VINTE E QUATRO - Fronteiras - Parte II

— Onde está meu avô? — Ouvi Felipa perguntar ao meu lado.

Tamara sorriu, e uma figura ainda mais alta saiu das sombras, acompanhado de outros dois que não pude reconhecer.

O avô de Felipa era forte. Apesar de aparentar ter facilmente mais de setenta anos, eu podia ver os músculos de seu braço pelas roupas que usava. Quatro pessoas. Eu definitivamente esperava muito mais do que isso.

— São só vocês? — Jase perguntou.

O velho deu um meio sorriso, e negou com a cabeça.

— Temos um pouco mais de uma dezena de soldados escondidos nos arredores desse lugar. Vão nos encontrar daqui a pouco quando sairmos do assentamento. — Ele falou.

Mais de uma dezena de soldados, apesar de não ser nem de longe as centenas que sabia que os Anti tinham, ainda eram mais do que a van caberia. Por sorte tinham esperado por isso.

— Vamos pegar um caminhão das minas. — Jase falou pelo rádio. E eu soube que o resto do grupo começou a se movimentar para que aquilo fosse possível. Os veículos iam e vinham pelo lado leste da montanha, em uma estrada mal vigiada.

— Que bom que somos fodas em saquear caminhões do governo. — Tamara falou, e deu uma risadinha. — Meu nome é Tamara, esses são Hoden e Gabriel.

Felipa balançou a cabeça.

— Eu já vi membros dos Sete. — Ela interveio. — Mas não reconheço nenhum de vocês.

Vi o olhar de Jase se tornar duro quando seu rosto se virou para os recém chegados, esperando respostas. O clima se tornou incrivelmente pesado, e o ar mais denso. Eu não ousei respirar.

— Muita coisa mudou em quase dois anos, minha neta. Muitos se perderam para sempre. —  O velho falou, e a expressão de Felipa se agravou. — A guerra contra a ordem estava acontecendo muito antes de perceberem. Muito antes de alguns de vocês estarem nascidos.

— Não temos temos para isso. — Jase cortou. — Devem interceptar um caminhão a qualquer instante.

Desespero. Eu senti medo se chocar fortemente contra a minha habilidade. E eu não era a única que tinha sentido. Meu olhar foi para a trilha ao mesmo tempo que meu pai, apenas para vermos uma jovem, que não podia ser muito mais nova que eu, correr montanha a baixo, suja, com cabelos engruvinhados e extremamente magra. Suas roupas tão puídas que pareciam que poderiam desmanchar caso fossem emersas em água.

Ela viu no pequeno vão entre as casas juntas sua salvação do que quer que estivesse correndo.

— Merda. — Felipa sussurrou, e a jovem se enfiou no mesmo esconderijo que nos abrigava.




Eles vão me matar. Ela gritou em sua mente, quando seus olhos arregalados se viraram para nós.

Vieram me matar.

Seus olhos desesperados imploraram. Ao suspeitar quem éramos pelos uniformes, agora negros, aqui ainda não sabiam que nada tinha restado dos soldados da luz.

— Não faça nenhum som. — Tamara advertiu, rapidamente impedindo seu caminho de volta para as rua.

Eu esperei que ela se encolhesse, que soltasse um gemido apavorado e pedisse que não a machucássemos, mas lentamente todo o medo se transformou em determinação, e em sua mão pareceu uma pequena faca enferrujada.

Os olhos da garota encontraram os de Jase. Cheios de algo que varia meu estômago se revirar e um buraco profundo se formar dentro de mim. Eu conhecia aqueles sentimentos que jorravam da jovem. Conhecia aquele olhar, conhecia a sensação de medo, e a fome que a impedia de dormir propriamente a noite.

Ela deu um passo em direção ao meu pai.

— Está tudo bem. — Falei, vendo seus olhos incrédulos caírem sobre meu rosto. — Ninguém aqui vai te fazer mal.

Ela engoliu seco. E não recuou.

— Não somos do governo. — Continuei. — Não mais. Qual é seu nome?

— Andiara. — Uma voz fraca e cansada saiu dela.

Gabriel, o membro mais corpulento dos Anti, aproveitou a distração da jovem para tentar se aproximar por trás. Quando seus dedos roçaram sobre a pele exposta de seu braço ele gritou, e seu corpo chacoalhou.

A garota arregalou ainda mais os olhos, encarando o homem que tentava se recuperar.

Seu grito devia ter alertado alguém. E os sons de veículos se tornaram cada vez mais altos no topo da trilha.

— Você. — Jase apontou para a garota. — Vem conosco.

Ela negou com a cabeça e deu um passo para trás.

— Vamos poder ajudar você. Podemos ajudar você a controlar sua habilidade de Condutora. — Raphael interferiu. — Vai conseguir deixar esse lugar de uma vez por todas. Mas precisamos sair daqui imediatamente.

Condutora, outra habilidade secundária que até agora só tinha visto em aulas na mansão do soldados da luz. Aquela garota tinha a habilidade de concentrar e transferir energia de sua pele. Provavelmente nem ao menos tinha conhecido seu elemento. O olhar da garota foi de Raphael para mim, cautelosa. E então ela assentiu.

Quando estávamos perto de sair pelo lado contrário do esconderijo, Andiara parou.

— Minha tia. — Ela falou. — Minha tia ainda está lá em cima.

— Não temos tempo para isso. — Tamara soltou.

O olhar perdido da jovem encontrou o meu, quando de seus lábios saíram mais um apelo.

—  Por favor.

— Temos que ajudá-la. — Felipa e eu falamos ao mesmo tempo.

— Vocês não podem estar falando sério. — Gabriel sussurrou.




— Já chegaram no topo? — Jase perguntou para o outro grupo que se aproximava da mina por outro caminho, passando no meio do bosque fechado.

— Sim. — Eles responderam pelo rádio. — Parece que já sabem da presença de manipuladores na vila. Conseguimos ver seis manipuladores, nenhum parece vestir o uniforme da ordem.

Será mesmo que ainda não tinham chegado ali?

— As coisas devem estar turbulentas. Precisam de muitos homens no centro político, principalmente nessas primeiras semanas, e provavelmente devem ter mandado soldados para as indústrias e fazendas também. — Jase presumiu.

Eu concordei.

— A capital está sem comunicação. — O avô de Felipa contou. — Totalmente. A ordem cortou a rede de dispositivos para evitar rebeliões.

— Então eles devem saber que algo está errado. — Falei. — Tem semanas que não ouvem falar nada do governo.

Não conseguimos nos esconder depois que Andiara tinha eletrocutado o membro dos Anti, mas ainda não tínhamos sido abordados.

— Vamos entrar lá. — Falei. — Vamos tentar convencê-los que se trata de uma fiscalização surpresa, verificamos a situação da tia dela e saímos.

Tola.

— Nunca vão comprar essa baboseira. — Foi a vez de Hoden falar.

— Estamos em maior número. — Raphael veio em meu apoio. — Fazemos isso rapidamente e damos o fora daqui.

— Pode ser uma armadilha. — Tamara interveio, depois de rápido momento de silêncio. — Eles já podem ter chegado aqui.

— Eles quem? — A garota perguntou com a voz fraca.

Ninguém respondeu. Por mais fraca e desnutrida que ela parecesse ser, não podíamos confiar sequer uma grama de informação, não quando aqueles mais próximos já tinham se provado traidores.

Ela suspirou, e encarou o chão de terra batida.

— Como é o nome de sua tia? — Perguntei.

— Dara.

— Ela é como você? — tornei a perguntar mesmo já sabendo a resposta. Manipuladores nunca viveriam assim, mesmo aqueles renegados e com elementos fracos que eram forçados a trabalhar em lugares como as fábricas, fazendas e muquifos. Fiscalizando e gerenciando o trabalho braçal dos sem elementos.

— Não.

— Seu elemento já despertou? — Escutei a voz de Raphael atrás de mim.

— Tenho quatorze anos. Eu não...

Foi mais ou menos quando as vozes começaram em minha cabeça. Habilidades secundárias sempre vinham antes do despertar do elemento.

— Vamos ajudar sua tia. E tirar vocês daqui. — Jase terminou. — Por enquanto é a única coisa que precisa saber. Nos conte, o que aconteceu lá em cima para correr para cá?

— Por que querem matar você — Completei.

— Estávamos nas minas de ferro. — Ela começou insegura. — o carrinho tinha acabado de chegar para podermos descarregar o minério na caçamba do caminhão, foi quando eles vieram. As regras eram claras, nunca olhe nos olhos deles, nunca fale sem que peçam, não se mecha, não faça nada para chamar atenção.

Ela respirou fundo, suas mãos tremeram quando tentou arrumar o cabelo que lhe caiu aos olhos.

— Mas eu andava estranha. — Continuou. — Dolorida. Ficar perto da eletricidade era quase um tormento, porque eu a sentia pulsar, a sentia pular para minha pele toda vez que nos aproximávamos demais. Lá em cima e o único lugar da vila que tem energia.

Olhei para a trilha, que agora não tinha movimento algum.

— Minha tia já havia me contato o que era. Ela tinha me dito que isso era um bom sinal, era nossa chance. Que eu tinha que aguentar até o teste, que não podiam descobrir o que eu era antes disso, ou se não me fariam sofrer, ninguém pode ser uma ameaça a eles. Não quando...

Andiara parou, procurando em nossos rostos qualquer ameaça.

— Não quando o que? — Jase pediu.

— Andrômeda. — Ela falou. — Eles não nos contam mas os mais velhos reconhecem a flor na roupa dos compradores. Eles estão vendendo parte do minério para Andrômeda.

— Quem diria... — Tamara falou. — Manipuladores agindo assim pelas costas da nova república...

E eu procurei os olhos azuis de Raphael, ele estava tão confuso quanto eu. Estavam vendendo minério para a cidade estado que tinha a Nova República como o mais odiado inimigo, exatamente quando o governo tinha caído. Aquilo não poderia ser um bom sinal.




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<3

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