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Os risos e sons de crianças brincando podiam ser ouvidos em todo o quarteirão. Naquela manhã ensolarada, o parque estava lotado de pessoas que aproveitavam o fim de semana, e nenhuma delas perdeu mais de um segundo observando uma viatura azul passar do outro lado da rua e estacionar três quadras à frente.
— Mas e aí? Segurando a ansiedade de ver ela? — Trajado com o uniforme policial, Cris saiu do veículo enquanto continuava uma conversa que vinha desde a delegacia. Ele tinha cabelos escuros e curtos, pele morena e olhos de um azul profundo, sempre à procura do sol em dias chuvosos.
Daniel, fardado com alguns anos há mais de experiência do que o outro, saiu pelo lado da rua e contornou o veículo até se juntar ao colega na calçada. Livre do capacete que o acompanhava somente em tarefas hostis, um sorriso de nostalgia se formou abaixo do bigode de fios loiros e bem cuidados.
— Pelas fotos, ela cresceu bastante... É difícil acreditar que aquela menininha não é mais uma criança. Também estou curioso pra saber o quanto ela mudou como pessoa, ansioso pra saber se ela está bem. Aconteceram muitas coisas ruins antes dela se mudar do continente.
Observou a casa a qual haviam estacionado em frente: um sobrado azul, de tom mais escuro do que a viatura, com orquídeas em uma jardineira branca enfeitando a janela aberta do segundo andar — um disfarce ou resquício do que outrora foi um lar pacífico.
— Pronto? — Daniel se postou diante do caminho cimentado no jardim que levava até a porta de madeira pintada de branco.
Cris lançou um olhar para a traseira alongada da viatura onde estavam todos as itens emergenciais para evitar "ocorrências truculentas" em uma abordagem.
— Preparado. — Respondeu também com um aceno rápido da cabeça e ambos se dirigiram até a entrada do sobrado.
Daniel tocou a campainha ao lado da porta. Depois de aguardarem em silêncio por qualquer movimentação ou ruído durante um minuto inteiro, voltou-se para Cris:
— Ele saiu?
O outro policial pressionou um botão discreto na braçadeira preta que exibia a sigla ECNR estampada em branco. As luzes de microcâmeras na parte frontal do uniforme criaram um holograma de um mapa cinza-grafite à frente dele com um ponto azul que pulsava.
— Não — respondeu Cris, desativando o holograma.
Como que evidenciando a confirmação, a maçaneta girou. Por trás da porta surgiu um homem jovem e de semblante nervoso, os olhos arregalados e inquietos.
— Ahn... Em que posso ajudar? — A voz trêmula do homem atestou o nervosismo.
— Matias de Souza? — questionou Daniel.
— ...Eu.
— Você foi indiciado por violência doméstica e convocado a se apresentar na delegacia alguns dias atrás. Não compareceu e não justificou a ausência, então viemos buscá-lo. — A gentileza que sempre predominava no semblante de Daniel foi barrada pela severidade do caso.
— Não foi minha culpa. — O homem deu um passo hesitante para trás e ergueu as mãos, deixando as palmas visíveis. — Ele ficou me provocando! — Um tom enérgico elevou a voz.
— Se quiser contestar a versão do seu marido, pode solicitar um depoimento verídico na delegacia em complemento à interrogação.
— Foi... foi só... — balbuciou o acusado.
Aguardaram uma justificativa por três segundos até o homem disparar para dentro da casa.
Os policiais se encararam por um instante, os olhares cruzados entrando em acordo. As pessoas costumavam acompanhá-los sem alarde, agradecendo a discrição de serem levadas por oficiais sem o capacete chamativo e com a sirene do veículo oficial ausente. Mas aquele seria um dia incomum, e o detalhe da perseguição era mínimo comparado à estranheza que ainda viria.
Daniel correu atrás do meliante passando pela sala e adentrando outro cômodo, onde levantou os braços por reflexo para proteger o rosto de um objeto metálico não identificado que surgiu voando na direção dele. Após o sobressalto, reconheceu uma panela sautese sambando no piso brilhante ao som do próprio estardalhaço.
Uma península de granito escuro separava o policial do acusado na cozinha — foi o máximo que Daniel reparou antes de ter que desviar de outra panela. Matias abriu um dos armários e começou a atirar o conteúdo por cima dos ombros.
— Cris... — Daniel vislumbrou o colega protegido ainda na entrada da casa, acenou com a cabeça e se jogou no chão quando talheres foram atirados em sua direção.
Aquele homem estava em claro descontrole e poderia ferir a si mesmo.
— Matias, se não se acalmar e vir conosco pacificamente, seremos obrigados a desligar o seu code para a sua própria segurança. — Daniel alertou com calma e complacência, embora utilizasse de um tom firme, e contornou a península agachado.
— Ele ficou provocando! — rebateu o acusado. — Só pra poder mandar vocês depois!
Mesmo com a cacofonia de objetos metálicos chocando-se com as paredes, a península e o chão, Daniel conseguiu discernir fragmentos do comando de Cris após ele acionar o botão de comunicação do uniforme.
— Civil não aderiu à abordagem pacífica. Solicito o desligamento do code — disse Cris ao comunicador.
— Confirme o posicionamento seguro do civil. — Uma voz feminina emanou da saída de som discreta embutida na braçadeira.
Perto da esquina da península, Daniel se preparou para imobilizar o acusado e quase foi atingido por uma frigideira ao se levantar de súbito. Interceptou o utensílio segurando o pulso de Matias e, aproveitando a surpresa dele, virou-o e prensou as costas dele contra o peito. Matias aproveitou que Daniel afrouxara o aperto do pulso e levantou o braço, tentando atingir a cabeça do policial com a frigideira, mas, no curso desse movimento, soltou o objeto e o braço pendeu na direção do chão quando o corpo relaxou, largando o peso para Daniel sustentar. O acusado havia desmaiado.
— Cê tá legal? — Cris desviou das panelas dispersas no piso para chegar até ele.
— Tô bem. — A respiração foi alterada pela adrenalina. — Me ajuda aqui.
Cris afastou alguns talheres com o pé e ajudou Daniel enquanto ele se abaixava para posicionar o corpo de Matias no chão com cuidado.
Depois de garantir que o acusado estava seguro em uma área limpa, Daniel se levantou e apoiou as mãos nos lados do quadril.
— Tremendo desrespeito com os utensílios de cozinha. — Tentou fazer uma piada, mas havia um toque maior de condolência na frase do que de sarcasmo.
— É assustador quando precisamos recorrer a isso — comentou Cris. — Prefiro mil vezes me entregar do que ter o code desligado. Não sei por que as pessoas insistem em correr quando sabem que isso acontece.
— É o medo. — Daniel respondeu ainda ocupado em analisar os objetos espalhados. — Pode causar reações inconscientes. Tem aqueles que fogem, alguns atacam... — uma memória rondou a mente dele: olhos vermelhos e marejados, com pupilas ofídicas que o encaravam — e também tem aqueles que congelam e são incapazes de agir mesmo pra se proteger... ou proteger alguém. — Prensou os lábios, cerrando a mandíbula.
Agachado ao lado do acusado e ainda ajustando as pernas dele, Cris mirou o colega, entortando a cabeça de leve na diagonal com uma expressão curiosa.
— Vou buscar a maca — anunciou ele assim que se pôs de pé.
Sozinho na cozinha, Daniel se abaixou para pegar uma frigideira do chão. Parecia nova e tinha o exterior estampado com personagens alegres. Ao depositá-la na península, vislumbrou uma pena branca em destaque no granito escuro. Iluminada pelo sol da manhã contornado pela cortina da janela, parecia uma mera decoração feita de vidro que milagrosamente sobrevivera ao furação de Matias, mas uma sensação de estranheza encadeada com nostalgia roçou o braço dele sem razão aparente. Movido pela curiosidade ou por um fascínio inexplicável, decidiu pegá-la para examinar de perto, exceto que a mão atravessou a pena como se ela nem estivesse lá. Tentou outra vez sem sucesso e cogitou que, talvez, a gravura realista na bancada fosse um efeito da luz ou um truque da cabeça dele, ainda afetada pela adrenalina. Talvez... mas aquele não seria o último evento inexplicável a lhe cobrar a sanidade.
O barulho de pés chutando talheres chamaram a atenção do policial outra vez para a entrada da cozinha, de onde Cris reapareceu com a maca dobrada em mãos. Deixando os delírios de lado, Daniel se apressou para aumentar a área limpa enquanto Cris estendia a maca no chão, deitando o acusado sobre ela em seguida.
— Até que foi rápido — disse Cris, o semblante alegre já recuperado da presença de uma pessoa em estado de inconsciência induzida. — Ainda vai dar tempo de recepcionar a sua amiga.
Daniel assentiu enquanto erguia a maca no mesmo instante em que o colega. Alguns utensílios de cozinha ainda bloqueavam a passagem — ele torceu para que nenhum dos itens fosse de estimação da vítima quando Cris arrastou uma das panelas com o pé após quase tropeçar nela ao se virar para a saída.
E, lembrando da vítima, a única coisa que evitava que o policial se sentisse mal por não recolher os utensílios era a ciência de que, em casos como aquele, a pessoa responsável pelo acompanhamento psicológico dela se certificaria de que seria acolhida, fosse naquela casa ou em outro lugar.
Observou o cômodo uma última vez antes de sair, finalizando com o foco na península, onde havia uma frigideira e nada mais.
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