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Depois de meia-hora de carro, algumas horas de avião e uma pernoite em um hotel reservado por terceiros, Li pegou um táxi até o centro da cidade. Aquela era a primeira vez dele na Eurásia e a mudança de continente e clima o obrigaram a vestir uma blusa leve para barrar a brisa gélida.
Desceu do táxi em um ponto tranquilo, a poucos quarteirões do frenesi do comércio e próximo a prédios de serviços administrativos, com estruturas artísticas e jardins planejados. Logo em frente, a construção que procurava tinha dois andares de paredes altas com pinturas abstratas e coloridas e uma varanda gigante cercada de pilares brancos.
Li subiu os poucos degraus até as portas duplas de madeira, abertas para receber qualquer um — ou nem todo "qualquer um" — e se dirigiu ao recepcionista no centro do saguão, que estaria vazio se não fosse por uma ou outra pessoa transitando pelo local. O tamanho do lugar aliado ao piso de mármore escuro causava o efeito irritante de eco a cada passo.
— Bom dia! Em que posso... — O recepcionista começou a dizer, antes de ser interrompido por um toque no ombro vindo de alguém próximo a ele, que se levantara de uma cadeira atrás do balcão.
— Esse é o meu — disse o outro homem, cujo olhar entusiasmado deslizou do colega para Li. — Vem comigo, temos muito a conversar enquanto o tempo corre! — A voz dele continha mais empolgação do que urgência.
Li o seguiu desconfiado. A princípio, supôs que fosse algo como um recepcionista particular dos alquimistas — o rosto jovial poderia indicar inexperiência —, mas o comportamento e convite para conversar demonstravam se tratar de um dos próprios — ou alguém impertinente, ou ambos. Precisava ter em mente que, quando se tratava de um membro daquele grupinho, nunca se podia confiar no visual para definir a idade.
O "alquimista" o guiou até um escritório onde uma porta corrediça de vidro revelava uma área de luz com um jardim privativo maior do que o próprio cômodo. A cortina estava afastada no canto, perto da fresta da porta que permitia a brisa se esgueirar para dentro do recinto. A luz natural fazia desnecessário o uso de lâmpadas.
Havia poucos móveis: três cadeiras, uma escrivaninha e uma estante embutida até o teto. As prateleiras não tinham mais do que dez livros salvando-as da ociosidade. O lugar parecia pertencer a alguém que não pretendia ficar por muito tempo ou a um aficionado pelo minimalismo.
— Sente-se. — O rapaz apontou com a mão aberta para a cadeira à mesa de madeira trabalhada perto da entrada do jardim.
Li aceitou a oferta e depositou a maleta no colo após se acomodar.
O recepcionista-alquimista se recostou na mesa, quase sentando-se sobre o tampo, e se curvou de leve para frente, escondendo uma mão no bolso da calça. Estampou-se no rosto vibrante do rapaz um sorriso singelo e, de certa forma, sinistro quando combinado com o olhar estático.
— Eu estava ansioso para conhecê-lo, Dr. Crow! Ouvi muito falar do senhor.
Começando a duvidar de que não mandariam um novato para recebê-lo, Li recorreu à atuação para encobrir a desconfiança.
— Devo me sentir lisonjeado? — Abriu um sorriso carismático que rivalizava com o do outro.
— Ser aceito como alquimista já é uma razão de lisonjeio. — O rapaz estendeu a mão livre, aguardando a maleta. — A pesquisa, por favor.
O silêncio da expectativa pairou sobre eles. Até aquele dia, todas as reuniões de Li foram com Alina Kartal, no entanto, para esta em específico, ele foi informado apenas de que seria atendido por outro alquimista — aparentemente, o esforço de digitar o nome do tal alquimista causaria gangrena nos dedos de quem ousasse fazê-lo.
Por mais que aquele jovem tivesse encontrado-o no momento certo e soubesse se tratar de Elias Crow — o que não era surpreendente quando até um civil teria a competência para identificá-lo —, parecia um tanto arriscado entregar um experimento sigiloso a um desconhecido.
Se por um lado reconhecia essa desconfiança como um potencial exagero — afinal, que outro poder havia para se contrapor aos alquimistas? — por outro, causava-lhe estranheza aquele indivíduo não se encaixar no estereótipo que fomentara sobre essa classe maldita durante o percurso da vida.
— Pode dizer do que se trata esta pesquisa? — questionou Li, cogitando se haveria rixas entre famílias de alquimistas.
O estranho estreitou os olhos por poucos segundos antes de ser atingido pela compreensão.
— Desconfiado, você, não é? Gosto disso — disse ele em tom sério, depois soltou uma leve tossida para limpar a voz. — A pesquisa é uma correção do code.
— E quem é você?
Um riso escorregou por entre os lábios do rapaz.
— Tem razão, eu esqueci de me apresentar! — Ele recolheu a mão, espalmando a própria testa e cobrindo um dos olhos, em seguida a ofereceu de novo, mas desta vez como forma de cumprimento. — Alex Phoe. Prazer em conhecê-lo.
Li retribuiu o aperto de mão enquanto escondia a surpresa por baixo da inexpressividade.
— Alex Phoe? — questionou de maneira irresoluta.
— Esse mesmo que você deve estar pensando. — Voltou a estender a mão à espera da maleta. — Se não acredita em mim, pode confirmar com a Alana depois; é ela a sua orientadora, certo?
Li não respondeu e nem se preocupou em corrigir o nome da alquimista. De início hesitante pelo resguardo, entregou a maleta e observou Alex depositá-la na mesa após virar as costas para ele.
— Fechadura antiga e sem verificação do code; arriscado — comentou o rapaz ao analisar a tranca metálica da maleta. — Faz sentido a preocupação em conferir quem eu era.
— Não tive tempo para comprar outra antes da reunião. E se eu desviasse do caminho para cá, vocês suspeitariam.
— É uma razão compreensível, apesar de exagerada — franziu as sobrancelhas ao dizer as últimas palavras —, mas não entendo por que um cientista como você teria uma maleta pessoal tão antiquada.
— Por conveniência.
As pupilas de Alex se expandiram e o estalo da tranca sendo desativada vibrou pelo recinto.
— Não estou aqui para questionar seus motivos. — O alquimista apoiou a lateral do quadril na mesa, abriu a maleta e averiguou o conteúdo. No centro, em uma caixinha de acrílico, encontrou um exemplar do code: um chip minúsculo com garrinhas quase invisíveis àquela proximidade. Ao lado, outra caixa maior continha um pen drive. — Nada salvo em nuvem, como o recomendado; se vai trabalhar na Amazônia, é melhor que esse tipo de informação não trafegue pelas redes deles. Vamos começar os testes nesta semana. Se tudo der certo, você terá o reconhecimento do governo e receberá um novo projeto.
— Eu posso corrigir o problema do climatizador global — sugeriu Li de súbito, a feição neutra e voz controlada maquiaram a ansiedade. A promessa de um novo projeto não significava que se concretizaria. Ser relevante como alquimista era necessário, caso contrário, poderia ser reduzido ao posto de mero ingrediente e, talvez, os alquimistas considerassem jogá-lo em um "lugar mais apropriado" para cumprir essa função.
Alex ficou imóvel por dois segundos, a testa jovial enrugada durante o tempo de consideração. Fechou a maleta abruptamente, o clique da tranca outra vez repercutindo alto pelo recinto quase vazio. Voltou-se devagar para o cientista, exibindo um semblante misterioso.
— Que problema? — inquiriu com uma falsa ingenuidade presente na voz, incitando Li a provar a alegação.
— Pensei que tudo o que fosse criado com o elixir sucumbisse com o tempo; não é por isso que estão tentando criar cópias de alquimistas? — Li simulou uma expressão e tom confusos.
Alex abriu um sorriso e se afastou da mesa, caminhando devagar em direção ao jardim.
— Trabalhou nas pesquisas restritas do Dr. Owlen, fiquei sabendo... — Parou a um passo antes da porta de vidro. — E trocaram a pesquisa original sobre cópias pela de órgãos adaptáveis; foi uma solução temporária, mas isso... — girou parcialmente a parte superior do corpo e apontou para a maleta —... é o que vai resolver. — Virou na direção de Li, suspirou e apoiou as mãos na cintura. — Não precisa se preocupar com o climatizador, eu sou o responsável pela manutenção dele. Inclusive, se eu não estivesse ocupado corrigindo as últimas falhas, teríamos nos conhecido mais cedo.
Li controlou o impulso de franzir o cenho. Era impossível um alquimista consertar ou reproduzir os mesmos efeitos no projeto de outro. E os resultados, eventualmente, paravam de funcionar ou apresentavam novos defeitos. Esse era o motivo que deu início aos estudos sobre clones e cópias e a priorização de criar segundas versões de projetos — réplicas que não necessitavam de elixir. Se aquele homem dizia ser capaz de consertar a criação de outro alquimista, então...
— Eu sei o que deve estar pensando. — O sorriso de Alex irradiou da mesma forma soberba que alguém conta vantagem de um segredo. — Devo ser um caso especial... assim como você, não é? Elias Crow... — Direcionou as pupilas para cima e aumentou a inclinação da cabeça para o lado a cada item que listou: — Ajudou o Dr. Owlen a criar uma vacina; também o ajudou no começo do experimento com os órgãos; foi o primeiro a domesticar um harmínion, embora o projeto tenha acabado de forma trágica, e agora está corrigindo as falhas de uma tecnologia criada por outra pessoa. Feitos notórios para um alquimista, e esplêndidos para um membro honorário. — Reajustou o foco na direção do cientista.
A sugestão inicial do discurso foi o combustível que elevou a desconfiança de Li como lenhas atiradas em uma fogueira.
— Não precisa se preocupar com o climatizador, eu cuido dele. O meu problema é com o code. — Alex cruzou os braços e deixou a luminosidade do rosto se apagar pela primeira vez naquela reunião. — O code é um projeto extenso, maior do que uma vida. Maria Harpy morreu antes de concluí-lo. — Direcionou o olhar para o chão e, lentamente, soltou os braços para esconder as mãos nos bolsos da calça. Levou alguns segundos para que suspirasse e voltasse a encarar Li com um resquício do sorriso. — Preciso que você o atualize.
Em nenhuma possibilidade Li havia cogitado que a pessoa que o receberia na reunião alegaria ser capaz de solucionar os problemas do climatizador. Alex Phoe não devia ser somente um descendente de Nicholas Phoe e Maria Harpy. Pelo que se sabia, descendentes não obtinham resultado nos projetos alquímicos de seus ancestrais — ele mesmo era uma exceção à regra, e uma exceção bem específica. Só podia supor que Alex era um alquimista milagroso, ou outra "exceção específica" — um caso especial, como proferido pelo próprio Alex.
— O que, exatamente, precisa ser atualizado?
— Eu disse que você receberia o próximo projeto depois de testarmos este. — Alex alargou o sorriso e falou em um tom divertido, afastando qualquer ideia de repreensão.
A retomada do assunto pelo projeto atual pareceu o momento propício para Li descobrir se o cerco que lhe era delimitado pelos alquimistas se expandira ao menos um milímetro.
— Ok. Mas será que posso solicitar um favor como recompensa pelo que já fiz?
Alex contraiu os olhos em um movimento que se dissipou rápido.
— Que tipo de recompensa?
— Na verdade, seria um favor... — Li cruzou as pernas e recostou a coluna altiva na espalda da cadeira. — Preciso de quatro ônibus emprestados... e de um anúncio oficial do governo.
A resposta foi um levantar cético e intrigado de sobrancelhas.
— Pretendo resolver a questão dos harmínions em Elephant Stone — revelou Li.
— Inusitado, mas compreensível. — O alquimista relaxou os músculos faciais. — Ouvi falar de uma Dra. Mori Lírie que está defendendo o território deles. Era uma funcionária sua na pesquisa sobre o harmínion, estou certo?
Essa era a parte que Li queria evitar de expor, contudo, como Alex já a identificara, não haveria razão para não abordá-la — viera para a reunião ciente de que a probabilidade em conseguir omitir o assunto seria quase nula.
— A Dra. Lírie tem uma boa relação com eles — comentou.
Alex soprou pelo nariz como se incomodado pelo próprio ar.
— Essas ameaças aos harmínions... Alguns especialistas ainda estão discutindo o que fazer.
"Quando aquela cidade ainda não tinha emergido dos escombros depois do fim do mundo, parece que houve uma movimentação de harmínions naquela área. O governo foi verificar, mas não encontrou nada... Só que o boato perdurou e foi uma surpresa quando você capturou aquele harmínion. Então decidiram 'manter essa harmonia' porque, né...? Nunca tinha acontecido nada de grave.
"Mas agora os moradores estão exigindo uma providência. E do nosso lado, pessoalmente, gostaria de evitar outra invasão... prefiro não mexer em um vespeiro. Pensamos em construir um muro e declarar o outro lado como território uncoded, mas fica muito próximo da cidade."
— Agora, essa ideia de tirá-los de lá... — Emitiu pela garganta um resmungo resignado. — Tá bem! — A animação voltou a dominá-lo de súbito. — Aceitarei o seu pedido. É conveniente. Tem preferência de levá-los a algum lugar específico? Porque temos alguns territórios abandonados pelos uncoded.
— Ainda estou considerando os detalhes, mas agradeço a sugestão. — Li manteve o semblante sério perante a reação juvenil no final do discurso.
— Certo. Depois dos testes podemos conversar sobre esses detalhes. Mas já vou avisando que, pra esse tipo de solicitação, uma equipe de captura de uncodeds deverá acompanhá-los.
A mesma que foi inútil da última vez?, pensou Li, e guardou o pensamento porque manifestá-lo não seria a decisão mais inteligente de alguém que dependia de um favor — além de que poderia pensar em uma forma de anular ou transformar aquela condição em uma vantagem durante a execução do plano.
— O que for necessário. — Assentiu uma vez com a cabeça, depois rondou o chão com as pupilas. — Tem... — redirecionou-as de volta a Alex, simulando hesitação — mais uma coisa que eu queria pedir, sobre o novo projeto. — Não custava tentar a sorte de um segundo pedido mediano depois do sucesso de um primeiro complexo. — Posso requisitar a ajuda de uma certa pessoa?
— Eu já iria designar alguém...
— Joshua Aguilar. Soube que ele também estava conduzindo um projeto próprio de ajustes para o code.
Alex cruzou um dos braços no tórax enquanto o outro era erguido para apertar o queixo entre o polegar e o indicador dobrado.
— De onde o conhece?
— Pelo Dr. Ray.
— É claro... — A resposta surgiu lenta, considerando pensamentos. — Vamos fazer assim: primeiro discutiremos a realocação dos harmínions e depois o Dr. Joshua. Devo considerar isso como um aceite antecipado do próximo projeto?
O cientista assentiu novamente com um aceno, como se houvesse outra escolha além da concordância na luta pela sobrevivência.
— Então acho que não tem problema adiantar certos detalhes — prosseguiu Alex. — À princípio...
Um alarme que lembrava uma sirene alertando de um desastre emanou do celular de Alex, que desviou o olhar para o aparelho na mesa e depois para Li.
— Preciso ir agora. — Adotando um tom decepcionado, voltou a encarar o aparelho antes de pressionar a opção de ignorar a chamada. — Estou "desaparecido" há tanto tempo que atingi o pico de pessoas que querem me ver imediatamente. — Riu e fechou a maleta, levando-a consigo ao passar por Li enquanto se precipitava até a porta. — Enviarei uma mensagem com os detalhes do seu pedido assim que conseguir arranjar os seus ônibus depois dos testes... ou vou pedir para a Alana, se achar isso muito intrusivo. — Colocou a mão na maçaneta, mas se virou para o cientista, reservando alguns segundos para uma última consideração naquela despedida atropelada. — Foi um prazer conhecê-lo, e espero que possamos conversar com mais calma em breve. — Girou a maçaneta e saiu como se encerrar reuniões pela metade e deixar explicações vagando no ar fizessem parte de seu cotidiano atarefado.
Li não esboçou reação por vários segundos após a partida inusitada do alquimista. De repente, esperasse que Alex retornasse alegando se tratar de uma piada, o que não era de todo inacreditável depois de presenciar, desde o momento em que o viu na recepção, um aparente descaso do orgulho — ou excesso de amadorismo — contrário do demonstrado por outros alquimistas.
Por fim, o silêncio prolongado sobrepôs qualquer perplexidade do cientista quanto ao encerramento abrupto da reunião.
Seguindo a sugestão de Alex, enviou uma mensagem a Alina, apenas como viés de confirmação:
"A maleta foi entregue."
"Ótimo", veio a resposta imediata, indicando que ela sondava uma tela da conversa naquele momento. "Ouvi falar que foi o Alex Phoe quem foi recebê-lo. Como ele é? O que achou dele?".
Li pretendia dar uma resposta genérica mais tarde apenas para evitar o desafeto dela, mas a pergunta lhe causou uma reflexão.
Amador foi a primeira palavra que irrompeu nos pensamentos como um anúncio em luzes neon, todavia, descrevia somente a forma com que ele se portava. Alex Phoe foi o primeiro alquimista que Li conheceu a não possuir um zelo por aparências, talvez porque quisesse passar exatamente essa impressão.
Deixava uma aura juvenil circundá-lo, com o propósito de ser subestimado, quem sabe? A inquietação de Li se respaldava na assimilação de quando ele mesmo utilizara do mesmo artifício para alcançar os objetivos na época da faculdade.
Talvez estivesse confabulando demais, trazendo complexidade ao óbvio. Por hora, trataria-o com a mesma desconfiança incondicional que reservava aos alquimistas, mas com uma pitada de atenção redobrada pelas possíveis intenções que Alex Phoe escondia atrás de uma camada de falsa modéstia. Ademais, naquele mar desconhecido se encontrava uma maré incômoda de familiaridade.
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