Capítulo Nove

Quando o dia dez de abril chegou, Dove fechou. Apesar de ser o dia oficial de abertura, o dia em que celebrávamos o aniversário do bar era sempre no dia seguinte, onze de abril. Todos os empregados sabiam a razão para isso – não contratava ninguém em quem não conseguisse confiar a verdade, na verdade – e não se importavam. Aliás, era um dia livre que tinham a mais por mês. Ninguém se importava. Ninguém além de mim.

Ao acordar, sozinho na minha cama, senti o peso no peito do costume. Olhei para o lado e, ao contrário das últimas duas noites, Ava não partilhava a minha cama. Naquela semana tinha um projeto importante no laboratório e precisava de acordar cedo; para não falar de que o seu apartamento estava muito mais próximo do seu local de trabalho que a minha casa. Não me importei, porque a instabilidade que se manifestava em mim naquele dia era algo que eu não sabia se estava pronto para partilhar com Ava. Apesar de termos passado as últimas duas semanas juntos, ainda não tinha sido tempo suficiente para eu revelar mais um pouco do meu passado.

Levantei-me com toda a calma no mundo, dando à realidade tempo para me atingir. Caminhei até à minha casa de banho e tomei um duche frio, numa tentativa fútil de tentar ganhar energia, ou raiva o suficiente para me mexer, e ser normal. Não resultou, claro, mas estava demasiado habituado com aquela sensação, com aquele acordar sonolento e doloroso. Acontecia há nove anos, afinal.

Com um olhar rápido para o meu telemóvel, reparei que a Ava tinha deixado uma mensagem doce de bons dias, mas nem isso me fez sorrir como faria normalmente. Estava, ainda assim, feliz por ter alguém como ela na minha vida, e não deixaria que aquela melancolia anual me afastasse daquilo que aparentava ser a única coisa boa da minha vida.

«Bom dia, brutamontes! Que dizes de hoje me vires buscar ao laboratório e passarmos o resto do dia juntos? Ou posso encontrar-te no Dove. Que tal?»

Era natural Ava não saber a verdade. Não sabia ainda que, todos os anos, a dez de abril, Dove fechava em homenagem à origem do seu nome. Não sabia que eu permitia a mim mesmo dois dias por ano para deixar a melancolia, a tristeza e a saudade atingir-me de uma só vez. Não sabia e não era culpa sua, mas também não me era possível dizer se lho contaria tão rápido. Tão desanimado como estava, como era costume, respondi-lhe apenas a concordar com a sugestão, embora no fundo não soubesse se conseguiria cumprir a promessa.

Fiz o meu pequeno almoço do costume para aquele dia – cereais com pedaços de frutos vermelhos desidratados -, por ser o seu preferido, e inspirei fundo. Preparei-me mentalmente para a viagem que se seguia. Num mês bom, via a minha mãe talvez uma, duas vezes, mas nos meses que incluíam um dos dois maus dias do ano, obrigava-me a conduzir até à casa em que crescera. Depois de o meu pai morrer de causas naturais, ela tinha ficado sozinha, com exceção dos vizinhos que eram também seus amigos. Tínhamos restado apenas nós dois, quando deveríamos ser três, mas tentávamos não pensar nisso. O importante era homenagear a pessoa que deveria estar presente, na melhor maneira que podíamos.

A viagem foi calma. Enquanto conduzia, atendi a chamada habitual de Max, com o seu cumprimento animado e a voz séria que se seguia. Garantiu-me que estaria disponível para caso eu ou a minha mãe precisássemos de alguma coisa e informou-me de que já tinha passado pelo cemitério, deixando lá uma única rosa branca. Sorri melancolicamente e agradeci ao meu melhor-amigo, sentindo-me realmente grato por ter alguém como ele na minha vida, alguém que me percebia e que me dava o espaço que eu precisava. No entanto, quando estava pronto para desligar a chamada, ele interrompeu-me.

- Este ano é diferente, Dax. Não te esqueças que tens mais uma pessoa na tua vida e ela merece saber o que te atormenta. – antes que eu pudesse falar, ele continuou. – Tem um bom dia com a tua mãe, amor.

Revirei os olhos, mas ao olhar pelo retrovisor, apercebi-me de que estava a sorrir. Maldito Max.

Estacionei no início da rua onde a minha mãe vivia, porque sabia que, naquele dia, ela não gostava que ninguém estacionasse em frente à sua casa. Dizia que a fazia lembrar do carro da polícia que tinha lá estacionado para lhe dar as notícias. Claro, era uma mania um pouco ridícula, mas eu não era ninguém para discutir com ela. Tendo outro lugar suficientemente perto para estacionar, não me importava de andar um pouco mais até casa. Às vezes até me fazia bem, ajudava-me a acalmar, e isso fazia-me pensar que as memórias não eram as únicas razões para a minha mãe não querer que eu estacionasse em frente à casa.

Como sempre, fui diretamente para as traseiras da casa. Depois do que acontecera, a minha mãe plantara todo um canteiro com rosas de todas as cores. Inicialmente, tinha querido plantar rosas brancas, por serem as preferidas da minha irmã, mas rapidamente mudara de ideias. Ela era uma pessoa demasiado colorida, dissera, e eu concordara. Anos depois, o nosso jardim parecia um verdadeiro paraíso, cuidado pelas melhores mãos do mundo, as mais carinhosas e atentas. Sophie teria gostado, eu tinha a certeza, e essa certeza apaziguava a dor que eu sentia no peito sempre que fazia o caminho que me levava pelas traseiras da casa.

Assim que cheguei ao jardim, fui confrontado com a visão do costume. A minha mãe, ajoelhada em frente ao pedaço do canteiro onde estavam as rosas brancas e a falar baixinho para si própria. Não era para si própria, na verdade, mas sim para ela, como se ela estivesse presente naquilo que corre pelas flores. Inspirei, ganhando coragem para me fazer notar, mas deixei que a minha mãe terminasse a conversa com a minha irmã. Conseguia imaginar o que ela estava a dizer: cuida bem de ti, e aproveita para cuidar de nós também. E sabes que o teu pai é um desastrado, tens que ter a certeza de que ele não estraga a paz de todos os que estão aí sem querer.

- Mãe. – anunciei, numa voz suave.

A minha mãe endireitou as costas de repente, como se tivesse ficado sobressaltada com a minha voz, mas eu sabia que não. Ela era mais atenta e perspicaz do que dava a entender e, apesar de ter continuado a falar, eu sabia dentro de mim que ela já sabia que era eu desde que ouvira passos à sua volta. Além disso, há nove anos que eu chegava sempre à mesma hora. Não era difícil calcular quem tinha aparecido.

- Daxon, meu querido. – limpou os seus olhos rapidamente, secando as lágrimas que escorreram na sua camisola. Fungou e sorriu-me. Sorri de volta, dando os passos necessários para me aproximar dela.

Abracei-a com todas as minhas forças que não a magoassem.

- Eu sei, mãe. – disse apenas, quando ela voltou a chorar. Acariciei os seus cabelos, passando os meus dedos por entre os caracóis de um dourado-ruivo muito parecido ao meu.

- Estás muito magro, Daxon! O que é que te aconteceu?

- Magro? Mãe, eu estou mais musculado que nunca. – comentei, rindo. Ela revirou os olhos e bateu-me no peito.

- Deixas-me tratar de ti, por favor?

Sorri-lhe, assentindo suavemente. Ela virou a cara e avançou no sentido da porta das traseiras de casa. Segui-a, rindo, e observei a forma como ela tentava manter a sua postura direita e o queixo levantado. Não estava, de facto, a conseguir, mas eu apreciei a tentativa de se mostrar forte; mais que isso, apreciei a força que ela tinha todo o ano, todos os anos, desde que aquilo acontecera. Era certamente mais forte que eu, que procurava ignorar ao máximo as más memórias durante trezentos e sessenta dias por ano.

A minha mãe sentou-se numa das cadeiras da cozinha e levou quase imediatamente a chávena – que certamente continha chá de camomila – à boca. Sorri para a visão tão gravada nas minhas memórias de infância e sentei-me à sua frente na mesa, aceitando quando ela me ofereceu uma chávena. Raramente bebia chá em casa, mas era algo que fazia invariavelmente quando visitava a minha mãe. Apanhei-me a perguntar-me se Ava gostaria de chá, imaginando-a naquela cozinha, entre mim e a minha mãe.

Ava. A minha mãe teria que saber, ou nunca me perdoaria – além disso, seria algo positivo num dia outrora escuro.

- Mãe, tenho uma novidade. – ela olhou para mim atentamente, com olhos verdes vazios, como estavam há tanto tempo. – Eu conheci...alguém.

- Oh, Daxon, ensinei-te melhor que isso! Tens a subtileza de uma bola de bowling. – com o revirar de olhos bem-humorado que a minha mãe me lançou, sorri.

- Tens razão. O que eu quero dizer é que eu tenho uma namorada. Bem, não é nada oficial, mas sabes como é que as coisas funcionam.

- Como se chama?

- Ava. – ela assentiu, com um sorriso suave. Gostava do nome, tal como eu. – Trabalha naquele laboratório nos limites da cidade.

- Uma cientista? Esmeraste-te, amor. – encolhi os ombros, rindo um pouco.

O dia foi calmo depois daquilo. Como sempre, cozinhámos juntos o almoço e, depois de falarmos de todas as novidades e dos mexericos da vizinhança, decidimos ganhar coragem e irmos juntos até ao cemitério. A minha mãe recusava-se a deixar que eu conduzisse e eu era sempre relembrado dos primeiros anos do nosso luto. Eu queria conduzir para controlar o trémulo das minhas mãos mas não demorei a perceber que a minha mãe queria fazer exatamente o mesmo. Éramos demasiado parecidos. Quando ela olhara para mim, com olhos em lágrimas e me dissera Daxon, eu sou tua mãe e já te vi em posições mais vulneráveis que esta mas eu vou morrer antes de deixar que me vejas em pedaços...eu fizera-lhe a vontade, claro.

Vivíamos estupidamente perto do cemitério, apesar de preferirmos conduzir até lá. Do ponto mais alto do cemitério, aliás, conseguíamos ver a nossa casa e o nosso colorido jardim. Felizmente, a minha irmã mais nova e o meu pai viviam precisamente perto desse ponto. Era uma ideia confortadora, aquela que nos fazia achar que, se algo metafísico existisse depois de morrermos, aqueles que nós perdemos conseguiriam olhar por nós da sua morada eterna.

No momento em que cheguei à campa da minha irmã, fui assombrado por todas as memórias. A chamada da minha irmã, apenas dois anos mais nova que eu, a meio da noite, a dizer-me que achava que tinha sido violada. Como assim achas? Tinha sido a minha primeira pergunta. Ela explicara-me que as suas memórias estavam demasiado desfocadas e confusas, mas ela acordara com sangue entre as pernas e nódoas negras nos pulsos. Para mim tinha sido óbvio o que acontecera, mas para ela e para as pessoas de quem ela se rodeara não. A dúvida tinha permanecido sempre lá, principalmente porque não sabia quem poderia ter sido. Tinha ido a uma festa, bebido um único copo que um amigo dela lhe tinha oferecido – ela nem se lembrara quem – e tinha acordado naquele estado.

Lembrava-me de ter praticamente corrido para a ir buscar e quase ter partido o nariz a dois dos rapazes que a rodeavam. Ela estava a chorar e a sua melhor-amiga estava a abraçá-la, tentando acalmar o ataque de pânico que ela estava a ter. Não sabia quem culpar, nenhum de nós sabia, então ela culpara-se a si própria. Os nossos pais não podiam saber – foi a segunda coisa que ela me dissera – e eu mantive o seu segredo durante um total de uma semana, o tempo suficiente para observar o seu comportamento. Quando notei que ela estava a evitar comer e a isolar-se, contei imediatamente à minha mãe.

Sophie odiou-me por umas semanas, mas a minha mãe tê-la obrigado a ir a uma psicóloga especializada naqueles casos fizera-lhe bem. Aproximámo-nos imenso nos seus últimos dois anos; eu comecei a ir ao ginásio e, ocasionalmente, ensinava-lhe truques que me ensinavam lá. Tentei incentivá-la a ir a aulas de autodefesa mas, na nossa cidade, eram todas ensinadas por homens e ela recusava-se a ser tocada por um outro homem.

- Há dois meses consegui ajudar uma rapariga, Soph. Não fiz tanto como gostaria, mas... – sussurrei, enquanto a minha mãe se ocupava a limpar a campa do meu pai. – A Ava. Namoramos agora. Tu terias adorado conhecê-la.

Quando fiz os meus dezoito anos, um ano depois da violação, fui imediatamente para a academia de polícias. Era apenas um programa de um ano, com algum treino militar, e ajudar-me-ia a cumprir o meu objetivo. Queria ser polícia e especializar-me eventualmente em casos como o da minha irmã; aprender a lidar com situações como as dela, em que ela não tinha como saber quem lhe tinha feito o quê e, portanto, sentia não poder apresentar queixa.

Não podia imaginar que a minha irmã iria passar novamente por aquilo, um ano e meio depois de tudo ter começado. Daquela vez fora num bar noturno, rodeada de pessoas. Um homem aparentemente puxara a saia que ela estava a usar para cima e, de repente, enfiara-se dentro dela. Sem mais nem menos. Sophie ligara imediatamente à polícia mas, apesar de o bar ter camaras de segurança, nada se conseguiu fazer. Ninguém se admirara quando ela entrara numa depressão grande, apenas com dezassete anos, e eventualmente se suicidara a dez de abril. Não nos admirávamos, mas nem por isso tinha doído menos.

Terminara o curso na academia e mudara automaticamente de carreira. Foquei-me em ganhar dinheiro suficiente como segurança para abrir o meu próprio bar, para descarga da minha própria consciência. No meu bar nunca aconteceria algo como acontecera à minha irmã e, se eventualmente acontecesse, as coisas seriam tratadas e finalizadas. A vítima teria descanso, como todos deveriam ter. Equipei o meu bar com o melhor equipamento de segurança e criei regras rígidas e inquebráveis para quem o quisesse frequentar. Eventualmente, a exclusividade de Dove – a nossa alcunha para a minha irmã desde que ela era bebé – aumentou a sua fama. Não tinha planeado isso, mas não podia negar que me tinha sido útil.

- Ela estaria orgulhosa de ti, sabes? – a minha mãe começou, ao aproximar-se de mim. – De tudo o que fizeste desde a sua morte. Ela sentir-se-ia vingada. Nós Tyler somos uma espécie complicada de humanos...somos boas pessoas, mas ninguém pode negar que guardamos ressentimentos e temos a necessidade de vingança. E, Dax, meu amor, tu vingaste-a da melhor maneira possível.

- Espero que sim, mãe. – respirei fundo, abraçando-a com um só braço e beijando a sua cabeça. – Ela teria vinte e sete anos, consegues imaginar?

- Não. – abanou a cabeça. – Porque ambos sabemos que, mesmo com a terapia a resultar...ela não teria aguentado. Mesmo se não tivesse acontecido uma segunda vez, os seus demónios teriam ganho. 


lembro-me que este foi um capítulo meio difícil de escrever, mas continuo a gostar muito dele. sabe-se um pouco do passado do Dax e da sua irmã, o que aconteceu, a sua história trágica e que moldou a sua vida e a pessoa que ele é

já percebemos porque é que ele é tão protetor, né? 

espero que tenham gostado! esta não vai ser a última vez que a mãe do Dax vai aparecer, porque eu ADORO esta senhora, por isso espero que a adorem também. ela e o Dax são dois lados da mesma moeda, tão parecidos e tão diferentes, e gosto de achar que, se eles fossem pessoas reais, teriam um no outro um bom sistema de apoio. 


p.s esta é outra das coisas em que a Devagar se Vai ao Longe é parecida com a Cair e Levantar, o facto de as histórias importantes serem contadas pelas personagens "secundárias". na primeira tivemos o Declan e aqui temos a Sophie, embora os seus finais tenham sido bem diferentes infelizmente.

a razão para isto é eu não me sentir boa o suficiente para me colocar na posição de pessoas como eles os dois, mas também querer explorar a reação das pessoas à volta. espero que esteja a ser uma tática que esteja a resultar!

obrigada a quem tem lido <3 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top