Capítulo 10

"Nós usamos drogas, você me abraça forte, então eu digo como você me faz inteiro."

[Conteúdo sensível: uso de drogas]

2020.

Arromanticidade.

Pessoa arromântica. Relação arromântica. Atração romântica. Arromantismo. Espectro arromântico. Aro.

Respirei fundo, saí do YouTube depois de ver todos os vídeos daquela playlist, desliguei a tela do celular, me deitei e encarei o teto.

Agora eu conseguia entender o que Charlie era quando disse ser demissexual e panromântico. Ele se atraía por pessoas independente do gênero, mas de forma romântica. Para a atração sexual surgir, ele precisava criar algum vínculo primeiro.

Ao contrário do que li em muitos comentários, aquilo não parecia confuso para mim. Parecia até óbvio. Eu era totalmente o contrário de Charlie: me atraía sexualmente de forma espontânea, sem precisar criar algum laço com a pessoa primeiro. A atração era rápida e fácil – ainda mais se fosse uma pessoa atraente pra cacete.

Eu era o que ele explicou no vídeo ser allosexual; o contrário de assexual. Charlie estava dentro do espectro da assexualidade, a "área cinza": ele era demi. Eu podia imaginar quantas pessoas faziam piada com Demi Lovato por causa disso.

Já em relação à romanticidade, Charlie era allorromântico, pois se atraía romanticamente de forma espontânea e desejava ter algo romântico com alguém, igual a... Mim?

Eu não tinha totalmente certeza se Charlie era igual a mim nisso. Eu nunca me apaixonei para saber.

Pisquei várias vezes para o teto. Tentei reviver alguma memória que eu pudesse considerar romântica do meu passado.

Não havia nada.

Me sentei novamente e meu olhar perdeu o foco no teto, o que me deixou um pouco desnorteado. Me concentrei em procurar outro ponto para sustentar meus olhos e fiquei encarando o guarda-roupa de madeira escura da Paloma.

Eu já estava com vinte e dois anos, por que ainda não tinha uma experiência romântica?

"Porque tu nunca te preocupou em ter, guri." Meu cérebro respondeu minha própria pergunta.

Mas por que eu nunca me preocupei com isso?

"Tu só não queria, tu não entendeu nada dos vídeos do Charlie não, tchê?!"

Caralho, cérebro, cala a boca.

Eu não era arromântico, não tinha como saber. Que palhaçada. As outras pessoas podiam até ser, inclusive respeito, mas eu não tenho como ser assim.

"Talvez eu não encontrei alguém interessante o suficiente pra isso."

Quando o Charlie chegasse, talvez eu fizesse algumas perguntas. E por que ele estava demorando tanto?

Já haviam se passado quase duas horas e sem sinal dele. O guri sequer me falou aonde ia, eu devia ter perguntado. Parabéns, Jason, seu idiota.

Tentei parar de pensar nele e abri de novo meu celular. Em uma tentativa de me distrair, cliquei na playlist de Charlie sobre o tour pelo seu apartamento em Porto Alegre. Ele era mesmo bem blogueiro, seus vídeos eram engajados. A playlist contava com mais cinco vídeos sobre sua vida trabalhando na capital gaúcha.

Charlie Stewart estava tão diferente que até o seu rosto parecia outro, mas ele não estava usando testosterona. Deveria ser alguma puberdade tardia.

Vi mais alguns vídeos com colaborações de outros Youtubers LGBTQ e conferi o horário de novo – Charlie já estava há quase três horas fora de casa.

Eu não queria fazer isso, mas precisei reinstalar os aplicativos das redes sociais. Se alguma coisa ruim acontecesse, a notícia se espalharia rápido e chegaria até mim por lá.

Enquanto os aplicativos baixavam, me levantei da cama e fui até a cozinha para beber água. A geladeira de Paloma estava repleta de coisas saudáveis e orgânicas e fiz uma careta quando percebi isso. Não havia nem uma lata de cerveja para melhorar minha noite.

"Caramba, Charlie, cadê tu."

Tomei um copo de água tão gelada que senti meus dentes doerem. Lavei rapidamente e deixei pendurado no escorredor de louça.

Merda de vontade de fumar de novo.

O cigarro eletrônico estava descarregado, eu sempre esquecia de recarregá-lo. E Charlie jogou todos os meus maços de cigarro fora quando chegou, então eu não possuía mais nada. Minha respiração começou a acelerar e deixei o celular em cima da mesa de jantar, rumo ao banheiro.

Tirei a camiseta que estava usando e deixei jogada no chão, sem me importar com a bagunça. Liguei a torneira, coloquei um punhado de água nas mãos e joguei no rosto para tentar me relaxar. Me olhei no espelho e aproximei meu rosto para conferir minhas pupilas, que estavam mais dilatadas que o normal.

Respirei fundo mais uma vez e aproveitei as mãos molhadas para passar no cabelo. Ele estava crescendo e ficando mais rebelde, eu precisava logo ir ao barbeiro antes de que o comércio decidisse fechar por conta da pandemia.

"Cadê tu, Charlie..."

Sequei o rosto com a toalha de banho que estava pendurada no box de vidro e ouvi o barulho da maçaneta da porta se mexer. Meu peito se acelerou em questão de poucos segundos e corri até a porta, me lembrei de que Charlie não possuía a chave da casa de Paloma e que eu a deixara trancada.

Destranquei a porta da sala com rapidez e a abri com força, em um segundo aliviado por encontrar Charlie do outro lado, mas logo em seguida o alívio virou preocupação.

— Charlie?!

Seus olhos azuis pareciam estranhamente... Mortos. Senti um leve arrepio na nuca. A sua roupa continuava impecável, mas seu cabelo estava bagunçado. Seus lábios pareciam secos e ele deu um passo para entrar na sala, mas seu andar estava pesado e torto.

— Ei, guri? — Me aproximei dele e o fiz dar alguns passos para que eu pudesse fechar a porta. Assim que a tranquei, o abracei e instantaneamente inalei o cheiro que saía da sua roupa.

Maconha.

— Charlie? Tu fumou? — Me afastei e olhei para ele, mas o guri não correspondia. Sua respiração estava um pouco mais fraca que o natural.

— Eu só quero deitar...

Sem reação, ele se afastou de mim e arrastou os pés até o seu quarto. Sua voz estava estranha e eu infelizmente sabia que tom de voz era aquele, o que provocava aquilo.

Charlie não estava chapado só de maconha.

Uma teoria cresceu na minha cabeça, mas eu não podia pensar nisso agora. O guri precisava de ajuda.

— Charlie, tu quer tomar um banho? — Andei até o quarto e o vi sentar na cama, com olhar fixo no chão. Ele abraçou o próprio corpo e ficou assim, estático, sem me responder.

Eu precisava saber o que Charlie havia usado, e a quantidade também. Porra, aonde estava Sammy?! Ela tinha a ver com isso? Ela usava alguma coisa? Ou ele usou depois de falar com ela? E quem deu essa merda pra ele?

Eu não podia nem tentar perguntar alguma coisa naquela hora, ele estava dopado. Charlie ficou tão imóvel que parecia uma estátua. Cheguei até ele e o ajudei a tirar o casaco e o tênis, ele me deixava agir, apenas não se esforçava em fazer algum movimento.

Como ele conseguiu chegar até a casa de Paloma?! Não ouvi barulho de carro, ele simplesmente ANDOU de MADRUGADA até aqui?! Não era possível.

Eram perguntas demais e resposta nenhuma, porra.

Charlie estava de blusa, calça moletom e meias, era o suficiente para dormir mais confortável. No dia seguinte, eu iria fazê-lo falar. Eu também podia sentir o cheiro do álcool em sua roupa, provavelmente o guri iria acordar de ressaca também.

Que confusão, caramba... Se dependesse de mim, esse moleque nunca mais iria sair sozinho pra ver a Sammy. Eu ainda queria saber aonde aquela guria estava.

Retirei uma coberta do guarda-roupa de visitas, onde estavam todas as coisas do Charlie, e quando me virei ouvi um soluço.

A minha vontade era de falar "Meu Deus do céu", mas eu era ateu.

— Charlie?

A respiração do guri começou a se acelerar, assim como ocorreu comigo mais cedo, mas com mais intensidade. De repente, ele começou a chorar. Era um choro silencioso e rouco, perturbador.

— Charlie? O que foi?

Me sentei ao lado dele e percebi que suas unhas estavam arranhando seus braços de tanto que ele os apertava. Sua respiração ficou mais rápida.

— Charlie? O que tu tá sentindo? — Devia ser uma bad trip. Eu nunca havia passado por uma, não sabia como era. Eu nunca havia usado nada além de maconha, álcool e cigarro. — Que porra que tu usou, guri?!

Eu sabia que ele não era capaz de responder. Seu corpo começou a se encolher e eu me deitei na cama – com muito esforço o puxei pelos braços para fazê-lo ir até mim.

— Charlie, deita aqui.

Com dificuldade, ele caiu do meu lado na cama.

O guri não conseguia sustentar o olhar para nada, ficava olhando perdido para todos os cantos, como se não soubesse onde estava. Quando o consegui fazer se deitar completamente, ao invés de me abraçar ele ficou de costas para mim e voltou a apertar os próprios braços. Eu precisava impedir isso antes que ele se machucasse.

"O que tu tá pensando, Charlie? Cacete, me fala o que tá passando na sua cabeça."

— Guri, vira pra mim. Me abraça. — Tentei soar firme para que em algum canto da sua cabeça, ele me ouvisse. Consegui fazê-lo virar o corpo e peguei em seu pulso para que ele abraçasse minha cintura.

Como imaginei, ele começou a arranhar e apertar minha pele. Ignorei a dor e apertei seu corpo, que estava tremendo pra cacete.

— Jason... — Ele falou desesperado. Ergui sua cabeça para que eu pudesse vê-lo e seus lábios estavam trêmulos e com pouca cor, ele estava com frio. Entendi o aviso e, meio desajeitado, trouxe a coberta para cobrir nós dois.

— Tu toma algum remédio? — perguntei e ele apenas negou com a cabeça. O choro e os soluços de Charlie aumentaram e ele se apertou ainda mais no meu corpo. Eu estava preocupado com a combinação de coisas que haviam provocado isso nele.

— Tem um zumbido... Na minha cabeça... Tira isso de mim... — Charlie tirou a mão da minha cintura e tampou os ouvidos. Ele começou a chorar mais e eu tentei apertar meu abraço sobre ele. A sua respiração se acelerava cada vez mais e seus olhos estavam ainda mais abertos, apesar dele não olhar exatamente para ponto algum. — Me ajuda, por favor.

Eu não sabia que porra eu podia fazer pra ajudar, se aquilo era uma overdose, se era uma crise de ansiedade ou só uma bad trip. Por que ele nunca me contou que usava esse tipo de coisa?! E desde quando ele usava?! Como o garoto carismático da internet que ajudava um monte de gente estava se drogando, cacete? Que sentido aquilo tinha?

"Caramba, Charlie... Por que você fez isso?"

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