⚔ Capítulo 25
Passaram-se cinco dias desde o incidente com o príncipe Demetrius, que se apresentou nu e molhado no salão do castelo. Não voltei a vê-lo desde então. Nikosoli também não ousou fazer uma segunda visita e era difícil decidir se me sentia bem ou não com o afastamento. Ainda que sua presença causasse um efeito estranho sobre mim, ansiava por notícias de Magdalena.
Apesar de tudo, Midas, surpreendentemente, era o que menos me preocupava. Ele desaparecia durante horas, surgindo apenas em momentos formais, onde a sua presença era requisitada. Normalmente, a sua aparição era seguida de ordens, indicando os locais e horários que eu deveria investigar. Eu estava começando a me habituar àquela rotina de espiã secreta no castelo pomposo de Reinlynch. E tal sentimento era tanto aconchegante quanto perigoso.
Afinal, a comida era sempre servida bem quente, com diversos caldos brilhantes e gordura suculenta. A bebida nunca faltava em nossas taças. Além disso, a cama estava sempre quente, com lençóis macios que cheiravam a hortênsias e, às vezes, hortelã. Era um paraíso. Não podia negar.
Um paraíso instável.
Num instante, meu corpo todo tremeu em um sinal de alerta. Acontecia com frequência ali, entre aquelas paredes imensas, onde eu me perdia entre o real e o imaginário. Senti um gosto amargo descer pela garganta. Aquela sensação me trazia um lembrete: aquele lugar não era meu de verdade.
Era um luxo, mas também uma mentira.
Tracei meu caminho até a janela. A fresta estava entreaberta, o que permitia a passagem livre do ar fresco. O sol estava se pondo, os tons de laranja e azul se misturando no horizonte. Aquele era o horário em que eu e Midas costumávamos nos encontrar na sala de jantar. A senhora Dorthie não se sentava à mesa conosco, e não havia mais nenhuma alma viva — além do príncipe — naquele mausoléu amaldiçoado.
Senti um sopro quente no pé do ouvido, e um arrepio subiu minha espinha.
— Não voltou ao lago depois daquele dia? — a voz grave ecoou atrás de mim. Num primeiro momento, pensei que, talvez, pudesse ser Midas, mas não reconheci a voz. Virei-me, depressa, dando de cara com Demetrius.
O príncipe sustentava um sorriso cintilante e orgulhoso. O cabelo preto estava molhado, mas não pingando. O colarinho da blusa ainda aberto deixava amostra um pedaço de sua pele.
— Alteza — cumprimentei-o, curvando-me rapidamente. O príncipe meneou a cabeça, apreciando meu gesto. Ele arqueou a coluna e dobrou-se para frente em seguida, pendendo a cabeça em minha direção. Assustei-me com o movimento rápido, meus olhos arregalados.
— Estava a sua procura — ele disse, criando espaço entre nós. Suspirei aliviada. — Parece estar sempre escondida. — Precisava pensar em alguma resposta rápida. Alguma coisa. Qualquer coisa. Mas não consegui. As palavras fugiram, escorrendo entre os dedos a mera tentativa de agarrá-las. Aqueles olhos cinzentos me distraíam. Demetrius sorriu. — Gosta de encarar homens bonitos?
Aquilo me tirou do transe, como uma picada de abelha no traseiro.
— Não, prefiro os arrogantes que surgem na minha frente sem aviso — bati os pés antes de me virar. — Mas não se preocupe, alteza! Da próxima vez arrancarei os olhos para não precisar vê-lo de novo.
Dimitri alargou o sorriso.
— Não deveria falar comigo neste tom.
— Desculpe, alteza. — realizei um cortejo, dobrando os joelhos e abaixando a cabeça em reverência. Em seguida, apressei o passo para longe de Demetrius. O príncipe não ficou para trás.
— Não me pareceu muito sincera. — ele disse, correndo para me alcançar.
— Não fui. Você não me parece do tipo que se importa com as formalidades da realeza.
Demetrius aceitou o argumento em silêncio. Caminhou ao meu lado até o último corredor, onde a porta para a sala de jantar estava aberta. A poucos metros de nós, Midas aguardava de braços cruzados. Quando nos aproximamos, ele estreitou as sobrancelhas, nada satisfeito.
Seu olhar alternava entre mim e o príncipe.
— A que devemos a honra de sua presença, alteza? — ele indagou, numa reverência exagerada e fajuta. Senti vontade de rir. Midas era um mestre em mascarar seus próprios sentimentos e atitudes, se estava demonstrando tamanha falsidade, tão descaradamente, era com um proposito específico.
O príncipe não pareceu se incomodar, ou mesmo notar.
— Pensei que um pouco de companhia não faria mal.
Midas deu de ombros.
Por um instante, as feições do príncipe se enrijeceram.
— Bom, vamos nos sentar antes que a comida toda esfrie. — disse, entrelaçando os braços de Midas no meu enquanto me posicionava entre os dois. Estendi a mão direita para o príncipe.
Demetrius sorriu, depositou um beijo rápido no dorso e entrelaçou nossos braços tal como eu fizera antes. Ao adentrarmos o salão, esperei que Demetrius se afastasse e escolhesse o acento da extremidade, mas ele optou por continuar ao meu lado.
Durante todo o jantar, meu estômago fervilhava.
Eu tinha total certeza de que ele me observava.
Depois do jantar, Midas costumava caminhar sozinho pelo jardim e também pelo bosque ao redor do castelo a procura de rastros da criatura. Enquanto isso, eu deveria rondar a área interna. Estava perambulando por horas, perdida em pensamentos, quando ouço barulhos. Por um instante, pensei que tivesse ouvido o sibilar de uma cobra. Imediatamente, pensei nas sombras de Nikosoli, que emitiram o mesmo som.
De repente, uma âncora pesou em me peito.
Eu não sabia interpretar se a sua ausência era um bom ou mau sinal. Pensar nele naquele momento me fez sentir um formigamento nas mãos e na barriga. Não queria sentir aquilo, então continuei andando. Era tudo o que eu precisava fazer: andar e me certificar de que não havia monstros em canto algum.
Durante aquele pouco tempo no castelo, consegui circular boa parte do terreno sem a Sra. Dorthie ou qualquer outra pessoa em meu encalço. Minha única preocupação era evitar o Príncipe Demetrius a todo e qualquer custo, simplesmente porque a presença dele me deixava nervosa. Todas as vezes que me lembrava de seu corpo desnudo iluminado pelo anoitecer, minhas bochechas coravam e minhas mãos formigavam.
Eu não queria arriscar encontrá-lo quando estivesse sozinha, principalmente depois de quase todos os serviçais terem sido dispensados. Então, minha coragem de investigar os corredores e cômodos empoeirados acabava se dissipando sempre que aquele rosto cruzava minha mente.
Amaldiçoei Midas por não ter me dado mais instruções e, definitivamente, estava mais arrependida do que conseguia exprimir em palavras por ter concordado em executar aquele plano terrível.
Mas não era como se eu tivesse uma escolha.
— Celine, querida! — a Sra. Dorthie, a verdadeira luz daquele castelo coberto de sombras e poeira, chamou-me da cozinha. Eu havia acabado de retornar ao corredor principal, chamado de Linha Mãe. Não fazia ideia de quantas horas haviam se passado desde o jantar, mas tinha certeza que já havia se passado da meia-noite.
Segurei a saia enquanto cruzava o caminho até a porta da cozinha. Sentado na mesa, com um olhar sedutor e sorriso quente, estava o príncipe Demetrius. Ele estava sorrindo, e aquele calor que dele emanava em atingiu como um soco no estômago. Senti meu estômago fervilhar. Ele deveria ser proibido de sorrir daquele jeito, ou de qualquer outro.
O cabelo estava penteado para trás, as pontinhas já secas, revoltadas, fazendo curvas para todos os lados na altura do pescoço. Ele claramente não gostava de pentear o cabelo e também nunca deixava alinhado conforme deveria. Na verdade, Demetrius parecia exprimir profundo interesse em fazer tudo aquilo que um príncipe não fazia.
Meu nervosismo se intensificou. Por algum motivo, isso acontecia todas as vezes. O príncipe Demetrius me olhou dos pés à cabeça. Diante dele, uma xícara fervendo de café e um bule de prata. Do outro lado da bancada, a Sra. Dorthie sorria! As bochechas rechonchudas rosadas como se brasa quente tivesse queimado seu rosto.
— Querida! Está aqui, que bom! Também sofre de insônia, querida? — ela cruzou as mãos e caminhou até mim, acariciando minha face. Eu não soube como reagir, apenas concordei. — Oh, vocês, jovens! Preciso descansar e este menino não me deixa em paz! — arregalei os olhos, mirando o príncipe. Demetrius tomava o seu copo de chá, despreocupado. — Já que estão acordados, podem servir de companhia um para o outro. Já passou da hora de eu me deitar. Fique com o príncipe!
Fique com o príncipe.
Girei a cabeça lentamente até encontrar Demetrius, que exibia um sorriso atrás da xícara de prata. Ele estava rindo? Eu também deveria me deitar! Por que diabos eu deveria fazer companhia para ele?
— Claro. — balancei a cabeça, curvando-me na direção do príncipe, gesticulando exageradamente. Demetrius alargou o sorriso. — Posso ajudar em mais alguma coisa?
— Bom, pode me ajudar a limpar o escritório — ele bateu a xícara na mesa e se levantou. — Estava prestes a fazer isso sozinho, mas... já que se ofereceu, não seria má ideia.
— Isso! Que ótimo! — disse dona Dorthie. — É um bom jeito de curar o estresse! Vão ficar com sono rapidinho.
— Sim, claro, é ótimo... — horrível, isso é horrível.
— Geralmente não gosto de ajuda, mas vou abrir uma exceção já que é tão prestativa — voltei-me para a Sra. Dorthie, que já estava longe demais para sequer conseguir ouvir aquela conversa. Eu estava perdida, sozinha e presa naquele castelo com um príncipe, aparentemente, louco. — É uma grande honra.
Uma grande honra, ele disse.
— Você fez isso na frente dela de propósito — acusei, sabendo que minha careta já estava bem distante de uma postura respeitável de uma convidada do Rei.
Demetrius sorriu, como um gato diante um novelo de lã.
— De que importa? — ele cruzou os braços. — Não vai me chamar de alteza? Gosto quando usa o tom de desprezo que emprega no "você" ao se referir a mim, mas quando diz "alteza" fingindo ter algum respeito... é ainda mais interessante.
— Eu não sabia que príncipes podiam ser tão babacas — ralhei.
Ele pareceu ofendido por alguns segundos, e comecei a me arrepender. Ele era o príncipe. O príncipe! Por que eu estava tratando-o daquele jeito? Eu com certeza perderia a chance de pagar minha dívida com Midas e ainda encontraria uma cela bem quentinha num calabouço escuro e malcheiroso se continuasse com essa loucura de desafiá-lo.
No entanto, Demetrius apenas exibiu um meio sorriso, o olho direito um pouquinho mais estreito que o outro, fazendo meu estômago embrulhar de vez. Ele caminhou até a extremidade da cozinha, apanhando um balde e uma vassoura, esticando o cabo em minha direção.
— Eu não sabia que mulheres podiam ser tão rancorosas. — disse o príncipe. Ele avançou em minha direção, parando apenas a meio passo de distância. — Acho que causei uma má impressão, mas eu não sou babaca... e também não estava fingindo não ser um príncipe naquela noite, eu só... bom, não era a melhor situação para uma apresentação formal, não é?
Eu quase engasguei com a lembrança. Ficar tão perto dele daquele jeito não estava me fazendo bem, definitivamente não devia ser permitido que uma consorte indigna como eu se aproximasse assim de um membro da realeza. Mas enquanto não houvessem testemunhas, eu sabia que podia agir como eu bem-quisesse. Empurrei a vassoura de palha e bati os pés até a porta da cozinha, enchendo os pulmões.
Esperei até que viesse ao meu encontro de braços cruzados.
— Ajudarei com prazer, mas não sou sua serviçal. Vossa Alteza tem dois braços. Pode, muito bem, carregar isso sozinho. — as palavras saíram antes que eu pudesse impedi-las, no entanto, não me preocupei. Pois, apesar da posutra hereta e imaculada, Demetrius me dirigia um olhar dócil e seguro.
Eu não percebi que prendia a respiração enquanto caminhávamos lado a lado até que fui obrigada a respirar, pois meus pulmões sufocavam e meu rosto ruborizava com o calor. Mesmo caminhando com elegância, cheguei um pouco ofegante devido à falta de ar.
Demetrius parecia uma estátua. Perfeita, estática, imortal. Ele posou o balde no piso de madeira e largou a vassoura encostada na porta. Com a cabeça inclinada, tocando a superfície de madeira, ele cruzou os braços. Os olhos piscavam, deixando os cílios espessos tocando as bochechas levemente rosadas. O cabelo preto estava desalinhado, alguns fios tomando para os lados e também em cima do nariz.
Ele era atraente. Esperava que ele continuasse daquele jeito por mais alguns segundos, assim podia admirar silenciosamente sem sentir o nervosismo e frenesi que me tomavam quando ele me encarava. Mas à medida que eu ia me aproximando, minha tensão só aumentava.
— Antes de entrarmos, preciso dizer algo — o príncipe assumiu uma postura ereta e polida, cruzando os braços, sem nunca perder aquele ar de diversão. Mas ali tão perto pude ver as marcas escuras abaixo dos olhos, linhas que denunciavam noites em claro.
Desviei o olhar para baixo, onde o balde e a vassoura jaziam caídos.
— Não me diga... é a sua primeira vez? — disse, abaixando-me para pegar os materiais de limpeza. — Você já utilizou essas coisas alguma vez na vida? — alfinetei, apontando para os itens no chão.
— Estou falando sério agora... — seus olhos se estreitaram. — Este é o meu recanto sagrado, Celine. É o único lugar do castelo onde me sinto seguro, porque é o único lugar que ninguém pode entrar sem ser convidado por mim.
O príncipe Demetrius abriu a porta e estendeu a mão na minha direção, a palma voltada para cima. Ele sussurrou "entre, Celine", como um canto em meu ouvido. Ainda que estivesse longe, foi como se soprasse as palavras num murmúrio. Senti algo estranho ao cruzar a porta, como se uma força invisível atravessasse o meu corpo. Demetrius bateu a porta, trancando minha única rota de fuga para longe dele.
— O que foi isso? — perguntei, ainda estranhando a sensação.
— É um presente. Uma magia antiga que me foi dado como herança. — ele parecia distante enquanto falava. Demetrius olhou em volta. — Este quarto pertenceu a minha mãe.
Não pude conter a expressão confusa, as linhas de testa se intensificando.
— Sua mãe? — arqueei a sobrancelha. — A rainha?
Demetrius balançou a cabeça.
— O rei está no segundo casamento. A rainha é muito gentil, guarda um grande carinho por nós, e nunca foi mesquinha comigo ou meu irmão, mas ela não é nossa mãe. Auriel, o meu irmão mais velho, é fruto da primeira união do rei. — o príncipe sorriu ao mencionar o nome do irmão. — Mas antes de se casar outra vez, ele conheceu a minha mãe.
— Isso é interessante. — pontuei. — Só não entendo uma coisa... Por que a sua mãe precisaria te proteger de algo? E por que colocar um encantamento em uma sala dentro do castelo?
— Não faço ideia — o príncipe torceu o cenho.
— Obviamente — revirei os olhos. — Não tem curiosidade? — Demetrius negou com a cabeça. — Você é tão útil...
— Não entendo bem porque me trata com tanto desprezo... — dizia ele, cruzando a sala demoradamente, gesticulando de forma dramática a cada passo. Estávamos a quatro passos de distância. Três. Dois. — Então tentarei não me ofender com seu olhar de aço e palavras desdenhosas, mas não precisa ser tão hostil.
— Pensei que eu o divertia, alteza. — curvei em sinal de respeito, ou afronta, dependia muito da interpretação. Precisei conter a minha risada.
— Muito — ele sorriu, e puxou a vassoura de minha mão. — Seria ainda melhor se me chamasse pelo nome.
— Certo... Demetrius? — tentei, e ele sorriu.
— Sim?
— Você não é tão ruim para um príncipe.
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