dezesseis
Dei as direções para Bianca até que ela estacionasse na frente da minha casa. A rua estava deserta naquele sábado à tarde, mas mesmo assim vesti minha camisa úmida para atravessar a calçada. Peguei minhas chaves e destranquei as portas com as mãos ainda instáveis
- Bia, se você não puder ficar... - eu comecei envergonhado. Agora que tudo tinha passado e eu estava mais ou menos com a cabeça no lugar, tudo que queria era me esconder dela.
- Eu não vou a lugar nenhum. Já você, vai tomar um banho quente - ela disse, tomando conta do espaço como se fosse seu, marchando pela casa. - Onde fica o banheiro? - ouvi sua voz do corredor. - Ah, achei. E aquele ali no fundo deve ser o seu quarto. Vou deixar as roupas prontas em cima da cama. Anda, entra logo.
Estava cansado demais para discutir. Bianca me empurrou para dentro do banheiro e fechou a porta.
Liguei o chuveiro, deixando o jato quente bater nos meus ombros e escorrer pelas minhas costas.
Me demorei, sabendo que quando saísse dali seria difícil encarar Bia, mas contente por ela estar na minha casa, perambulando pelos cômodos e fazendo barulho. Quando saí com uma toalha amarrada na cintura, fui até meu quarto e notei que ela tinha mesmo encontrado minhas roupas e jogado uma muda limpa em cima da cama.
Ouvi o barulho de panelas e fui até a cozinha.
- Encontrei todos os ingredientes para um bolo de cenoura - ela disse com um sorriso quando me viu parado no batente da porta. - Sei que você não vai se importar por eu estar mexendo nas suas panelas.
- Bianca, você não precisa fazer isso.
- Não, não preciso. Mas eu quero.
- Eu devia voltar para o trabalho. O Pedro...
- O Pedro ficou bem feliz quando eu liguei dizendo que ele precisaria tomar conta do bar por mais algumas horas e que você o recompensaria muito bem com uma grana depois. - Ela olhou para mim de novo enquanto ligava a batedeira. - Não precisa se preocupar com o bar.
Me deixei cair sobre uma das cadeiras da mesa da cozinha. Observei Bianca se mover tranquilamente pelo cômodo, cozinhando como se tivesse todo o tempo do mundo.
Era incrível, mas parecia que ela já tinha ido até ali um milhão de vezes antes. A casa, tão vazia e silenciosa desde a morte da minha avó, estava cheia de vida só por causa da presença dela.
Quando Bianca colocou o bolo no forno, pegou uma cadeira e se sentou na minha frente.
- Você quer conversar? - ela perguntou, não evitando o assunto como eu achei que faria.
Balancei a cabeça, os olhos voltados para o chão.
- Não consigo nem te encarar.
- Por que não?
Porque me mostrei para você. Porque você me viu em um dos momentos mais frágeis da minha vida.
Mas eu não disse nada daquilo.
Bia segurou minha mão.
- Você não tem nada do que se envergonhar.
Olhei para o outro lado, mas Bianca me impediu com um aperto firme.
- Samuel, eu tô falando sério. Você não tem.
- Agi como um idiota.
- Agiu como uma das pessoas mais corajosas que eu já vi.
Ela me encarou sem ressalvas, o rosto transparente e sem receio.
- Há quanto tempo você não entrava em águas mais profundas?
Não perdi tempo perguntando como ela tinha deduzido aquilo. Bianca era mais esperta do que parecia.
- Desde os seis. Quando meus pais morreram.
- Eles se afogaram?
Assenti.
- Morreram tentando me salvar.
Ela não pediu por mais explicações. O que era bom, porque eu não sabia se conseguiria dá-las sem desmoronar de novo.
- E você foi atrás de mim apesar disso - ela comentou baixinho. - Mesmo com medo, mesmo sem saber nadar e ter se mantido afastado de lugares fundos por dezesseis anos.
- Eu achei que você tinha se machucado. Que estava se afogando - expliquei. - Eu não ia te deixar lá.
- Ah, Samuel...
Ela se levantou e me abraçou. Mesmo em pé e comigo sentado na cadeira, seus braços alcançaram meu pescoço e sua cabeça ficou praticamente da altura da minha.
Bianca era pequena demais para alguém que estava carregando parte do meu mundo com ela desde que tinha chegado naquela cidade.
Me perguntei como aquilo tinha acontecido. Como, em apenas um mês e alguns dias, aquela garota tinha entrado na minha vida e tomado conta dela.
Envolvi sua cintura com os meus braços e Bianca não fugiu assustada nem se encolheu ao toque. Por um segundo, fingi que aquilo era rotineiro, que uma garota bonita, maluca e incrível me abraçava com frequência daquele jeito que me fazia sentir o filho da puta mais sortudo do mundo.
- Não quero que você se sinta mal pelo que aconteceu. Por que eu não me sinto - ela disse, se afastando só o suficiente para me olhar.
- Nenhum cara gosta de ser visto como fraco.
- Isso é porque os homens relacionam vulnerabilidade com fraqueza, quando na verdade se mostrar machão o tempo todo só prova que são uns bebês assustados e desesperados por validação externa.
Soltei uma risada. O que era impossível, impensável. Como eu estava rindo depois de tudo aquilo?
- Vou tentar lidar com a minha masculinidade frágil, então.
- Obrigada. Isso tornaria o mundo, e a minha vida, bem melhor.
Quando o bolo de cenoura ficou pronto, Bianca nos serviu pedaços generosos.
- A gente não almoçou - falei pra ela.
- Quem liga? A parte boa de ser adulto é que agora ninguém mais fica fiscalizando as nossas refeições.- Ela riu e encheu a boca de bolo. - Você ainda tá com uma carinha de enterro...
- Vai passar, eu espero. - Afastei meu cabelo úmido do banho da testa e comi o bolo devagar. Era um dos melhores que eu já tinha provado. Pensei se seria uma boa ideia incluir algumas quitandas no cardápio do bar.
- Sei de algo que pode melhorar sua autoestima, que, pelo jeito, está sempre em frangalhos - ela soltou quando eu menos esperava.
Me odiei um pouco por ficar vermelho.
- Quem disse que a minha autoestima tá em frangalhos?
- Dá para notar só pelo jeito como você se mexe quando está fora do bar. Como se quisesse se encolher o máximo possível para não ser visto ou derrubar alguma coisa sem querer.
Semicerrei os olhos para ela.
- Você devia parar de observar tanto assim as pessoas.
- Eu passo boa parte do meu dia com você. É difícil não te observar.
Revirei os olhos. Apesar do papo desconfortável, pelo menos ela estava agindo com a mesma implicância habitual comigo. Eu odiaria que começasse a me olhar com pena.
- Você disse que tinha algo para aumentar a minha autoestima - lembrei. - Tô esperando.
- A minha mãe te acha o maior gato - ela disse.
- A sua mãe?
- É. Ela disse que você tem esses músculos enormes, um sorriso lindo e olhos maravilhosos.
- Olhos maravilhosos? - eu ri. - Ela usou mesmo essa palavra?
- Tá, ela disse exóticos. Mas, ei, nem tudo que é exótico é ruim!
Balancei a cabeça e tentei me concentrar no bolo, mas agora não conseguia deixar de sorrir.
- A sua mãe é muito gentil.
- Ela é muito sincera, também.
- Então você concorda com as opiniões dela a meu respeito?
Eu sabia que estava entrando em terreno perigoso, mas não liguei. Usei aquele tom de deboche que era comum nos nossos infinitos embates verbais.
- Se você está tentando arrancar outro elogio de mim, pode esperar deitado - ela disse com um sorriso malicioso.
- Mas valeu a tentativa.
Não demonstrei que estava desapontado. Parte de mim queria saber se ela às vezes me olhava do mesmo jeito que eu olhava para ela, com um "e se?" permanente na cabeça.
Quando a gente terminou de comer, levei os pratos para a pia e lavei tudo enquanto ela enxugava. Eu sabia que ela ficaria ali por um bom tempo se eu não deixasse claro que ela podia ir embora, por isso me ofereci para lhe dar uma carona até em casa.
- Você tá legal mesmo? - Bia perguntou quando estacionei na ruazinha de pedra.
- Tô - me forcei a dizer, as palavras arranhando, por que não eram bem verdade. - Obrigado por... - Eu queria dizer me trazido de volta, não me julgado, me abraçado. Mas acho que eu ainda era um homem de masculinidade frágil no fim das contas, porque o que disse foi: - Obrigado pelo bolo de cenoura.
Bianca soltou um suspiro cansado, mas estava sorrindo.
- Disponha.
Então ela me surpreendeu se inclinando para mim e me dando um beijo na bochecha.
- Até mais tarde, Samu.
A observei entrar em casa, minha bochecha ardendo onde seus lábios tinham encostado.
Era bobo, eu sabia, mas não pude evitar.
De novo, veio aquela revelação:
Eu a queria. Muito e com cada parte de mim.
O trabalho ficou tão apertado no bar nos próximos dias que mal tive tempo de procurar pelas joias com Bianca. Caminhões com bebidas chegavam o tempo todo e eu me vi passando um bom tempo no escritório calculando gastos, lucros e pensando nas melhorias que queria fazer no Lambari.
- Uma boa planilha no Excel poderia te ajudar a se livrar dessa papelada - Bia disse quando me viu um dia sentado na cadeira do escritório, pilhas de papéis para todos os lados e minhas mãos sujas de caneta esferográfica azul.
- Eu detesto o Excel. Por mais que veja tutoriais no YouTube, não consigo mexer com aquilo.
- Eu posso te ajudar. - Ela arrastou um banquinho para se sentar ao meu lado. - Eu sou a doida das planilhas.
A observei digitar no meu computador velho, os dedos ágeis e a mente afiada, o rosto iluminado pela luz fraca da tala.
Um dia, quando o bar estava quase fechando e Juliana e ela batiam papo em uma das mesas enquanto eu bebia cerveja com o Pedro, meu amigo falou:
- Já admitiu para si mesmo que gosta dela?
Trinquei o maxilar.
- Eu não gosto dela.
- Então por que está olhando para Bia como se fosse começar a babar a qualquer segundo?
- Eu não... - Mas cometi o erro de tocar meu queixo, só por precaução. Pedro soltou uma gargalhada. - Você tá ficando maluco. Eu não vejo a Bianca desse jeito.
- Não é o que a sua cara diz - ele continuou provocando com um sorriso malicioso por sobre o copo de cerveja. - Ou as suas calças...
O enxotei para fora no mesmo instante.
Alguns dias depois da nossa visita à Cachoeira Branca, eu estava fazendo qualquer coisa à noite no bar e pensando nas malditas joias quando algo me atingiu.
Eu sabia que já tinha visto o anel de pedra vermelha que o Fernando tinha descrito em algum lugar, mas não sabia onde.
E foi quando um dos meus clientes tagarelava alguma coisa sobre ter que passar qualquer dia na loja do único fotógrafo da cidade para revelar as fotos do aniversário da filhinha de três anos, que a revelação caiu sobre mim como um raio.
Larguei as garrafas de refrigerante que estava levando para o freezer em cima do balcão e corri pelas mesas do bar, deixando Daniel, o dono do açougue, falando sozinho.
Encontrei Bianca distribuindo sorrisos para uma mesa com uma mãe e dois filhos pequenos e toquei no seu ombro.
- Eu me lembrei de onde já vi o anel que a sua avó estava usando - falei de uma vez.
Bianca me olhou como se eu fosse maluco, então disse para a moça na mesa que já voltava com seu pedido e me segurou pelo antebraço, me levando para dentro do bar.
- Você ficou doido? - ela sussurrou quando parou em um canto, usando o bloquinho de notas para bater na minha testa. - A gente não pode falar disso aqui.
- Ninguém prestou atenção - resmunguei, esfregando a testa. - Escuta, eu sei onde já vi o anel!
- Eu entendi da primeira vez que você falou. - Bianca revirou os olhos, mas vi a ansiedade estampada no seu rosto. - E então?
- A gente precisa ir pra casa do meu avô. Hoje, assim que fecharmos o bar.
- Tá bom, tá bom. A gente vai. Não é como se eu fosse conseguir esperar até amanhã de manhã, de todo jeito...
Então ela se inclinou para mim.
- Agora disfarça essa cara de desesperado. Você seria um péssimo espião.
- Dá para parar de ser tão mandona?
- Se você tivesse mais noção, eu não seria tão mandona. - Bianca ajeitou o avental na cintura. - Agora, se me permite, eu tenho umas cinco pessoas para atender. E você volta logo para o seu lugar atrás do balcão.
E ela saiu marchando para longe de mim.
Cruzei os braços e tentei disfarçar o sorriso.
Se eu não ficasse esperto, aquela danadinha acabaria por tomar conta do meu próprio bar.
Quando o Lambari finalmente esvaziou, eu pude guardar as mesas e deixar Bianca no controle do caixa. A garota era mesmo uma calculadora humana e fazia aquilo na metade do tempo que eu gastava. Desci as portas e joguei as chaves para que ela trancasse tudo enquanto a esperava no carro.
- Você nem me deu tempo de tirar o avental - ela falou, jogando a peça no banco traseiro e desamarrando o cabelo do rabo de cavalo que usava no experiente. - Eu espero que a sua pista seja boa, Samuel.
- Como se você não estivesse mais ansiosa do que eu...
Estacionei o carro na rua deserta às dez e meia. A lua estava escondida atrás de uma nuvem e o céu estava escuro. O ar cheirava à tempestade.
- Droga, parece cenário de filme de terror - Bianca disse, pegando as chaves do meu bolso e destrancando os portões de ferro. Um raio cortou o céu, produzindo um estrondo quando caiu ao longe. - Eu amo a minha vida...
- Meu Deus, mulher, você não para de reclamar nunca?
- Eu não estou reclamando. Só tô comentando! Anda, Samuel, vai na frente. Eu que não vou abrir caminho a essa hora da noite.
A guiei pelo jardim, com suas formas escuras e disformes na escuridão, até as escadas da varanda e a porta da frente. Entrei na casa e fui acendendo as luzes dos cômodos uma por uma, até Bianca parar de se esconder atrás de mim.
- E então? Qual a sua pista?
- Vem comigo.
Subi a escadaria até o segundo andar, alguns degraus estalando conforme passávamos. Aquela parte da casa parecia ainda maior e mais abandonada. Era onde quase todos os quartos estavam, com suítes e salas de estar, além do pequeno sótão que só podia ser acessado através de uma escadaria estreita no fim do corredor.
Foi para lá que eu levei Bianca.
- De jeito nenhum eu vou subir ali em cima - ela declarou quando entendeu tudo, observando de longe o buraco escuro no teto. - Vai com Deus. Eu fico aqui caso precise de apoio moral.
- Porra, Bianca, o lugar é minúsculo lá em cima. Eu vou ter que engatinhar para caber.
- Problemão seu, parceiro.
Xinguei baixinho e subi as escadas, mas não tinha nem chegado ao último degrau quando percebi que meus ombros não passariam pela abertura.
Ótimo. Quem foi o gênio do arquiteto que achou uma boa ideia incluir um sótão no projeto da casa se ninguém conseguia acessar?
- Bianca, vai ter que ser você - falei, depois de perceber que não conseguiria atravessar.
- Merda, Samuel, por que você não faz uma dieta?!
- Não é questão de dieta! Meus ombros não passam.
A ouvi choramingar lá embaixo.
- Anda, sai daí antes que eu me arrependa.
Desci as escadas com cuidado e aterrissei com um pulo. Bianca já estava prendendo os cabelos em um coque e fazendo o sinal da cruz.
- Sempre sou eu quem fica com a parte mais difícil.
- Você quer achar as joias ou não?
- Quero!
- Então larga de ser fresca.
Bianca me fuzilou com o olhar e foi até as escadas.
Ela ficava linda quando parecia prestes a arrancar minha cabeça.
- O que exatamente eu preciso procurar lá em cima?
- Uma caixa com álbuns de fotografia. Você vai saber quando achar.
Ela se muniu de coragem e subiu as escadas, desaparecendo pelo buraco no teto segundos depois.
- Tem uma lâmpada com uma cordinha aí em cima. Tenta achar.
- Esse lugar deve estar infestado de aranhas... Isso se não tiver coisa pior. - A ouvi soltar um espirro. Tinha me esquecido da sua rinite. - Olha, eu espero que isso valha à pena. Quando encontrar essas joias, vou precisar de um mês em reabilitação para me esquecer dos traumas!
Apoiei o ombro na parede do corredor e revirei os olhos.
O sótão foi iluminado quando ela encontrou a lâmpada.
- E aí? Achou a caixa? - perguntei.
- Achei. E também um ninho de baratas. Puta merda, que vontade de sumir.
Bianca ressurgiu no topo das escadas.
- Pega aí.
Ela jogou a caixa e eu a peguei nos braços, levantando uma nuvem de poeira. Bia apagou a luz e desceu, esfregando as mãos na calça jeans.
- Eu nunca mais faço isso de novo - ela deixou bem claro, mas eu não estava ouvindo. Tinha colocado a caixa no chão e estava revirando seu conteúdo.
Outro trovão caiu, dessa vez mais próximo. Bianca se sentou no chão perto de mim.
Comecei a abrir os álbuns e virar as páginas. A família da minha mãe sempre tinha sido podre de rica, o que significava que as gerações anteriores tiveram grana para um luxo que a maioria das famílias brasileiras não podia arcar no século passado: fotografias.
As fotos mais recentes eram da minha mãe com seus quinze, dezesseis anos. Então passavam para os mês avós, seu casamento, meu avô com os irmãos quando era mais jovem, seus pais e depois os pais deles. Décadas e décadas de rostos registrados ali. Pessoas que eu nem conhecia.
Mas uma única coisa se repetia além de alguns traços genéticos familiares naquelas fotos, de geração em geração: o mesmo anel dourado de rubi.
- Olha - falei, apontando para uma foto da minha avó com o meu avô. Ela estava grávida da minha mãe na época e a mão exibindo o anel estava pousada na barriga. - Eu sabia que já tinha visto o anel antes! Minha mãe costumava me mostrar esses retratos quando eu era pequeno. Ela achava que era importante conhecer quem veio antes de nós.
Continuei virando as páginas.
- E essa aqui é a minha bisavó. Viu? Olha o anel no dedo dela. E essa de cabelo escuro aqui, é a mãe da minha bisavó. Minha trisavó. E ela está usando o mesmo anel!
Eu olhei para Bianca. Ela encarava as fotos sem entender.
- Esse anel tá na minha família por gerações! Acho que era dado para o filho mais velho. Se fosse homem, ele o dava de presente para a esposa até que tivessem filhos e assim sucessivamente.
- Mas... isso não faz sentido. - Bianca se voltou para mim. - A minha avó era a doméstica. A última pessoa a usar o anel aqui foi a sua avó.
Eu voltei para a foto onde meus avós maternos pousavam para a câmera.
- A minha avó morreu quando eu tinha uns seis meses - falei. - O que significa que o anel ficaria sem dona, ou meu avô o daria para a minha mãe.
- Mas a gente sabe que não foi isso que aconteceu.
- Não. O anel estava com a Amália.
Nós nos entreolhamos.
Bianca se levantou e abraçou a si mesma.
- Minha avó nunca roubaria nada - ela disse, quase como se eu a tivesse acusado disso. - Você disse que se lembra um pouco dela. Então sabe que ela não seria capaz.
- Eu era só uma criança, Bianca - falei, deixando os álbuns de lado e me levantando também. - Mas não tô acusando a sua avó de roubar o anel ou qualquer uma das outras joias.
- Mas então... - Ela balançou a cabeça. - Então o que isso significa?
- Significa que o meu avô deu o anel pra ela - soltei o pensamento que tinha me ocorrido desde que abri aqueles álbuns velhos. - Significa que talvez eles fossem amantes.
A força do vento lá fora sacudiu as janelas da casa, uivando quando entrou pelas frestas.
- A minha avó tinha mais de sessenta anos, Samuel... - Bianca disse com desdém. - Ela não seria amante de ninguém. Muito menos do patrão.
- E você acha que pessoas mais velhas não podem se apaixonar? - questionei. - Pensa bem, Bianca. Os dois estavam juntos naquela foto. Ela o acompanhou até Cachoeira Branca não porque era só a doméstica, mas porque os dois estavam juntos. E ninguém sabia. - Soltei uma risada incrédula. - O mais doido disso tudo é pensar que o meu avô, dentre todas as pessoas, teria a capacidade de amar alguém.
Bianca se apoiou na parede e escondeu o rosto nas mãos.
- Isso é demais para processar.
- Se é demais para você, imagina para mim - sussurrei, me apoiando na parede ao lado dela. Sabia que nós dois estávamos a um segundo de ficarmos malucos. - O meu avô ficou viúvo. Seis anos depois, minha mãe morreu e eu saí dessa casa. E então ele se apaixonou pela única pessoa que ficou. Pela Amália. Quando sua avó morreu?
- Em 2006.
- Então significa que eles ficaram uns cinco anos juntos, mais ou menos. Isso se já não tivessem algo antes, quando meus pais e eu ainda morávamos aqui.
- E as joias...
- Foram um presente para ela. Só pode ser isso.
Bianca me olhou.
- Seu avô era assim tão rico para gastar uma fortuna em joias só para enfeitar a mulher por quem estava apaixonado?
- Ele era rico. Definitivamente. Mas eu não sei nada a respeito dos seus sentimentos. - Encarei a parede oposta, uma raiva familiar tomando conta do meu peito. - Se eu fosse arriscar, diria que ele não tinha porra de sentimento nenhum.
- Mas por que minha avó esconderia as joias? E por que as deixaria aqui?
- Eu não sei, Bia. Não faço ideia.
Ficamos em silêncio pelo que pareceu um segundo e uma eternidade, ambos tentando absorver tudo aquilo que achávamos que sabíamos.
Então a chuva caiu, fraca por um momento, mas se tornando mais forte a cada instante.
- É melhor a gente ir - disse para Bia. Ela assentiu e nós descemos as escadas e fechamos a porta. Em um instinto idiota, segurei sua quando precisamos correr pelo caminho de pedra até o portão. Mas ela não pareceu se importar. Ficou colada ao meu corpo e correu atrás de mim com a cabeça baixa, tentando se proteger da chuva.
A gente se jogou na cabine do carro e eu girei a chave, pronto para ligar o aquecedor e a levar para casa, mas um barulho esquisito no motor me fez congelar. Tentei ligar de novo, mas o carro engasgou e vi fumaça subir pelo para-brisa.
- Droga! - bati no volante. - Eu sabia que isso ia acontecer. Eu devia ter trocado as velas há um tempão.
Bianca me olhou com as sobrancelhas erguidas.
- Velas?
- É. É o que faz o pistão se movimentar para que...
- Eu sei para que as velas de um carro servem! - ela exclamou. - O que eu quis dizer é por que diabos você não trocou elas antes se sabia que já estavam gastas?!
- Eu tô andando meio ocupado, tá legal?
- E achou que era uma boa ideia arriscar ficar com o carro parado no meio da rua? - Ela jogou a cabeça para trás e respirou fundo. - Homens.
A chuva aumentava a cada segundo.
- Escuta, ou a gente fica aqui enquanto você me dá sermão a noite inteira, ou a gente volta para dentro e dorme.
- Dormir? Naquela casa? - Ela me olhou como se eu tivesse proposto que deitássemos em um colchão de pregos. - Você é doido?!
- As velas do carro não vão se trocar sozinhas, Bianca. E a gente não pode sair no meio de uma tempestade para ir pra casa! - Deus, ela me tirava do sério. - Liga para a sua mãe para ela não ficar preocupada.
- O problema não é a minha mãe, cabeção. O problema é... - Ela deu uma olhada para a mansão e estremeceu. - Ah, isso não pode tá acontecendo...
- Mas tá. - Eu chutei a porta do carro e ouvi Bianca xingar quando me seguiu de volta até o portão. - Anda, corre.
A gente conseguiu voltar para dentro da casa bem antes da chuva cair de vez, tão forte que pensei se as árvores na calçada sobreviveriam à noite.
Bianca me olhou, pingando água no meio da sala de estar, tremendo e furiosa.
- Eu vou preparar um banho quente para você - falei, querendo fugir do seu lado antes que ela jogasse algo pesado em mim, como um daqueles castiçais na lareira.
- É o mínimo. E vai me fazer um jantar também. - E enquanto a gente andava pelo corredor, a ouvi sussurrar algo nada lisonjeiro sobre enfiar as malditas velas do carro em um lugar em específico do meu corpo.
Suspirei. Seria uma longa noite.
_______________________❤️________________
Oii, gente!! Como vocês estão?
Mais um capítulo de Caça Tesouros e Amores!! Espero que vocês tenham gostado <3
Esse cap foi maior e teve muitas revelações. Vocês acham que o que o Samu e a Bia descobriram sobre os avós é ou não verdade?? Quero ouvir tudo!
O próximo capítulo é um dos meus queridinhos, e sai no domingo que vem. Prontos para uma noite na mansão dos Dutra?
Um beijo e até mais,
Ceci.
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