10.1 - Cada Mergulho é Um Flash


     Por um instante, Cornelius permaneceu paralisado pela realidade assustadora que havia lhe envolvido. Durante quatro anos, Ed fez de tudo para impedir os planos malignos de seu irmão mais novo, e agora Leonard tinha conseguido superá-lo de alguma forma. A saudade que ele sentia dos amigos se converteu num medo carregado de preocupação, agora ele havia percebido que nem Ed nem July haviam lhe escrito cartas durante sua ausência, e isso o fez imaginar todas as mais terríveis possibilidades.

     Então, Cornelius percebeu o peso de seu envolvimento naquela trama macabra. Ele ainda não sabia o que tinha acontecido com seus amigos, mas já imaginava o pior e voltar para Newdawn foi como mergulhar de cabeça na armadilha do inimigo. Leonard viria atrás dele alguma hora, isso ele tinha certeza, mas por enquanto era preciso agir e tentar entrar em contato com Ed para entender o que aconteceu e como tudo deu errado. Mesmo amedrontado, Cornelius juntou sua bagagem e correu pela avenida em busca de um táxi.

     No caminho para casa ele percebeu duas coisas. A primeira é que Newdawn havia perdido um pouco do seu brilho. A intensa movimentação da cidade deu lugar a caminhadas apressadas em meio a marcha rítmica dos soldados de Leonard. Era estranho não ver tantas pessoas nas ruas como antigamente, tudo agora parecia mais triste, quase morto. Porém, grande parte da população parecia aprovar essas novas mudanças políticas da sociedade, concordando com discursos tragicômicos que exaltavam a nação alada como uma entidade, e diziam que agora o cidadão de bem poderia andar despreocupado, sem ter medo da criminalidade, além de outros falsos benefícios provindos da silenciosa opressão. Esse foi o segundo aspecto percebido por Cornelius, enquanto ouvia as palavras orgulhosas do motorista do táxi reagindo favoravelmente a um discurso de Leonard no rádio.

     — A quanto tempo tá assim? — Cornelius perguntou enquanto gravava o discurso numa fita cassete — Esses pronunciamentos ocorrem todo dia?

     — Já faz alguns dias, e eles reprisam esses discursos algumas vezes por dia, umas três — O motorista, um gordo calvo, comentava — Agora tá bem melhor, não tem mais aqueles piratas vagabundos fazendo merda por aí e nem aqueles malandros comunistas que ficam zanzando por essas bandas — Cornelius olhou pela janela do carro, observando as redondezas do seu bairro, na tentativa de mascarar a inquietação promovida pelo medo. Os locais antes cheios de vida agora estavam vazios, abandonados nas garras daquele nefasto sistema. A única movimentação perceptível era a dos soldados patrulhando as ruas — Ninguém pode falar mais nada, tudo vira motivo pra chororó! Essa geração tá perdida mesmo!

     Após o desembarque, Cornelius arrastou sua bagagem para dentro de casa. Ele jogou a mala num canto da sala e colocou cuidadosamente a caixa sobre a mesa onde, supostamente, deveria estar o corpo robótico de Roza, eufórico demais para perceber que por baixo da manta agora tinham peças metálicas espalhadas na tentativa de simular o volume anterior. Ao olhar em volta, Cornelius percebeu que havia esquecido seu comunicador em casa, jogado no sofá, e ao pegar o aparelho descarregado, ele percebeu que sua casa estava sem energia. Pelo menos ele não havia esquecido de desligar a transmissão.

     Cornelius abriu as portas de um armário na cozinha, abrindo uma passagem oculta na parede para o porão de sua residência. Em seguida, encontrou uma lanterna nos fundos de uma gaveta, mas ao lembrar da origem das baterias elétricas do utensílio, optou por acender uma vela no bom e velho castiçal. Com cuidado, ele desceu as escadas íngremes de madeira e explorou a escuridão do cômodo secreto, tateando nas paredes em busca do painel geral da casa, com apenas a diminuta chama como orientação. A transmissão de energia foi restabelecida quando as chaves-gangorra foram encontradas. De volta à superfície, ele colocou o comunicador para recarregar e correu para fora de casa, acreditando que encontraria respostas nos jornais depositados na sua caixa de correio.

     A caixa de correio era um paralelepípedo metálico de cor vermelha com seu lado mais curto fixado na calçada em frente a sua casa. Tinha quase um metro de altura e parecia mais uma lixeira do que uma caixa de correio tradicional. Além disso, era a única da vizinhança, já que todas as outras casas tinham suas correspondências entregues diretamente em seus interiores. O motivo de Cornelius ter instalado essa coisa escarlate era o simples fato dele sempre esquecer de recolher seus jornais e revistas que recebia por assinatura. Talvez ele estivesse esquecendo de muitas coisas ultimamente.

     Ajoelhado com uma caixa de ferramentas ao seu lado, Cornelius fez o possível para abrir a caixa testando todos os modos possíveis. Ele tinha perdido a chave e estava tenso demais para procurá-la, precisava de respostas o mais rápido possível. A cada tentativa falha as mãos de Cornelius tremiam mais, chegando ao ponto de se desesperar e começar a esmurrar a caixa até amassar o seu metal vermelho. A imagem daquela figura retorcida sobre a caixa de correio desferindo pancadas chamou a atenção dos soldados de Leonard.

     — Com licença, tá tudo bem aí? — Um dos soldados disse, se aproximando. Cornelius encarou a dupla ao seu lado. Na posição em que estava eles pareciam ainda mais imponentes, vestidos com um uniforme preto onde o brasão da família ministerial se destacava em vermelho sangrento. Cada um trazia consigo um modelo de fuzil que, mesmo recolhido como as outras armas de Newdawn, ainda tinha um tamanho avantajado, como assustadoras ferramentas assassinas penduradas em seus ombros. E eram possivelmente mais jovens do que o inventor.

     — Tá sim — Cornelius respondeu, tentando manter a calma. Ele pegou novamente uma das ferramentas espalhadas pela calçada e voltou a forçar a fechadura da portinhola — Eu só perdi a chave.

     — Você pode chamar um chaveiro...

     — Não precisa, já consegui — Com um movimento rápido, a caixa de correio se abriu, derrubando no pavimento um monte de correspondências, jornais, cobranças e outros papéis endereçados, além de abrir caminhos para alguns seres rastejantes que viviam na escuridão da caixa.

     — Tudo bem, tenha um bom dia — Os soldados viraram as costas e se afastaram a passos despreocupados.

     Cornelius os encarou por um momento enquanto juntava os jornais, ele precisava aprender a lidar com o medo o mais rápido possível, aqueles agentes uniformizados estavam por toda parte.

     Ele correu para dentro de casa, descartou os papéis que não lhe interessavam e espalhou os jornais sobre a mesa da cozinha, para em seguida os organizar por ordem crescente de acordo com suas datas. Cornelius pegou os jornais mais antigos lançados nos dias após sua saída, mas não achou nada demais e os largou, espalhando as folhas de papel-reciclado sobre o piso.

     Uma manchete chamou sua atenção: "Solomon Roberts, ministro principal de Newdawn, é encontrado morto no Palácio Ministerial. O herdeiro legítimo do ministério não foi localizado." A manchete vinha acompanhada com uma foto de Solomon, com suas datas de nascimento e falecimento registradas na legenda. Na edição do dia seguinte, lia-se: "Suspeitos do assassinato de Solomon Roberts são presos. Leonard Roberts assume o cargo de ministro principal. As fotos de Edmond e July vinham logo abaixo. Cornelius não queria acreditar no que lia, ele sabia que seus amigos nunca fariam mal a uma mosca sequer. Sempre foram pessoas boas, justas e virtuosas. Agora ele pegou a próxima edição, onde a manchete denunciava: "Leonard Roberts, ministro principal de Newdawn, é acusado de censura", e na página seguinte: "Gênio ou Louco? A postura de Leonard Roberts divide opiniões."

     As demais edições não tocavam mais no assunto, e voltavam a destacar assuntos banais, como dicas de culinária, moda, críticas de cinema e futebol. Tudo parecia ter se tornado maravilhoso após Leonard assumir a principal função política de Newdawn, mas não era nada tranquilizador ter aqueles soldados armados e aqueles veículos militares circulando pela vizinhança. Um velho pensador alado disse uma vez que quando algo parece ter melhorado para um grupo, com certeza deve ter piorado para vários outros. Lentamente a liberdade morria em Newdawn, em meio ao estrondoso aplauso daqueles que fisgaram a isca da ingenuidade egoísta. Cornelius conhecia bem esse processo, era assim que a queda de todas as grandes nações começava, ele havia visto isso se repetir várias vezes durante sua experiência delirante.

     Ele levou um grande susto ao ouvir seu comunicador tocando. O aparelho havia reiniciado após ter começado a carregar. Cornelius atendeu a ligação.

     — Onde você estava!? Eu te procurei em todo lugar!? — Cornelius reconheceu de cara aquela voz que parecia tão angustiada de euforia quanto ele — Quer saber como Newdawn virou essa bagunça? Me encontra naquele bar atrás da igreja o mais breve possível. Vou te esperar.

     — Ok — Foi tudo que ele pôde dizer, antes de seu interlocutor desligar.

***

     Os dias se passaram em Newdawn, carregando consigo a beleza do marasmo cotidiano. Tudo parecia estar perfeito na cidade, pois um certo ar de tranquilidade pousou pelas ruas. Era como se uma fase ruim tivesse acabado, e o sol acolhedor das mais belas manhãs trouxesse para os habitantes de Newdawn as boas vibrações da aurora de uma nova era. Tolinhos, mal podiam imaginar as viradas reservadas para a cidade na trilha do imprevisível destino.

     No museu, o buraco na cúpula de vitral havia sido consertado. Os novos padrões coloridos impressos no vidro cristalino não eram tão bonitos quanto os anteriores, inspirados em algumas catedrais do velho mundo, mas ainda foram capazes de arrancar um sorriso satisfeito do jovem Wes Jeffords.

     Emily e Alexander estavam de volta a cidade e as patrulhas na vizinhança do Calçadão, com seus famigerados casacos azuis, suas armas penduradas na cintura e com um vínculo de companheirismo fortalecido pelo sentimentos amorosos declarados durante o feriado do dia da família. Eles não sabiam dizer se era de bom tom dois policiais se relacionarem, mas já não conseguiam viver um sem o outro.

     Mas tudo estava ainda melhor para o lado menos virtuoso da história. Pouco tempo após a iniciação do processo de divórcio, Heathcliff morreu devido a complicações decorrentes do ferimento na cabeça adquirido no ataque pirata ao zepelim. Natasha já não morava lá, havia se mudado pois a casa era grande demais para uma senhora morar sozinha, então Max ficou com a antiga residência da família Williams só para ele, e com uma reformulação completa na decoração sendo bancada pelo inocente Ernest Hammond, já que o comissário miserável não deixou nada para o seu único filho. Apesar disso, misteriosamente surgiu uma nova cláusula no testamento de Heathcliff, afirmando que seu último desejo é que July e Max se casem no final do mês, condição esta para que suas dívidas com Ernest possam ser consideradas perdoadas.

     Obviamente, essa narrativa questionável foi facilmente aceita por Ernest com uma dose da falsa lamentação de Max, juntamente com comentários fantasiosos a respeito de espíritos atormentados que não puderam descansar em paz após seu desencarne.

     No palácio ministerial, Lollipop continuava em sua condição de cárcere, restrita ao cômodo na qual foi deixada por Leonard. Ela já havia arriscado algumas tentativas de fuga. Correr em direção a porta e driblar os guardas não foi possível, eles sempre conseguiam apanhá-la e empurrá-la de volta para o interior da sala. Também havia verificado as janelas ocultas inicialmente por cortinas da cor púrpura, até era possível abrir algumas frestas, mais nada conseguia passar pelas grades, e mesmo se passasse, ainda seria difícil descer pela parede completamente lisa do lado de fora, convenientemente situada numa área de maior vigilância durante todo o dia e noite. Só lhe restou as tentativas falhas de chamar por Leonard quando ouvia sua voz ecoar através das paredes da mansão, e o silêncio frustrante que vinha como resposta.

     Por outro lado, Margareth vivia como uma verdadeira rainha. Seus dias de pirataria haviam ficado para trás, ela havia trocado o casaco de capitã por elegantes vestidos de alta costura, e as incursões pelo submundo de Newdawn por compromissos sociais onde atuava como companheira de Leonard Roberts. A nova fase na vida de Margareth lhe garantiu uma perceptível evolução estética. Agora ela se sentia mais bonita, havia mudado seu penteado, convertido os cachos loiros em madeixas lisas e caprichando na maquiagem que rendia ao seu rosto feições angelicais, mas que ainda enaltece sua imagem de decidida e provocante. Uma nova mulher! Mesmo com tudo que sempre quis, um grande amor e o dinheiro de sua família de volta, sua intuição ainda lhe dizia para tomar cuidado, e por precaução ela decidiu manter contato com Clementine e seus antigos camaradas piratas.

     Por sua vez, Leonard transparecia plenitude, como um predador se preparando para o ataque certeiro. Tudo acontecia como o planejado, e em breve nada poderia impedi-lo. Nada nem ninguém, nem mesmo o corajoso Edmond.

     No outro lado da balança, as coisas não iam tão bem. Mesmo com todos os esforços possíveis, July não conseguiu desmentir a história do último desejo de Heathcliff, e mais uma vez se viu presa no futuro matrimônio. Não adiantava dizer o quanto Max lhe odiava sem motivo, e como ele havia tentado lhe matar, e que sentia um medo repulsivo sempre que o tinha por perto, Ernest estava irredutível, em especial quando Max desmentia tudo se fazendo de bonzinho. Certa vez, em mais uma sessão de bajulação, Max apelou para o clichê de dizer que seu único crime foi amar demais.

     O pior de tudo era ter que lidar com isso sozinha. Ela não podia denunciá-lo pois tinha medo de todos os policiais serem como Heathcliff, e nem podia pedir ajuda para Emily e Alexander, eles seriam a desculpa perfeita para Max envenenar ainda mais Ernest com uma falsa ofensa sustentada por puro contragosto. Apesar disso, July decidiu que iria pedir ajuda às autoridades quando percebesse que sua vida estivesse em risco novamente, em especial após o inevitável casamento. Também não tinha o apoio de Ed para enfrentar esse momento difícil, nunca mais havia o visto nem mesmo para os treinos de muay thai, e os compromissos matrimoniais indesejados roubaram todo o seu tempo livre. Ela sabia que Ed tinha um esconderijo, um humilde apartamento alugado na vizinhança de Cornelius, mas nunca chegou a saber ao certo o seu endereço.

     Por sua vez, o motivo do afastamento de Ed era justificado pela série de cartas endereçadas repentinamente ao seu esconderijo, que na teoria ninguém deveria saber onde fica, com todas elas sendo assinadas por Max Williams. O conteúdo dessas cartas se resumia ao mero desagrado, numa clara tentativa de o afastar de July Harmond, e isso poderia se tornar algo ainda mais perigoso agora que Max estava aliado de Leonard nos seus planos malignos. Ed também recebeu cartas de Leonard que vinham com propostas e negociações monetárias, mas essas nem fez questão de tirar do envelope. Para despistar esse empecilho seria necessário um pouco mais de planejamento.

***

     — Eu não gostei! — July disse de cara feia, encarando-se no grande espelho e cruzando os braços sobre o vestido branco e desconfortável que usava. O longo vestido de noiva ficava ainda mais incômodo quando o estilista tentava o ajustar em seu corpo — Quero casar de preto.

     — Oh princesa, onde já se viu casar de preto? — Natasha, que estava lhe acompanhando nos preparativos matrimoniais, comentou ao se aproximar dela. Elas estavam na sala principal do casarão Harmond, com vários modelos de vestidos espalhados em caixas, araras e manequins. O estilista comentou alguma coisa irrelevante com seu sotaque francês caricato enquanto apertava o espartilho na tentativa de afinar a cintura, arrancando alguns resmungos de July.

     — Com que cor você se casou com o Heathcliff? — July perguntou a Natasha.

     — Branco, óbvio — Natasha respondeu com inocência.

     — E você viu como acabou, então não faz diferença! — A falta de paciência de July estava estampada no seu tom de voz, ela não via a hora de tirar aquele vestido horroroso que a fazia se sentir como um bolo de casamento cafona — E cai muito bem quando a noiva não quer casar.

     — Não é questão de querer, filha — Ernest surgiu na sala, atraindo a atenção de July e Natasha para sua postura relaxada encostada na porta do corredor — Antes era uma dívida, agora é praticamente uma promessa.

     — Ainda não acredito que sou obrigada a se casar com um cara escroto que tentou me matar só por causa da burrice de um homem morto! — July cruzou os braços novamente e virou-se para a direção contrária, evitando o olhar do pai.

     — Quer saber de uma coisa? Eu desisto! — O estilista, um rapaz loiro e alto, disse de maneira afetada, arrastando todas as suas coisas para fora da casa — Depois vocês passam na loja para me devolver esse aí, com licença — Ele apontou para o vestido que July usava e saiu, batendo a porta com força.

     — Quebra!

     De um lado, seu pai completamente iludido com o papo furado de Max, e do outro sua melhor amiga lhe encarando com olhar compassivo enquanto lhe arrumava delicadamente. Parecia como se um temporal arrasador ameaçasse desabar sobre o casarão Harmond a qualquer instante, levando tudo para longe e deixando no local uma desordem que nunca poderia ser revertida, mas July foi salva pelo gongo, literalmente.

     — Carteiro! — Uma voz masculina anunciou enquanto a campainha tocava. Os carteiros de Newdawn tinham esse hábito de anunciar a chegada de correspondências para que os residentes da cidade soubessem quando as cartas chegassem. Mesmo com a popularização dos comunicadores nos últimos anos, as cartas ainda eram um meio de comunicação deveras popular na cidade flutuante, sempre com seus papéis amarelados e escritas ou a mão, com grafias rebuscadas e curvilíneas, ou em máquinas de datilografia.

     — Oba! Chegou carta! — July comemorou, se dirigindo para a porta com as mãos segurando a bainha do vestido, mas após alguns passos foi segurada pelos ombros por Ernest, que já previa a tendência escapista da filha para fugir de situações indesejadas. Com um sorriso no rosto, Ernest balançou a cabeça em negativa, enquanto Natasha foi buscar a carta.

     — Nunca vi algo assim antes — Ao voltar, Natasha comentou a respeito da estranheza do envelope dourado com uma fita azul colada como lacre. No centro da fita havia um selo metalizado da família ministerial, com o famigerado tamanduá impresso em alto relevo — Parece importante — Ela entregou o envelope para Ernest.

     — Vamos ver o que é.

     — Antes de abrir eu posso ir ao banheiro? — July perguntou com um sorriso envergonhado no rosto. Antes mesmo de receber uma resposta, ela se apressou pelos corredores do casarão.

     — Ela não foi ao banheiro — Ernest comentou com certeza instantes depois, e junto de Natasha seguiu o caminho de July até o closet do seu quarto, onde encontrou a janela aberta e a corda de volta a seu local habitual após os reparos das últimas semanas.

     Assim, vestida de noiva, July Harmond fugiu de casa e foi ao cinema.

***

     Exatamente duas horas depois, ao sair de uma sessão de "Psicose", um clássico do suspense, July decidiu dar umas voltas pela cidade. Ela ainda estava impaciente para voltar para casa, simplesmente queria evitar aquele compromisso indesejado. Seu traje matrimonial e sua expressão triste atraiu olhares curiosos pela rua, e ela andava apressada arrastando o vestido refinado, perdida em seus pensamentos. Por fim, July decidiu entrar numa igreja, onde ninguém estranharia a presença de uma noiva insatisfeita.

     July sentou-se num banco ao centro da nave e se ocupou na sua meditação. Durante sua reflexão ela começa a perceber detalhes perturbadores que a fazem ter ainda mais medo de Max Williams. Ela percebeu que Max tinha comportamentos semelhantes aos de Norman Bates. Ambos se passavam por bons rapazes, reservados, confiáveis, mas eram verdadeiros monstros por cima de qualquer suspeita, lobos disfarçados como cordeiros. Porém, não havia motivos para justificar essa nuance de personalidade sombria de Max, ela sabia que não tinham traumas ou abusos em seu passado, e segundo os detalhes fornecidos por Natasha, nem mesmo o ódio gratuito pelo pai parecia servir de pretexto, era simplesmente sociopatia. Se por acaso o pior acontecesse, ela pelo menos gostaria de entender de onde vinha a obsessão de Max por ela.

     July voltou para casa trazendo consigo muito mais dúvidas do que certezas. Ao atravessar pela porta principal, encontrou seu pai com a mão na cintura e expressão de autoridade e, ao seu lado, Natasha tentando fazer o mesmo de uma forma engraçada, da mesma forma que uma criança faria.

     — Então... — July pensou rapidamente numa desculpa, o resultado foi a mais tosca possível — O que tem para o jantar?

     — July... — Seu pai a repreendeu, ainda sério.

     — Tá bom, me desculpe. É que tá tudo tão complicado ultimamente — Ela disse cabisbaixa, coçando o braço e encarando o piso da casa — Eu tô me sentindo muito sozinha.

     — Você não está sozinha, minha princesa — Natasha disse se aproximando e lhe abraçando, tentando lhe consolar com seu comportamento maternal. Já foi o suficiente para fazer July abrir um sorriso.

     — Tudo vai ficar bem no final — Ernest juntou-se ao abraço, o que deixou July ainda mais feliz. Ela tinha certeza que aquela poderia ser a família perfeita, ela, seu amado pai e Natasha, a pessoa mais doce do mundo.

     — O que tinha naquela carta chique? — July perguntou, curiosa, na tentativa de melhorar os ânimos.

     — Nada demais, só quatro convites para o baile de aniversário do ministro Solomon Roberts — Ernest respondeu.

     — Mentira!? — July caminhou alguns passos e encarou seu pai, bastante surpresa. Ela passou a realizar diversas perguntas de modo agitado, onde seu tom de voz quase transformava suas perguntas em exclamações — É o evento mais importante de Newdawn! Não é qualquer um que recebe convites!

     — É verdade Ernest, precisamos nos preparar, vai ser uma noite importante. E esse ano a temática vai ser baile de máscaras — Todo ano, o baile de aniversário do ministro Solomon Roberts era planejado com uma temática diferente, mas que geralmente só influenciava no "dress code" dos convidados.

     — Vocês têm razão, e vai ser logo na semana que vem.

     — Espera aí, nós temos quatro convites e três pessoas aqui. De quem é o quarto convite? — A curiosidade de July foi saciada por uma resposta que drenou todo o seu ânimo para o evento como uma sanguessuga.

     — É para o Max Williams — A resposta de Ernest não lhe trouxe surpresa alguma. July já esperava que Max receberia um convite, já que anteriormente ele foi definido como o suposto melhor amigo de Leonard. Mesmo assim, ela foi tomada pela decepção.

***

     Essa semana e a semana seguinte passaram num piscar de olhos em meio aquele cotidiano incomum. O anúncio do baile de aniversário do ministro principal gerou o típico burburinho na sociedade, criando uma verdadeira ansiedade coletiva. Os convidados, uma seleta lista restrita pelo poder aquisitivo e conexões particulares de seus integrantes, viraram a pauta do momento em programas de fofocas, cujos assuntos abordados variam desde os novos nomes famosos escalados na edição deste ano até às temáticas da celebração, que só é revelado para o grande público no dia marcado.

     De fato era um evento importante, que redefinia até mesmo os rumos do comércio local nas vésperas de sua data. Os alfaiates mais conceituados de Newdawn tinham suas agendas cheias em questão de minutos por aqueles que não conseguiram a tempo uma vaga nas agendas dos estilistas do momento, e surgia um aumento considerável na venda de tecidos, joias e demais acessórios de vestimenta, o que provocava a alegria dos modistas e comerciantes do Calçadão.

     Mesmo sabendo que chegaria como noiva de alguém que detestava, July não queria fazer feio, seria a primeira vez que frequentaria um evento tão importante, e por isso as estressantes sessões de escolhas de vestidos de noiva foram substituídas pela busca pelo traje ideal para a festa. A vontade de inovar e usar algo ousado era grande, mas o clássico combinava mais com seu estilo pessoal. No fim, o traje escolhido foi um vestido bege claro, quase rosa, com um corpete bem justo em sua silhueta. A parte superior possui alças num tom dourado que pendiam sobre seus ombros, amarradas no peito por um laço. Já a saia misturava os mesmos tons de bege, rosa e dourado nas camadas de seus babados volumosos. Por fim, o visual era completado pelos acessórios, um par de sapatilhas de salto alto com meias beges tão grandes que passavam de seus joelhos, luvas da mesma cor com laços, um colar de pérolas brancas, uma fita dourada para amarrar no cabelo e, o principal, uma máscara de seda rosa com uma pluma presa na lateral direita. July ainda pensou em colocar uma cartola, mas desistiu ao pensar que seria muito exagerado. E após a escolha do traje, July passou horas em seu quarto se embelezando como uma boneca em seu mundo de plástico e imaginação.

     — Anda logo, July! — Seu pai a chamou do andar de baixo — Assim nós vamos nos atrasar!

     — Já vou! — Ela deu uma última olhada no espelho, avaliando sua aparência e percebendo que estava perfeita, além de dar os últimos retoques na maquiagem, algo bem básico já que ficaria encoberta pela máscara. Era a primeira vez em dias que ela se sentia tão feliz. A aparência conceitual de sua vestimenta havia elevado sua autoestima.

     Ela desceu as escadas e saiu de casa, encontrando seu pai, Natasha, e o detestável Max Williams na calçada, dispostos junto ao automóvel sennita de Ernest. Todos estavam muito bem vestidos, em especial Natasha num vestido vermelho digno da Rainha de Copas. Até mesmo Ernest, que nunca saia da formalidade básica, decidiu experimentar um reluzente terno dourado.

     — E aí, como estou? — July perguntou enquanto se aproximava, dando a mão a seu pai e girando a saia para se exibir. Ernest e Natasha ficaram encantados com o seu visual da garota, enquanto Max parecia indiferente a sua presença, nem sequer a encarando. Isso deixou July um pouco mais relaxada.

     — Perfeita como uma verdadeira princesa — Ernest respondeu com um sorriso no rosto — Vamos, quero chegar antes que acabem as vagas para estacionar.

     — Não esqueçam suas máscaras, essa noite vai ser muito divertida! — Natasha disse com animação enquanto entrava no carro. Era hora de relaxar e se divertir, e, por enquanto, tudo parecia bem e parecia permanecer assim por um tempo.

***

     A agitação havia se formado bem cedo no entorno do Palácio Ministerial. Um tapete vermelho foi montado na praça em frente a mansão, e uma multidão de jornalistas e paparazzis se aglomeravam ali, em busca do ângulo perfeito para registrarem as celebridades que passariam por aquele tapete em breve.

     Ao cair da noite, os primeiros convidados começaram a chegar, invocando a saraivada de flashes fotográficos que vinham acompanhados de vivas e saudações. Porém, no último andar da mansão, a calmaria ainda resistia. A algazarra da movimentação lá embaixo não passava de ecos abafados que corriam pelas paredes da casa, rumo a grande sala de jantar. A refeição estava posta, mas só haviam duas pessoas na grande mesa. Leonard Roberts e seu tio Solomon, um em cada ponta da mesa.

     Solomon devorava sua refeição de maneira apressada e sem tirar os olhos do prato, um hábito que enjoava Leonard e denunciava que alguém havia faltado às aulas de etiqueta. Por sua vez, Leonard nem tocava na comida, permanecia com as mãos baixas, escondidas sob a mesa e ocultas pela toalha. Seu olhar estava fixo em Solomon, um homem gordo e grisalho, rude, bruto, e desprezível.

     — Não vai comer? — Solomon finalmente mirou seus olhos azuis rumo ao sobrinho.

     — Estou sem fome agora, qualquer coisa eu como lá embaixo — Leonard respondeu com cordialidade.

     — Você que sabe — Solomon voltou a se concentrar em seu prato como se o bife fosse criar vida e fugir — Acha que o Edmond vem?

     — Com certeza, o maior "arroz de festa" da família.

     — Já passou da hora daquele moleque idiota começar a ter mais comprometimento com sua herança ministerial — Solomon parou de comer por um momento e ficou pensativo, murmurando palavras que não seriam ouvidas pelo garoto do outro lado da mesa — Sabe, eu tenho tido uns sonhos estranhos. Sinto que não vou durar muito, e queria deixar o Edmond preparado para quando eu não estiver mais aqui. Essas coisas me preocupam...

     Solomon foi pego de surpresa por uma ação imprevisível. De repente, Leonard se levantou rapidamente e revelou o objeto que tanto tentava esconder embaixo da toalha de mesa, um revólver. Leonard apontou a arma para Solomon, que arregalou seus olhos como reação imediata, e disparou. O corpo de Solomon despencou sobre a mesa, com seis perfurações em seu peito e uma expressão assustadoramente atônita de espanto no rosto.

     — Não se preocupe, tio — Leonard disse, guardando o revólver — Vai ter outra pessoa bem mais competente para ocupar o seu lugar.

     Foi fácil perceber a aproximação da empregada através do som de seus sapatos batendo no chão. Em instantes, a silhueta da moça surgiu na porta.

     — Senhor Leonard! — A empregada entrou correndo na sala de jantar, morta de preocupação — Eu acho que ouvi uma coisa estranha, está tudo bem?

     O fôlego desapareceu dos pulmões da empregada quando ela percebeu o corpo falecido de Solomon, com comida e sangue espalhados sobre ele. A face do pânico tomou conta da garota, e seu corpo estremecia enquanto juntava forças para dissipar suas perturbações num grito estarrecedor. Porém, antes que isso pudesse acontecer, Leonard aproximou-se dela com uma placidez muito mais assustadora do que aquela cena grotesca.

     — Está tudo bem — Leonard aproximou-se cada vez mais dela de forma intimidadora e a encarou por um momento com sua feição sombria, fazendo-a reprimir sua perplexidade no interior de si mesma e permanecer em silêncio. Enquanto isso, alguns guardas entram na sala de jantar — Cuidem dela e tranquem tudo, tenho uma festa para ir — Leonard saiu do cômodo, e as grandes portas de madeira negra se trancaram logo em seguida.

***

     Lá embaixo, os convidados que passaram pela recepção jornalística no tapete vermelho logo chegavam ao salão de festas do Palácio Ministerial. O cômodo amplo estava decorado como um palácio vitoriano, com cada detalhe da composição pensado para agregar a temática baile de máscaras. A promessa era de realizar uma noite gótica e romântica.

     Os garçons já circulavam entre as mesas servindo bebidas e petiscos, enquanto a banda fazia os últimos testes de som. Entre eles, na ponta do palco Emily dava os últimos retoques na maquiagem enquanto conversava com Alexander. Ela iria realizar novamente sua façanha de se infiltrar como cantora na festa, e precisava estar preparada para agir caso necessário, ou para parecer convincente em seu disfarce. Esta noite, seu traje era composto por um vestido púrpura sem alças e com uma abertura lateral na saia, e uma máscara diminuta da mesma cor em seu rosto, que lhe dava um aspecto de super-heroína.

     — Hoje só tem gente fina, só tem gente elegante, autoridade... — Ela comenta enquanto observa os convidados chegando no salão com suas vestimentas luxuosas de alta-costura — Cada mergulho é um flash!

     — As pessoas mais importantes de Newdawn vão estar aqui hoje — Alexander acompanhou o olhar de sua companheira através do cenário — Está nervosa?

     — Nenhum pouco — As palavras de Emily não transpareciam confiança — Mas é bom ficar atento aos meus sinais, tudo pode acontecer numa noite como essa — Alexander assentiu.

     A festa começou, de fato, instantes depois, quando o salão foi tomado pela confraternização dos convidados. Quando July finalmente chegou, ela ficou encantada com as luzes coloridas que dançavam pelo salão escuro sobre a movimentação sofisticada dos presentes. A voz cativante de Emily no comando da banda embalava os passos animados dos dançarinos mascarados conduzidos pela suavidade do champanhe que cintilava em suas taças cristalinas, eles dançavam como se estivessem possuídos pela magia de um ritmo que festejava a mais pura malandragem do luar. Algo no ar dizia que coisas misteriosas poderiam acontecer.

     Por cima da música, dança, dos comes e bebes, e da movimentação, ainda existia um grande questionamento: onde estaria o anfitrião da noite e seus sobrinhos?

     July queria aproveitar o momento, provavelmente ela nunca mais iria participar de um evento parecido, e não tinha como aproveitar empoleirada nos braços de seu pretendido. Mas foi fácil se livrar das garras de Max Williams, só foi preciso o momento certo para que Natasha puxe seu filho para o centro da pista de dança, bem longe de July.

     — Ei, pera aí! — Max resmungou quando Natasha o puxou pelos braços e começou a girar com ele pelo salão, esbarrando em alguns convidados — Assim você vai ficar tonta! Tá me matando de vergonha!

     — Essa é a minha música! E eu não vou parar! — Natasha respondeu tomada pela animação, sem se importar com o que seu filho pensava dela. Talvez ela nunca conseguiria ser feliz caso se importasse com a opinião alheia, ainda mais quando vinda de alguém tão indiferente a ela.

     Finalmente livre, July respirou aliviada e pôde se aventurar pelo salão, e a primeira coisa que fez foi disparar rumo ao bufê e degustar as delícias da culinária exclusiva dos eventos da alta-sociedade. Ela deliciou-se com as guloseimas chiques e os petiscos requintados que ela nunca tinha visto antes. Depois, enquanto dançava e explorava o ambiente, July pôde reconhecer alguns amigos, mesmo eles estando mascarados. Wes estava junto de um grupo de aventureiros, e com ele July percebeu a presença de Margareth em sua nova fase de fashionista empoderada. De certa forma, era perturbador tê-la por perto após os eventos daquela noite fatídica, e logo em seguida July reparou que nunca mais havia visto Lollipop, e ela nem mesmo havia sido convidada para aquela festa, apesar de ocupar o posto de namorada de uma das figuras mais importantes da sociedade newdiana. Mas tudo isso não passava de uma colcha de retalhos conspiracional sem grandes fundamentos.

     Logo depois, July encontra Alexander em meio a multidão. Embora adepto ao dress code do evento, estava claro que Alexander exercia ali sua função como segurança da festa, pois ele não tirava os olhos do palco, onde Emily arrebatou sua plateia com mais uma performance musical arrasadora. Mesmo assim, July decidiu ir até ele e cumprimentá-lo. Em seu caminho, ela esbarrou num moço vestido com uma capa escura e uma máscara negra e pontuda que cobria todo o seu rosto, com formato semelhante a uma máscara de médico medieval da época da peste negra.

     — Perdão — Ela se desculpou e seguiu seu caminho, ignorando o rapaz e seu excêntrico figurino.

     — Senhorita — Ele a chamou, fazendo July lhe encarar — Não lembra de mim?

     A máscara que July usava não conseguiu encobrir sua expressão de confusão. Aquela pergunta não fazia sentido, não tinha como ela reconhecer aquele homem com uma máscara como aquela. Mesmo assim, ela continuou o encarando, tomada pela curiosidade promovida por aquele cavalheiro mascarado. Um largo sorriso se formou no rosto de July após a figura misteriosa retirar sua máscara, pegando-a pela ponta do bico, e revelar sua identidade. Por trás do adereço, havia um sorriso radiante que ela conhecia muito bem.

     — Ed! — Ela gritou enquanto pulou nos braços do amigo para um abraço — Que saudade! Por onde você andou?

     — Eu andei ocupado, e recebi cartas estranhas do Max — Ed olhou em volta por um momento — Quis ficar distante pela sua própria segurança.

     — Aconteceu tanta coisa de uma hora para outra. Eu vou me casar! — July segurou as mãos do amigo, na esperança de que, de alguma forma, Ed tivesse uma saída para seu dilema.

     — Eu fiquei sabendo, mas não se preocupe, nós vamos pensar em alguma coisa depois — Não era a resposta que July esperava, mas já foi o suficiente para deixá-la mais tranquila — Nem que eu tenha que bolar uma engenhoca pra te fazer sumir da igreja. E se tudo der errado você foge e vira freira.

     Então, os dois grandes amigos riram juntos, como se nada mais importasse, naquela típica gargalhada despreocupada que apenas amigos muito íntimos podem compartilhar. Mais abraços foram dados, assuntos postergados foram postos em dia e a saudade de Cornelius entrou em pauta. Bons amigos nunca deveriam ficar distantes, é insuportável ficar longe das pessoas que lhe fazem bem, que servem como um refúgio de todos os seus problemas, pessoas a qual se ama de verdade. São essas tais pessoas que superam as dificuldades e fazem a vida valer a pena.

     Quando Emily terminou de cantar a última música, e uma onda de aplausos retumbou pelo salão, as luzes apagaram de súbito, gerando uma torrente de estranhamento na escuridão repentina. Uma luz acendeu-se em seguida, concentrando seu feixe no palco, onde Leonard havia surgido misteriosamente, capturando o foco da atenção de todos os presentes. Alguns suspiros de susto puderam ser ouvidos nesse momento. Até mesmo Emily, que agora estava ao lado dele, se assustou, sem fazer a menor ideia de onde ele havia vindo. Era como se Leonard tivesse se materializado no ar.

     — Senhoras e senhoras! — Leonard anunciou ao se aproximar do microfone principal, jogando Emily discretamente para escanteio enquanto a encarava de cima a baixo com um sorriso no rosto. Essa ação arrancou um instante de risos da plateia, demonstrando o quanto Leonard era popular em meio a elite da cidade. A reação de Emily se resumiu em constrangimento — Venho em nome de meu amado tio pedir desculpas por ele não poder estar presente conosco essa noite. Solomon sentiu-se mal enquanto se arrumava e decidiu restringir-se ao seu quarto, mas deixou claro que a festa pode continuar, principalmente porque algumas pessoas aqui passaram o dia todo no salão de beleza e tem que fazer valer a pena o tempo perdido — Mais risos fizeram-se presentes com essa piada infame.

     — Cadê o Ed!? — Uma voz feminina gritou do fundo do salão, alta o suficiente para ser ouvida por todos.

     — Boa pergunta — Leonard riu de si mesmo, curvando o corpo e abrindo um sorriso largo como se tivesse dito a coisa mais engraçada do mundo, e sendo acompanhado pelos convidados entusiasmados pela sua presença e carisma — Enfim, hoje a noite é de alegria. Vamos nos divertir! — Leonard foi saudado por aplausos quando terminou seu pronunciamento. Mais luzes acenderam sobre o palco, enquanto outras menores surgiram ao longo do salão. Mesmo assim, no geral, o espaço continuou escuro.

     Aquele estranho pronunciamento do irmão encheu Edmond de desconfianças, e a dose de deboche conseguiu lhe aborrecer, mas ele preferiu ignorar isso por hora e aproveitar a companhia de July depois de tantos dias sem vê-la. Por sua vez, July não pareceu nem um pouco surpresa com a cena que presenciou, era de se esperar uma situação assim mais cedo ou mais tarde naquela noite, em especial por causa da popularidade que Leonard possuía no ciclo social da família ministerial.

     Enquanto isso, no palco, Leonard sussurrou o título de uma música dramática no ouvido de Emily e deu um toquezinho nos seus braços antes de lhe entregar o microfone e a atenção do público.

     — Manda ver! — Ele disse para a cantora e se dirigiu a um espaço na extremidade da plataforma, onde Max Williams lhe esperava junto de um garçom que oferecia bebidas a um grupo de rapazes.

     Ao sinal de Emily, a banda começou a tocar os primeiros acordes soturnos de uma regravação em jazz do clássico gótico "Bring Me To Life", fazendo a plateia se animar novamente e recomeçar suas danças embriagadas naquele salão agora escurecido. Mesmo com a perceptível falta de luminosidade, Emily ainda pôde reconhecer uma movimentação estranha em meio a animação dançante.

     Na penumbra, dois guardas se aproximaram de Ed e July pela retaguarda, cochichando ameaças em seus ouvidos e forçando-os a permanecer em silêncio e cooperarem, com armas apontadas discretamente para suas costas. Ed poderia se livrar daquela situação facilmente, mas quando encarou July ele percebeu o seu desespero. Diferente de Ed, que sempre estava alerta e preparado para qualquer coisa, ela foi pega desprevenida, estava trêmula, segurando um choro provocado pela angústia de ter uma arma apontada contra seu corpo. July encarou Ed com tons de súplica misturados com medo. Compadecido pelo seu próprio receio de fazer alguma besteira, Ed apenas abaixou a cabeça, derrotado. Com empurrões bruscos, os guardas os conduziram até uma passagem bloqueada nos fundos do salão, onde vários outros guardas estavam posicionados em frente. Uma porta secreta camuflada na parede se abriu quando um dos guardas apertou um botão escondido na lâmpada próxima, deveria ser um tipo de scanner ativado pela impressão digital.

     Emily assistiu a essa cena de sua posição privilegiada, enquanto conduzia a música de forma magistral, sem perder o ritmo de seu canto ou o alcance das notas. Os convidados não repararam, todos estavam vidrados em sua performance e alguns já pareciam alterados pela bebida, o que a deixou ainda mais aflita. Discretamente, durante o refrão da música, ela fez um rápido movimento de olhos para Alexander, um de seus sinais secretos para se comunicar durante as missões, lhe indicando a direção de suas suspeitas. Após captar os sinais de sua companheira, Alexander olha em volta e percebe os guardas arrastando July e Ed para a passagem obstruída, atravessando pela porta quando os guardas da frente abrem caminho. Confiante em sua autoridade, Alexander caminha até lá, exigindo satisfações sobre a reclusão daqueles jovens, mas tudo que recebeu foi um soco na boca do estômago que fez seu corpo curvar-se e se contorcer. Outros guardas o agarraram e o empurraram pela mesma passagem.

     Um alerta ainda mais forte soou na mente de Emily. Ela queria largar a banda e correr até lá, abordar os guardas e saber o que estava acontecendo, quem sabe até acionar suas autoridades superiores caso necessário, mas decidiu não abandonar sua posição acima do palco naquela noite, o show precisava continuar, e problemas maiores deveriam ser evitados por enquanto. A porta secreta fechou-se, e a festa transcorreu como se nada tivesse acontecido, perturbando constantemente a cantora com suas dúvidas e angústias.

***

     Quando saíram do campo de visão dos convidados da festa, os guardas passaram a conduzir Ed e July com mais brutalidade, com impulsos e pancadas. Ainda com as armas apontadas em suas costas, suas máscaras foram arrancadas e eles foram levados até um elevador que desceu pelos andares subterrâneos da mansão por alguns momentos. Em seguida, a dupla foi arrastada através de um bizarro corredor.

     O local era estranhamente escuro, iluminado por luzes verdes opacas. Toda a extensão daquele corredor abafador era recoberta por grossas placas metálicas que providenciavam resistência acústica no setor, eles não sabiam ao certo quantos andares haviam descido, mas não conseguiam mais ouvir nenhum ruído vindo da festa. No teto era possível reconhecer uma infinidade de canos metálicos cuja circunferência variava de espessura e diâmetro, e o som do vapor correndo veloz pelo interior do encanamento provocava a sensação singular de submersão. E o local parecia não ter fim, se projetando por incontáveis metros em meio a pressão subterrânea.

     Eles foram guiados pelos guardas apressados pelo corredor por aproximadamente meia hora, onde nenhuma palavra sequer foi dita, apesar do receio a respeito de seu destino martelar nas suas consciências. À medida que seus passos ecoavam cada vez mais alto pelo piso metálico, eles perceberam uma leve inclinação se acentuar naquele túnel, além da sensação térmica esquentar levemente. Era como descer lentamente por um declive vindo da superfície da terra até o inferno.

     Por fim, luzes azuladas foram percebidas quando o limiar do corredor surgiu em meio às trevas calorosas. Eles haviam chegado numa ampla sala semicircular, por onde o corredor se conectava pela direita. Na área da circunferência, era possível ver as aberturas para outros quatro corredores, com o último sendo muito mais largo que os demais, e tomado por luzes amarelas. Do outro lado, em meio às tubulações que se projetavam na única parede reta, haviam cinco aparelhos semelhantes a grandes cápsulas dentro de cilindros largos. Tais objetos logo foram reconhecidos por Ed como as cápsulas de fuga de Newdawn, máquinas projetadas para serem uma alternativa para a sobrevivência de um seleto grupo da elite caso alguma crise ameace o funcionamento da cidade, mas que até então acreditava ser uma mera lenda urbana.

     Cada uma das cinco cápsulas cilíndricas tinha pouco mais de um metro e oitenta centímetros de altura, e era larga o suficiente para comportar confortavelmente uma pessoa sentada no banco que havia em seu interior, afixado na parede dos fundos. Eram revestidas por metal negro e resistente, com uma placa de vidro onde deveria ser sua entrada. Dentro da cápsula, ao redor do banco, havia um conjunto de alças e cintos como as travas de segurança de um carrinho de montanha russa.

     Os guardas largaram July e Ed sobre o piso no centro da sala e se posicionaram de modo a bloquear todas as possíveis rotas de fuga.

     — Ei! — July reclamou ao se colidir no piso levemente aquecido.

     — Se machucou? — Ed a encarou enquanto apoiava o peso de seu corpo sobre os ombros, na tentativa de se levantar. Porém, o som das armas se desdobrando o paralisou. Ao seu lado, July apenas balançou a cabeça em negativa. Ambos permaneceram caídos no chão.

     Eles permaneceram imóveis enquanto duas pessoas se aproximavam deles vindos do corredor amarelo. Ao reconhecer aquele par de sapatos polidos parado à sua frente, Ed levantou seu olhar e encontrou Leonard com o famigerado sorriso sádico estampado em seu rosto. July fez o mesmo, percebeu que Max Williams estava logo atrás. Ambos pareciam muito satisfeitos, como aranhas caminhando por suas teias pegajosas até seu jantar aprisionado.

     — Olha só, se não é o meu querido irmãozão Edmond — Leonard disse com sarcasmo, abaixando-se para encarar Ed nos olhos.

     — Sabia que isso era coisa sua — Desta vez, Ed manteve sua voz controlada e sua postura firme, mesmo naquela posição de desvantagem — Que lugar é esse?

     — Essa é uma das galerias subterrâneas de Newdawn, vinda diretamente da fonte central da cidade — Leonard levantou-se e andou em volta, encarando os canos retos correndo pelo teto e as paredes — Elas conectam todos os setores da cidade, juntamente de todos os prédios públicos e o principal deles, a Torre de Comando. Você ficaria surpreso se descobrisse para que ela serve de verdade, mas até agora ninguém teve coragem de ativá-la — Uma risada maligna ecoou pelo ambiente — Pelo menos não até agora.

     — Pouco importa! — Ed interrompeu o relato alucinado do irmão — Me diz! O que estamos fazendo aqui!?

     — Nada demais — Leonard se virou e o encarou — Só acho que esse é o momento adequado para assumir meu papel de vilão dessa história e relatar os meus planos como qualquer antagonista faria — Leonard encarou Max e eles riram juntos por um momento — Mas, pensando bem, porque eu contaria os meus planos para você chegar e estragar tudo? Sabe, às vezes eu me impressiono como sempre tento me livrar de você e você sempre acaba voltando — A voz de Leonard encheu-se de deboche nesse momento — Edmond Roberts! O menino de aço! Metade homem, metade máquina! O invencível! — Mais risadas se espalharam pela sala, agora acompanhadas pelos guardas, mas Ed não achou a menor graça nas palavras cruéis de Leonard, e muito menos July — Eu não vou te contar sobre o que eu vou fazer, prefiro te contar sobre o que eu já fiz, e sei que você não é burro para precisar de discursos explicativos — Ele se aproximou novamente de Ed — Agora, por gentileza, me fala sobre os seus amigos, Ed.

     — O que tem eles!? — Ed gritou, esforçando-se para não perder a cabeça e fazer alguma loucura imprudente. Agora haviam várias armas apontadas diretamente para ele e para July, não era hora de vacilar.

     — Eles são tão legais, eu sempre quis ter amigos assim — Max quase se engasgou com sua risada ao perceber o quanto Leonard era descarado — Acho que nunca te contei, mas você era meu melhor amigo. Quando isso mudou? Bom, voltando ao assunto, me fala sobre o Cornelius — Ed permaneceu atento às sentenças que Leonard narrava com tranquilidade, enquanto cada uma delas deixava July ainda mais nervosa e ansiosa. Ela tinha fé que Ed daria um jeito de sair dessa situação, mas a cada palavra de Leonard essa certeza ficava ainda mais distante e intangível — Pobrezinho, sofreu tanto.

     — O Cornelius tá bem longe daqui agora! — July não aguentou, e acabou se intrometendo na pseudoconversa familiar dos irmãos Roberts. Mais uma vez, Leonard apenas riu. Ed pensou em repreender a amiga, mas desistiu ao perceber o tom vacilante na sua voz.

     — Eu realmente queria ter tido mais contato com ele, parecia uma boa pessoa. Eu digo o mesmo sobre você, a adorável senhorita Harmond — Leonard se aproximou de July enquanto falava. Ele segurou firmemente o rosto da garota e o analisou friamente antes de jogá-la para trás e voltar para junto de Ed, não sem antes envolver suas mãos no colar de pérolas que ela usava e o arrebentar com um puxão. As pérolas cintilaram pela sala enquanto se espalhavam — Lollipop me falava muito sobre você.

     — O que você fez com ela?! — July respirou fundo enquanto se recompunha do susto, passando suas mãos pelo pescoço irritado pelo barbante do colar. Sua pergunta desesperada foi simplesmente ignorada.

     — July! — Ed encarou o irmão — Seu monstro!

     — Calma aí, garotão! Ainda não acabamos. Me fala um pouco sobre aqueles policiais, Emily e Alexander. Eles parecem ser ótimas pessoas. Também tem aquele bonitão do Wes Jeffords, e aquela bruxa esquisitona de Myth — Leonard contou nos dedos para ver se não havia esquecido ninguém — Também tinha a Roza, né? Uma garota tão bruta que nem parecia humana, mas essa teve sorte de morrer antes de entrar no meu caminho, ou não.

     — Para de enrolar, Leonard! Diz logo onde você quer chegar! — Agora Ed parecia convicto em fazer o possível para escapar dali com segurança junto de July, apesar do medo que crescia no seu interior. Quantas pessoas Leonard havia prejudicado por causa de sua cobiça desenfreada? Aquilo já havia ido longe demais — Eu posso te dar tudo que você quiser! Se for poder, a gente pode negociar. Mas, pelo amor de Jah, deixa a July ir embora. Isso é entre eu e você! Ela não tem nada haver com isso!

     — Muito pelo contrário, caro Edmond — Leonard o encarou com seu olhar penetrante — Ela já sabe demais sobre nós. Além disso, seria muito fácil te trazer aqui e tirar de você cada gota de juízo que você tem nesse seu espírito virtuoso. Eu já te tirei do sério muitas vezes, ela mesmo viu naquele dia no interior. Já perdeu a graça. Eu não quero mais tirar sua postura de príncipe encantado, não quero mesmo. O que eu quero é te tirar aquilo que você mais ama. Acho que essa é a sua hora de agir, senhor Williams — Leonard ordenou, sem nem ao menos desviar o olhar para encarar seu comparsa.

     Max Williams alongou os dedos enquanto se aproximava de July a passos rápidos, abrindo e fechando suas mãos com movimentos ritmados. Tomada pelo desespero, July tenta fugir, enquanto grita por ajuda, mas Max foi mais rápido e a agarrou. A garota se debatia nos braços de Max enquanto seu raptor a arrastava em direção às cápsulas de fuga, e em meio aos gritos amedrontados de July, uma única palavra se repetia mais e mais: Ed!

     Ed não sabia o que fazer, os guardas agora tinham todas as suas armas apontadas para ele, e prontas para serem disparadas. Ele só ficou parado, ajoelhado naquele cômodo subterrâneo, incapacitado, enquanto o amor da sua vida era levada pelos demônios que assombravam o seu sono. Fim de jogo, ele perdeu! Enquanto isso, Leonard parou de encarar o irmão, e sorriu ao perceber a imobilidade estampada no semblante derrotado de Ed, então ele virou-se para apreciar Max pôr em prática a parte mais importante de seus planos. Uma visão há muito cobiçada.

     Um dos guardas puxou a alça na base da cápsula e uma porta retangular abriu-se para cima, destacando a parte de vidro. July foi jogada para dentro, caindo sobre o banco. Agora lágrimas corriam pelo seu rosto enquanto encarava Max, fitando cada detalhe na face daquele monstro em forma de menino.

     — Max, por favor me diz... — Suas palavras saíam arrastadas pela garganta rouca de tanto gritar — Por que você é assim comigo? Por que você é tão obcecado por mim?

     — Não é óbvio? — Max respondeu com um sorriso de ironia enquanto se aproximava da cápsula — Eu sou um cara mal! — Por um instante, July pareceu reparar algo incomum em Max. Havia uma atmosfera de maldade sobrenatural sobreposto à sua postura vilanesca, e ele parecia tomado por uma entidade maligna que transcendia os limites da fixação e da loucura humana.

     Max puxou a alça com força e fechou a cápsula, aumentando ainda mais o desespero de July, que voltou a gritar enquanto batia seus punhos contra o vidro. Ed também foi tomado pela histeria, e começou a vociferar pedidos de desculpas para July enquanto implorava com ameaças para que Max a soltasse daquela prisão metálica. Num impulso, Ed levantou-se e disparou contra Max, mas foi logo imobilizado pelos guardas. Em vez de balas, Ed foi derrubado com socos e joelhadas, acabando caído sobre o piso com três guardas imobilizando seus movimentos, e voltou a murmurar seus pedidos de desculpas para July enquanto a encarava cheio de súplicas.

     — Que desprezível... — Max Williams caminhou até um painel de controle acoplado na parede. Luzes começaram a piscar acompanhadas pelo som de sirenes quando ele apertou um grande botão vermelho.

     — July! Me desculpa! — Os olhares de July e Ed se encontraram pela última vez. Agora ela trocou seu desespero pela compaixão silenciosa, encarando Ed com sua mão pressionada sobre o vidro. Então, ela sumiu quando a cápsula desceu através do tubo metálico com grande velocidade — July!!!

     Leonard ficou ainda mais satisfeito, e parabenizou seu cúmplice com tapinhas no ombro quando se aproximou dele. July estava fora do caminho e Ed estava caído no chão, controlado pelos seus guardas como um animal ferido, e derrotado, sem esperanças. Tudo estava como planejado.

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