem, que tava evoluindo, mas... Não tá nada bem! Eu tô mentindo pra todo mundo e pra eu mesmo!
Minha garganta parecia ter dado um nó. Eu não sabia o que fazer, sequer o que dizer. Charlie não havia transparecido nada daquilo para mim e, ao mesmo tempo que eu estava feliz por ele ter se aberto comigo, também estava amedrontado por não poder fazer nada.
— Olha... — Cheguei meu corpo para mais perto da mesa, ele estava tentando conter o choro. — Tu não precisa continuar assim, tá? Tu fez bastante merda, ok, eu também já fiz, mas a gente se conserta. Acredita nisso?
— N-não sei. — gaguejou e passou a palma da mão pelos olhos para espantar as lágrimas. — Já faz tanto tempo e eu nunca mudei, achei que vindo pra cá e te ajudando faria, não sei... Eu ser diferente.
— E tu pode ser, tchê. — Eu não acreditava estar dando discurso de motivação para Charlie, mas as coisas estavam mesmo loucas. — Só que tu vai ter que fazer tua parte, e é por isso que vai ter que ser sincero na pergunta que vou te fazer.
Charlie olhou para mim rápido e quase vacilei ao ver como seus olhos estavam vermelhos pelo choro, assim como seu nariz e bochechas molhadas. Ele ficou atento ao que eu dizia e deixei a garrafa e o copo de lado.
— Tu tá com cocaína aqui?
O olhar do guri o entregou. Ele respirou rápido e alto, como se tivesse sido pego. Devolvi o olhar em choque, o desgraçado estava guardando droga aqui dentro e eu não fazia ideia.
Sem pensar duas vezes, me levantei correndo. Charlie demorou alguns segundos para entender que eu estava indo até seu quarto, então quando se tocou saiu disparado atrás de mim.
— JASON!!! NÃO FAZ ISSO!
Corri até o cômodo e quase consegui trancar a porta, mas Charlie foi rápido e conseguiu bloquear com o próprio corpo. Eu sabia que poderia machucá-lo se empurrasse a porta então não tive escolha, desisti e corri para sua mala.
— Para, Jason! Não mexe nas minhas coisas! — Charlie se segurou no meu casaco, mas consegui me soltar e alcancei suas coisas. Ele tentava a todo custo me segurar pelos braços.
— Não vou deixar tu usar isso nunca mais!
— Por favor, Jason! Não faz isso! — Ele choramingou, mas não cedi dessa vez. Charlie tentava me puxar para trás, porém meu ódio por saber que ele tinha pó guardado consigo era tão grande que me dava coragem de empurrá-lo.
Consegui enfiar minha mão no fundo da mochila até tocar em um pacote plástico. Charlie viu que eu havia encontrado e avançou para mim de novo, tentando me jogar no chão.
— PARA, JASON!
— PARA TU, PORRA! — Segurei o guri pelos braços e o empurrei para o chão. Charlie se assustou e gemeu de dor ao cair no piso, eu teria tempo para me arrepender disso depois, precisava dar um fim naquela merda primeiro.
Peguei o pacote transparente contendo o pó esbranquiçado e corri para o banheiro. Abri a privada, joguei de uma vez lá dentro e dei descarga, sentindo uma onda de alívio instantânea ao ver aquilo indo embora.
Mas meu alívio durou pouco, ao ouvir o choro de Charlie no quarto. Respirei fundo e fui para lá às pressas, ele ainda estava jogado no chão, chorando com as mãos cobrindo a cabeça.
— Ei, guri, foi mal fazer isso... — Me aproximei e o ajudei a se levantar, mas o máximo que consegui foi deixá-lo sentado no chão. Seu rosto estava vermelho e ele tremia.
— Desculpa, Jason, desculpa, desculpa... — Charlie cobriu as mãos, mas as tirei do seu rosto.
— Guri, te acalma, isso vai passar...
— Eu não sou ruim, eu juro, eu só tô... — Soluçou. — Não sei...
— Não tem problema, mesmo, eu tô aqui contigo, tu não tá mais sozinho. — Usei minhas mãos pra limpar teu rosto e depois o abracei desajeitado no chão. Charlie passou os braços ao redor da minha cintura.
— Desculpa mesmo, desculpa... — Ele apertou meu casaco para se segurar e acariciei seu cabelo.
Meu coração batia frenético, eu tinha certeza de que Charlie podia ouvir. Ao mesmo tempo que eu estava aliviado por ele ter se aberto comigo, também estava desesperado.
Como as coisas chegaram a esse ponto? E por que eu nunca me preocupei em saber como ele estava? Percebi que havia sido um egoísta durante os últimos dois anos, vivi a minha vida sem ter tanto contato com Charlie, e só depois de precisar dele que resolvi ir atrás, sem nem parar para saber como ele estava.
Charlie vestiu uma máscara durante todo esse tempo e eu fingi que acreditei naquele teatro.
Ainda bem q todo mundo sabe q eu gosto de fazer sofrer pra depois dar carinho
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