IV -Alícia
-Por que está aqui?
Riley parou de servir o macarrão instantâneo para a irmã ao ouvir essa frase. Alícia achou que podia realmente estar exagerando. Alguns fios castanhos de seus cabelos estavam molhados de lágrimas e grudados no seu rosto e a pouca maquiagem que usava estava com certeza muito borrada. Por ter ficado quieta enquanto seu irmão preparava seu jantar, seu aparelho tinha grudado em sua boca e a incomodava. Devia estar parecendo um ser saído dos filmes de terror. Mas se seu orgulho mandava permanecer brava assim seria. Que pensamento cruel. Mas no momento é o melhor ela pensou.
-Porque você não está lá! -ele respondeu.
-Eu ou a Lilian?
O menino parou de servir o macarrão e encarou a irmã. Alícia sabia, e sabia bem, que Riley tinha uma paixão secreta que já durava alguns anos por uma garota de cabelos extremamente longos chamada Lilian. Era uma boa menina, de boa família, que gostava muito dos gêmeos. Provocá-lo fazia parte do protocolo imposto pelo orgulho.
-A questão é que eu decidi voltar para ver como você estava, o que, por sinal, foi uma boa ideia. Podem servir quantos croquetes quiserem, podem fazer quantas piadas acharem necessárias. Sem você, nada tem o mesmo gosto e nada me faz rir tanto.
Ela fez uma careta, depois sorriu. Tomou a panela de macarrão da mão do irmão e se serviu.
-Agora...-o menino se sentou em frente à irmã, na cadeira de costume. Era uma grande mesa de madeira tosca com dez lugares na cozinha rústica de Ruby. Quatro deles nunca estavam ocupados -Pode me dizer por que sua mão está sangrando?
Ela encarou o corte. Cuidar da planta que o teste gerava como se fosse a última da Terra era uma tradição na família Weis. A mãe dos gêmeos e chefe da família parecia cuidar mais de sua orquídea branca do que dos próprios filhos mais novos. Alícia simplesmente não entendia qual era a graça de plantas. Seres vivos que não falam, não correm e não conseguiam trazer nenuma felicidade para ela. Cuidar de plantas era uma atividade estúpida.
-Me cortei. Com um estilete -ela respondeu finalmente.
-E por que estava com um estilete?
Alícia hesitou. Seu irmão estava sempre tentando animá-la e protegê-la e fazer com que ela não se metesse em encrencas ou brigas (o que acontecia frequentemente), independente do que precisasse fazer. Provavelmente não gostaria de saber o por quê do corte. A menina respirou fundo.
-Cortei o meu copo-de-leite.
Ele arregalou os olhos.
-Tem noção do que mamãe vai falar quando souber?
-Duvido que sua vontade também não seja de cortar cada centímetro daquela flor cor-de-rosa. É uma piada, tenho certeza. É ridículo.
-Não era ridículo, era sua flor! Foi feita para que você cuide dela, não a picote.
-Eu não sei cuidar de flores e não quero saber -ela rangeu os dentes. -São só mais um tipo de ser vivo que me odeia.
-É isso que vai aprender lá -o menino tomou um gole de suco. -Em Érestha, eu quero dizer. E as flores não te odeiam, você odeia elas. Mas tem também a opção b.
Ela se sentou corretamente na cadeira. O relógio cuco da parede fez barulho para indicar que eram nove horas da noite. O vento que entrava pela janela congelava as lágrimas secas de Alícia e bagunçava seu cabelo. Ela terminou de mastigar.
-Que opção b?
-Não ir -ele respondeu.
Alícia franziu as sobrancelhas. O cuco finalemente se calou. Para compensar, um visinho colocou alguma música popular no volume máximo e Alícia quese atirou uma faca pela janela para pará-los.
-Como assim? –Perguntou por entre os dentes.
-Ninguém está te obrigando a ir para lá –ele falava isso sem encara-la. Estava dizendo a verdade, mas queria ter a irmã perto de si. -Você pode simplesmente ficar aqui e continuar com sua vida de agora. Mas sozinha, por quê eu vou.
Ela mexeu no macarrão com a colher. Não ir era uma possibilidade. Uma boa opção. Não seria nenhum talento perdido. Ainda assim não teria seu irmão ao seu lado, inventando brincadeiras e piadas à todo momento.
-Vou pensar sobre isso -concluiu em voz baixa, ainda mexendo no macarrão.
Ficaram em silêncio por um bom tempo. Tempo suficiente para que ela comesse tudo e ele bebesse o equivalente à uma jarra cheia de suco. A menina ainda considerava sua nova opção. Ela sabia sobre o teste desde que se entendia por gente. Sabia que deixaria os estudos no Brasil para ir para Érestha e basear sua vida lá. Estudar seu legado, aperfeiçoa-lo e depois viver a vida que achasse melhor. A Tia que morava em Érestha era editora chefe de uma revista adolescente muito popular, a Pest Pixie. O irmão mais velho trabalhava em um lugar para controlar a entrada e saída de pessoas do reino. Haviam opções diversas, mas não era diferente do Brasil.
-Acho que vou me deitar- Riley disse, acordando-a de seus devaneios.
-Não!- ela gritou, desesperada por compania -Quer assistir televisão?
Ele sorriu.
-Certo, irmã, vamos lá.
Ele lavou a louça enquanto ela decidia o que queria ver. A menina não se importava com a TV, só queria a companhia de alguém que realmente se importava com ela. Riley era a única pessoa que conseguia fazê-la feliz. Sua mãe e seu meio-irmão mais velho a ignoravam. Romena, a do meio, ficava feliz em vê-la chateada, e Ramona, essa ela detestava de verdade, a torturava de todas as formas possíveis. Seu jeito favorito era chamando-a de "bastadinha imunda". Isso doía, doía até em Riley. Ele era sempre imune a comentários. Forte e determinado. Ela queria ser igual ao irmão, mas não conseguia deixar tudo de lado. Nem muitos amigos ela tinha. Na escola, alguns. Na favela, uma. Laura Souza, e elas se conheciam ha muito tempo, mas Alícia não saía com ela a todo o momento pois sabia que não era uma boa influencia e se divertia com coisas ilegais. Ainda assim, era alguma coisa.
-Ta legal, já chega. Minha vez.
Alícia se virou e viu a meia-irmã mais velha parada e com os braços cruzados atrás do sofá onde estava sentada. Aqueles cabelos com as pontas violetas presos para trás num coque tosco e os olhos cor de mel que Alícia tanto odiava. Vestia uma saia longa e uma blusa de mangas cumpridas. As pulseiras chegavam em seu cotovelo, mesmo por cima da manga, e o colar parecia muto pesado. Alícia quis destui-lo também.
-O que quer Ramona? –a menina perguntou por entre os dentes.
-Ficou aqui a tarde toda, agora é minha vez de assistir à televisão -Ramona empurrou a meia-irmã para o lado e tomou o controle remoto dela -Vai dormir, vai, baixinha.
-Por que está aqui?
Geralmente as irmãs dormiam na casa de tia que morava em Érestha e iam para a escola no dia seguinte à festa. O outro irmão, que colecionava objetos cortantes, não estudava mais, já tinha se formado. Então o que ela estava fazendo ali?
-Eu resolvi voltar e acabou. Vai dormir bastardinha!
A raiva descontada por Alícia no quarto de Ramona veio voltando aos poucos. Ela não pensou direito e empurrou para cima a mão dela que segurava o controle remoto, fazendo-a acertar seu próprio queixo. Ramona revidou empurrando-a do sofá.
-Já chega, meninas- a mãe apareceu.- Ramona está certa. Você terá o ano todo para ver TV e ela não.
-Como é? -a mais nova gritou.
Ramona sorriu, muito satisfeita. Não pode ser, quando esse dia vai acabar de me torturar? Será que alguém se diverte, me assistindo sofrer?
-Você ouviu baixinha. Já pra cama -a mais velha provocou.
-Ramona! -A mãe a censurou.
Alícia saiu batendo os pés de raiva e foi até seu quarto, onde deitou de cara no travesseiro. Não se preocupava em respirar direito, só queria seus gritos abafados. Alguém entrou o quarto sem antes bater.
-Sai daqui! -ela gritou com o rosto fora do travesseiro, sem nem mesmo saber quem era.
-Ei, calma! -Era Riley- Achei que tinha me convidado para não dormir hoje e ficar discutindo injustiças com você.
-Ah, cale a boca Riley! Ela...
-Eu sei, eu sei -ele a interrompeu.- Vocês se odeiam e uma adorara ver a outra levando bronca e blá blá blá. Posso me sentar aí?
Alícia encarou o irmão. Com aquele sorriso travesso e contente estampado no rosto moreno dele era impossível expulsa-lo. Ao menos tinha alguém naquela casa cuja companhia não lhe dava vontade de gritar.
De acordo com a LEI N 9.610 DE FEVEREIRO DE 1998, PLÁGIO É CRIME.
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