Capítulo XXV [PARTE QUATRO]







A P R I L


O MOVIMENTO ERA INDOLOR, quase instintivo. Meu polegar se arrastava sobre a unha quebrada, dobrando-a para cima e para baixo. Queria arrancá-la fora. Faria isso se tivesse um alicate ao meu alcance. Cortaria curta, rente ao sabugo. Ou talvez não. Eu gostava da pequena agonia envolvida em dobrar uma unha quebrada e, naquele momento, qualquer distração era bem vinda — tudo para tirar meus pensamentos da confusão que deixamos para trás.

Quando os meninos inventaram de fazer uma última parada antes de encerrar a noite, eu não quis ser a estraga prazeres a implorar para ir para casa. Não conseguia entender onde eles encontravam apetite. Por mais que meu estômago estivesse embrulhado e eu não suportasse a visão de um prato de comida na minha frente, permaneci em silêncio, dedos afundados no braço de Hunter. Eu estava assustada. Qualquer barulho mais alto que uma risada me fazia saltar. Era como se meu corpo antecipasse o ataque do próximo desgraçado bêbado.

Se Hunter estava minimamente abalado com o que havia acontecido momentos atrás, ele fazia um ótimo trabalho em não deixar transparecer. Quanto mais nos afastávamos do maldito pub, mais relaxada sua postura se tornava. É claro. Campbell se metia em tanta confusão que deveria estar acostumado a atingir em uma semana a mesma quantidade de picos de adrenalina que eu atingia em um mês.

Ele me envolveu pelos ombros e sussurrou em uma voz rouca:

— Sua amiga vai enlouquecê-los.

Minha testa se encrespou em confusão.

Nós caminhávamos em direção à lanchonete, uma distância considerável já que a única vaga do quarteirão espaçosa o suficiente para comportar a van ficava na outra rua. Zoe andava ao lado de Zack enquanto Seth abria caminho com Lexie pendurada em suas costas — a menina ria, seus braços içados ao redor do pescoço dele.

Não encontrei Jackie.

Quando comecei a me remexer demais, Hunter fez um sinal para algo atrás de nós: Finch e Jackie nos seguiam de perto, caminhando em seu próprio ritmo. Deus do céu. Os olhares furtivos e sorrisos tímidos não negavam: eles estavam flertando. Assisti boquiaberta o momento em que Finch tirou um sutiã de renda branco do bolso e entregou a ela — o mesmo sutiã que minha amiga havia jogado no palco mais cedo.

Com muita dificuldade, voltei meu rosto para frente.

Meu Deus!

Será que Hunter viu a mesma cena que eu?

Eles mal conseguiam se encarar sem sorrir.

— Eu li seu blog — a voz de Finch vinha de algum lugar atrás de mim, soava cada vez mais próxima — Tive uma ideia de post.

Jackie riu pelo nariz, seu par de Air Jordan se destacava em seus pés, esmagando pedrinhas soltas no chão:

Stalker.

— Quer calar a boca? — ele a empurrou com o ombro, suas mãos enfiadas no bolso enquanto nos ultrapassava.

Quando uma risada ameaçou escapar pela minha boca, meus olhos encontraram os de Seth. Ele carregava uma expressão difícil de encarar: seu maxilar se destacava sob a pele e um cigarro apagado pendia de seus lábios. Mirava a dupla que andava lado a lado. Depois de vários segundos, voltou sua atenção para o isqueiro em suas mãos e para Lexie, que havia descido de suas costas.

Meu sorriso morreu na mesma hora.

Eu sabia que ele tinha alguma coisa com minha amiga, mas nada sério. Pelo menos, não da parte de Jackie — ela jamais corresponderia aos sentimentos de alguém como Seth. Jackie precisava de alguém que a desafiasse, que tivesse objetivos parecidos com os dela e fosse capaz de sustentar uma conversa por mais de cinco minutos sem enfiar bebidas ou festas no assunto.

— Você acha que Seth gosta da Jackie? — cochichei.

Hunter caminhava ao meu lado, seu braço ao redor dos meus ombros. Descobri que gostava de caminhar assim. A rua estava congelando e o corpo dele me aquecia. Ninguém estranhou ou olhou para nós uma segunda vez. Encaixada em seu abraço, me perguntei por que não havíamos feito aquilo antes.

Quando estava começando a acreditar que Campbell não me responderia, ele liberou um longo suspiro:

— Não sei — disse baixo — Seth é meu melhor amigo, mas noventa por cento do tempo não faço ideia do que se passa na cabeça dele. Ele não faz o tipo sentimental. Acho que ele sequer gostou de alguém antes.

Eu não estava esperando por uma resposta tão completa.

Hunter era bastante reservado. Se não fosse por nossas brigas constantes, nós mal teríamos conversado nos últimos dias. Quer dizer, Seth era seu melhor amigo, seria compreensível se ele se esquivasse da minha pergunta. Parecia bobo ficar impressionada com algo tão pequeno, mas eu não estava acostumada a receber tanta sinceridade — não dos meus amigos, nem mesmo da minha família.

A expectativa alimentava uma pequena chama que se acendia no meu interior.

Será que, além de tudo que já éramos um para o outro, nós poderíamos ser amigos?

Quer dizer, nós fazíamos tudo que amigos não faziam. Meus lábios ainda estavam quentes com a lembrança do nosso último beijo. Nós dormíamos juntos, fazíamos sexo. Tínhamos compartilhado todo tipo de intimidade, menos essa — a de conversar, baixar a guarda.

Seu abraço se apertou ao meu redor.

Se aquele era seu jeito de me oferecer distração, estava funcionando.

— Seth também não é conhecido pela paciência — acrescentou — Não é cego — seus olhos azuis pairavam sobre o garoto de cabelos ruivos, que tragava um cigarro metros adiante — Ele sabe que sua amiga não o quer, só não consegue dar o braço a torcer.

Jackie e Finch caminhavam lado a lado, suas mãos mal se tocavam. Mesmo com as alfinetadas, eles pareciam mais leves, quase sintonizados na mesma frequência. Nada parecido com o tipo de relacionamento que Jackie tinha com Seth.

— Você acha que ele vai fazer alguma coisa? — Busquei seu rosto, sem saber se deveria ficar preocupada ou não — Consigo imaginar Seth arrumando todo tipo de problema, menos esse. Ele não brigaria por ciúmes.

Para mim, a mera hipótese chegava a ser absurda. Queria rir, mas esperei por uma confirmação de Hunter.

— Eu concordo com você — uma linha de preocupação surgiu entre suas sobrancelhas — Mas Seth nunca lidou bem com esse tipo de rejeição.

— Como assim?

— Uma que realmente importe.

Não muito longe de nós, Seth expelia uma coluna de fumaça pela boca, um cigarro aceso entre seus dedos.

— Depois de tantas derrotas nos Jogos Internos do colégio, você deveria imaginar que alguém como nós estaria acostumado a perder, não é? — ele sorriu seco — Bom, não o Seth. Ele não dá a mínima se as coisas na escola vão mal ou se a vida em casa é um inferno. A cabeça dele está em outro lugar. Ele dá valor a outras coisas. A pessoas, talvez. Não sei.

Uma expectativa desastrosa pairou sobre nós. Seth era intenso. Se quando ele estava bem, a noite se desenrolava dessa maneira, eu não queria descobrir o que acontecia quando ele estava mal.



H U N T E R

Fresco's era uma lanchonete retrô no sentido mais amplo da palavra. Se o estabelecimento tivesse mudado alguma cadeira de lugar nos últimos trinta anos, seria muito: seu interior lembrava o que deveria ser o cruzamento de uma franquia extinta de fast food dos anos 80 com uma loja de conveniência vinte e quatro horas. Um pouco deprimente, mas servia uma ótima comida.

Nós atravessamos a porta dupla e o estabelecimento vazio nas primeiras horas da madrugada foi preenchido pelo som de vozes indistintas e conversas alteradas. De alguma forma, nosso pequeno grupo havia se multiplicado: seis ou sete outros sortudos conseguiram escapar do pub ilesos e se juntaram a nós após se perderem de um grupo maior. Dividimos-nos entre as mesas coladas à janela de vidro que ocupava uma parede inteira e uma garçonete começou a anotar os pedidos em seu bloquinho.

O clima estava péssimo. A maioria aguardava notícias de namorados ou amigos que ficaram para trás no meio da confusão. Não passou despercebido por mim que April não largava do celular, desbloqueando a tela do celular de dois em dois minutos.

Quando a garçonete finalmente terminou de nos atender, uma das garotas levantou das banquetas aos prantos e foi embora seguida da amiga.

Zack foi o próximo a desaparecer da mesa. Ele levou o celular na mão, parecia tenso. Ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo, mas o fluxo de mensagens de textos, ligações e postagens era como uma enorme teia de aranha que mantinha todos imobilizados de medo.

Não queria pensar sobre isso.

Eu estava sentado ao lado de April, minha mão sobre sua coxa. Ela não tinha me estapeado ainda, o que era um bom sinal. Esfreguei meus dedos sobre sua pele macia, ainda gelada depois da caminhada na rua. April estreitou os olhos para mim e sussurrou baixo:

— Eu não sou sua bolinha anti stress.

Que exagero.

— Você está congelando, amor — não segurei um sorriso convencido — Eu só quero ser útil.

Eu me recostei no banco, satisfeito com o som daquela frase. Dançava sobre a linha da ambiguidade, entre o malicioso e o acidental. Mesmo em meio a tanto barulho, nossos amigos continuavam curiosos para entender o que acontecia entre nós. Pendurado no outro banco, Seth meneou a cabeça. Zoe coçou o pescoço e desviou o rosto, rindo para a janela.

— Nós tínhamos um acordo — April se aproximou devagar, seus olhos escuros em chamas — Sem provocações em público, lembra?

Rubor coloria seu rosto.

Ela estava excitada.

Deslizei meu braço sobre o encosto do banco, envolvendo os ombros de April, e uma risada vitoriosa escapou dos meus lábios. Provocá-la, por mais irresistível que fosse, não estava em meus planos. Odiava aqueles adolescentes cheios de hormônios que se agarravam em público na primeira oportunidade que tinham. Nós não éramos assim, nem queria que fôssemos. Quando eu a tocava, mais do que simples desejo queimava na ponta dos meus dedos. Um sentimento próximo de adoração me trazia para perto dela. Não bastava ver, eu precisava tocar.

Eu me encaixava à April. Minhas mãos buscavam pelo calor de sua pele e, antes que eu sequer pudesse registrar o movimento, eu a tinha sob o alcance dos meus dedos — tão natural quanto um instinto, eu precisava dela.  Era um conforto silencioso, agia como uma droga, envenenando no meu sistema nervoso, e quase me distraía do meus problemas atuais.

Nós provamos da paz por exatos três minutos, o tempo que foi necessário para Zack terminar sua ligação e retornar à mesa. April e Zoe mal haviam engatado uma conversa quando ele deslizou sobre o assento vermelho:

— Era o Stubs, do time de futebol — explicou, o celular ainda aberto em sua mão — Oliver Bratter e Angus McCain levaram a pior. Angus foi levado para emergência com duas costelas quebradas e está tossindo sangue. Oliver desmaiou no caminho do hospital, eles acham que foi uma concussão.

Fodeu.

A conversa na lanchonete se reduziu a um burburinho. Olhares apreensivos se voltaram para nossa mesa, curiosos para ouvir as notícias.

Zoe fez a pergunta que todos queriam fazer:

— E os outros? — seus cabelos caíam sobre seus ombros e vermelho se espalhava pelo curativo em sua testa. Se Zack tivesse o mínimo de senso, ignoraria os olhos meigos da namorada e a levaria direto para porra de um hospital.

Sentada ao meu lado, April se endireitou sobre o banco. Coluna muito reta, unhas agarradas à mesa e corpo inclinado para frente. Apesar dos meus esforços, a preocupação não havia deixado seu rosto desde o momento em que subimos na van.

— E meu irmão?

Merda.

— Esses são os casos mais graves — Zack se recostou ao banco devagar — O resto deve ter ido para casa.

April assentiu, sua respiração presa à garganta:

— Ele não me ligou ainda, mas acho que isso é normal.

Meus olhos caíram para suas mãos inquietas, entrelaçadas sobre seu colo. Eu queria segurá-las, mas fazer isso enquanto escondia minha pequena participação nos planos de Cole parecia no mínimo errado. Se April descobrisse que eu acobertava seu irmão e conspirava pelas suas costas, ela não ficaria feliz.

Antes que o silêncio se tornasse constrangedor, a voz de Jackie surgiu de uma mesa atrás da nossa:

— Mas por que isso aconteceu? — ela aquecia as mãos em uma caneca de café — Por que tanta violência?

Eu podia vê-la sobre o ombro do Zack, sentada de frente para nós com Finch e Lexie ao seu lado. Seth estava de costas para nós, mas apoiava seu braço sobre o assento de seu banco. Mais algumas cabeças estavam voltadas na nossa direção, mas nenhum daqueles rostos era conhecido o suficiente para pertencer a um nome.

Zack se inclinou sobre a mesa e levou uma mão aos cabelos, um gesto nervoso:

— Brigas acontecem.

— Não desse jeito — ela arqueou as sobrancelhas, sugestiva.

Meus pensamentos vagueavam entre os últimos acontecimentos quando um barulho chato de um canudinho de plástico sugando o ar de um copo de refrigerante se tornou alto demais para ser ignorado. Seth não percebeu que incomodava até erguer os olhos e encontrar a repreensão silenciosa estampada no rosto de todos:

— O que foi? — ele quase riu — É um bar de motoqueiros, não um baile da escola. As coisas podem ficar muito feias, muito rápido.

Apesar da postura desdenhosa de Seth, a menina sequer hesitou:

— Eles espancaram dois garotos.

— Todo mundo sabia que uma hora ou outra isso iria acontecer.

— Não — Finch tinha os braços cruzados sobre o peito — A possibilidade de dar merda sempre foi real, mas nenhum de nós imaginava que seria tão feio.

Seth voltou a prestar atenção em sua bebida, retirando a tampa do copo de plástico em um movimento brusco. O gelo voou sobre a mesa e uma menina sentada à sua direita gritou. Ela se levantou em um pulo e sua blusa branca encharcada de Pepsi ficou à mostra para todos nós.

O humor da menina pareceu apenas piorar ao ouvir a risada de Seth:

Valeu, babaca.

— Lacinhos... — ergueu as sobrancelhas para o sutiã destacado sob a blusa transparente — Quer dizer, Lana....

Ao invés de responder, ela catou o gelo sobre a mesa e jogou um punhado no rosto dele. Saiu pisando forte, seus saltos quase perfuraram o chão. Enquanto os caras da outra mesa aplaudiam a cena, Finch pareceu não achar graça:

— Precisava fazer isso?

Gotas de refrigerante escorriam da testa de Seth até seus cílios. Ele não se incomodou em secar o rosto. Sacou um cantil do interior de seu casaco e misturou o conteúdo ao que sobrou da Pepsi:

— Não banque o moralista, Abberley — voltou a encarar o amigo — Foi um acidente, assim como o que aconteceu no pub. O lugar era uma panela de pressão, tivemos sorte de sair inteiros.

— Não graças a você.

Os lábios de Seth se arregaçaram em um sorriso parecido com um rosnado enquanto seus olhos queimavam em uma diversão perversa:

Como é?

Eu respirei fundo, preparando meus ouvidos. Todos estavam estressados, com o pior humor depois da noite que tivemos. Era só questão de tempo até começarem as discussões.

— Isso não importa — Zack ralhou — Não podemos voltar lá. A banda precisa encontrar um novo lugar ou vamos suspender tudo.

Protestos irromperam de todo canto. Alguns concordavam com a ideia, outros pareciam prontos para discutir. Eles insistiam que tinham tanto direito de frequentar o pub quanto os filhos da puta que espancaram Angus e Oliver.

Mantive minha cabeça baixa, ouvindo tudo.

— É o nosso lugar — um deles argumentou — Onde mais podemos ir?

— Espera — Seth decidiu derramar sua sabedoria sobre o assunto: — Estamos falando em nunca mais pisar lá? Isso é um pouco extremo. Dê duas semanas e deixe a poeira baixar. Vai voltar ao normal rapidinho.

Não percebi que agitava o pé contra o chão até que April colocou a mão sobre meu joelho. Ela me lançou um olhar significativo, aproximando seu rosto do meu:

— Tudo bem?

Fiz um gesto afirmativo com o queixo e voltei a estudar a postura dos meus amigos.

Eu não podia deixá-los voltar. Não era seguro. Prometi a mim mesmo que contaria a verdade assim que a noite acabasse, mas não queria levar a culpa sozinho. Cole deveria estar aqui. Ele, sim, devia uma boa explicação a todos.

Porra. Não era justo que a fúria da irmã dele caísse apenas sobre mim. April jamais entenderia. Ela me culparia, assim como eu me culpava, e esse pensamento fez meu estômago revirar. Nossas mãos não se tocavam mais, eu mal olhava para seu rosto.

— Vocês viram o que aconteceu — o vocalista insistiu, dessa vez, em tom definitivo — É perigoso.

Que se foda.

Não podia ficar calado enquanto os outros reclamavam sem saber o que os aguardava.

— Zack está certo — ergui minha voz sobre o barulho, chamando a atenção de todos para mim — Da última vez que estivemos no pub, os homens da Sick Rabbit deram um aviso: nós não somos mais bem-vindos para tocar lá.

Antes que eu pudesse terminar a frase, o burburinho de conversas infestou a lanchonete. April virou pedra ao meu lado. Enquanto Lexie me encarava com as sobrancelhas erguidas, meus amigos mal piscavam, atordoados com a nova informação. Zack foi o único que não se deixou levar pela surpresa: o choque desapareceu de seu rosto e rapidamente foi substituído pela fúria.

— Você sabia que isso estava para acontecer e mesmo assim nos deixou voltar? — seus olhos cravaram em mim, ardendo em julgamento — Que merda você estava pensando?

A julgar pelo desprezo em sua voz, eu sabia que ele poderia me culpar por isso para sempre.

— Nós precisávamos do dinheiro — dei de ombros — Era o único jeito.

Zack não podia jogar a culpa em mim e esperar que eu aceitasse tudo como a porra de um mártir. Eu precisava manter as coisas simples, se não nós perderíamos a razão juntos.

— De acordo com quem? — parecia a ponto de gritar — Quem em sã consciência colocaria dinheiro acima do bem estar dos amigos, Hunter?

— Cole.

Bastou ouvir o nome e ele caiu de seu cavalo. Foi uma queda abrupta e violenta, de partir a cabeça. Sequer discutiu se o amigo era capaz ou não de fazer uma coisa dessas. Em questão de segundos, toda sua arrogância ficou para trás e a traição lavou seu rosto como as águas da maré.

E ele não foi o único.

— Vocês colocaram todos nós em perigo? — Finch apoiou seus cotovelos sobre a mesa — Foda-se o dinheiro. Angus e Oliver estão no hospital agora porque vocês decidiram testar uns caras de uma gangue?

Enquanto alguns não escondiam a decepção, Finch queria colocar algum sentido naquilo tudo. Ele pedia sinceridade.

— Não — disse com firmeza — Todos nós sabíamos que era arriscado frequentar aquele pub. É um bar de motoqueiros, porra. Pertencia a Sick Rabbit muito antes de nós chegarmos e agora eles tomaram de volta.

Mesmo que estivesse em silêncio, eu sabia que April tinha uma opinião sobre o assunto. Ela parecia uma estátua ao meu lado, petrificada em horror.

Liberando um longo suspiro, Zack levou uma das mãos aos cabelos castanhos e os puxou para trás. Sob as luzes fluorescentes da lanchonete, suas olheiras ficaram ainda mais evidentes em sua pele:

— Mesmo assim — sua voz não tinha metade da energia de antes — Se eles mandaram um aviso ou seja lá o que fosse, nós tínhamos o direito de saber. Vocês não podiam tomar uma decisão dessas sem nos avisar.

— Eu te poupei de uma decisão difícil, Zack — minha garganta estava áspera — Nós conseguimos o dinheiro e não vamos mais nos apresentar lá. Fim da história.

Encarei cada um daqueles rostos e os desafiei em silêncio. Não podia mudar o que havia acontecido naquela noite, nem consertar meu erro, mas podia cuidar para que aquela merda não se repetisse. Fiz a minha parte, avisei que não podíamos mais voltar sob nenhuma circunstância.

O que mais eles queriam?

Eu me sentia péssimo, mas não podia assumir a culpa de tudo sozinho. Se eu começasse a me desculpar agora, aquilo nunca mais acabaria.

— Não ouviu o cara? — Seth perguntou alto, arremessando pedrinhas de gelo nos ombros de alguém — Coma suas batatas que você ganha mais, James.

Aos poucos, os curiosos se acomodaram em suas próprias mesas. As conversas difusas se tornaram um pano de fundo distante para o desconforto palpável se instalou entre eu e meus amigos. Eu ainda me sentia prestes a vomitar. Ao meu lado, April não aguentou. Colocou-se de pé ao meu lado e pediu passagem em meia voz, empurrando-me gentilmente.

— April? — Chamei hesitante, recolhendo minhas pernas do caminho. Ela não olhou para mim. Seus cabelos castanhos escondiam seu rosto enquanto deslizava para deixar a mesa, joelhos roçando nos meus — April?

Não queria soar desesperado. Esperei que ela seguisse até o banheiro, mas seus passos seguiram porta a fora sem hesitação.

Merda — Xinguei baixinho, pulando para me levantar do banco.

— Hunter? — Zack me chamou confuso, apontando para a mesa. A garçonete estava de volta com os cafés, posicionando as canecas na mesa.

— Já volto! — gritei de volta, deixando-os para trás — Cinco minutos!



Você passou dos limites — a voz dela soava trêmula, agitada — Passou dos limites, está me ouvindo?

Eu a avistei escondida entre dois carros. April andava de um lado para o outro com um celular grudado ao ouvido. Tinha o rosto voltado para baixo, segurava a testa com a mão livre.

— Eu não posso acreditar que você fez uma coisa dessas, Cole — disparou de novo, sem fazer pausas — Meu irmão — resfolegou para si mesma e voltou a esbravejar: — Me liga de volta. Me liga de volta, está me ouvindo?

Ela afastou o celular do rosto, encarando a tela com as sobrancelhas franzidas. Foi quando me viu, parado no meio da rua, mãos enfiadas nos bolsos. Em um rompante, agarrou meu braço com as mãos e me puxou para trás de um veículo:

— Que droga, Hunter.

Ignorei a reprimenda em seus olhos castanhos, mais concentrado no vermelho do choro em seu nariz. Ela fazia de tudo para parecer durona, observando ao redor como se tivesse medo de ter sido seguida até seu esconderijo.

— Está tudo bem com você?

— Comigo? — parecia quase irritada — Não importa. Nós devemos um puta pedido de desculpas para aqueles dois meninos que foram parar na emergência, isso sim. Sabe aquela menina, a que saiu correndo? Oliver Bratter é namorado dela.

— Não foi culpa sua — meneei a cabeça — Foi minha e do Cole.

Ela deixou o corpo encontrar a traseira de um dos carros, uma de suas mãos cobriu sua testa, desarrumando seus cabelos longos escuros. Eu me movi em sua direção como um imã e encaixei meus pés entre os dela. Fazia frio, o ar entrava meus pulmões cortando. Ainda assim, ficar lá fora parecia melhor do que voltar para o ambiente claustrofóbico da lanchonete.

— Nunca quis que isso acontecesse — expliquei em voz baixa, segurando seu rosto com as pontas dos dedos — Nunca quis que alguém se machucasse, April.

— É, mas você sabia que isso poderia acontecer — a acusação acendeu um brilho em suas íris castanhas — Você não pode se subordinar a fazer tudo que meu irmão manda, Hunter. Você não é assim — eu desviei o rosto, incomodado — Tudo isso para recuperar o dinheiro.

— Foi burrice, tá legal?

— O que mais ele fez? — continuou como se eu não a tivesse interrompido — Eu sei que tem mais.

Levei minhas mãos à nuca e reprimi um grunhido. A merda tinha atingido o ventilador por minha causa. April sabia da Sick Rabbit, mas não fazia ideia do envolvimento de seu irmão naquela confusão. Eu não queria ser a pessoa a contar para ela sobre o esquema arquitetado por Cole. April o adorava e, com toda certeza, sobraria para mim em algum momento. Ela precisava ouvir da boca dele — se é que esse desgraçado se atrevesse a contar a verdade.

— Fale com seu irmão — ela meneou a cabeça para minha sugestão e eu insisti: — Pergunte a ele, April.

— Não — a menina arfou, exasperada — Sabe quanta merda eu tive que ouvir do meu pai por causa dele? Quantas vezes eu o defendi? Eu disse ao meu pai que Cole sabia o que estava fazendo. Que ele era responsável, que tinha tudo sob controle. Pior ainda, eu acreditei.

Ela esbravejava enfurecida, mas seus olhos brilhavam em lágrimas.

Eu não queria vê-la assim.

— Você defendeu seu irmão. E daí? — murmurei, afundando meus dedos em seus cabelos macios. Nós estávamos mais próximos agora. Eu queria abraçá-la — Você errou, mas não vejo como tudo isso faz você culpada.

— Eu só não queria acreditar que ele era mesmo um filho da puta — um sorriso mínimo despontou em seus lábios — Só isso.

April suspirou em meus braços e seus olhos marejados desceram para minha boca.

Eu a beijei. Tão suave quanto pude.

— Vamos — limpei a garganta — Vou te levar para casa.

Isso a fez rir. Um som tímido, que me aqueceu por dentro.

— Quer dar calote nos seus amigos, Campbell? — ela continuava parada no mesmo lugar — Nós não pagamos os cafés. Minha bolsa também ficou lá.

Eu grunhi, entendendo seu ponto.

— Anda — envolvi seus ombros e a puxei para mim.

Assim que dei os primeiros passos em direção a lanchonete, April travou seus pés contra o chão. Eu a encarei, esperando por uma explicação. A menina tinha bochechas coradas, olhos hesitantes e cílios molhados com lágrimas. Não chorava, mas seu nariz continuava vermelho.

Eu senti vontade de beijá-la de novo.

— Todo mundo estava me encarando — ela parecia envergonhada demais para admitir que tinha medo de voltar.

— April — censurei devagar — Não acha que isso é um pouco egocêntrico?

— O quê?

— Se você sente culpa, tudo bem, mas tente não dar tanta importância a si mesma. Não se coloque no centro dessa situação.

Quase ri da expressão que ela fez.

— Babaca — me empurrou para fora do caminho — Eu não estou tentando me colocar no centro.

Passou por mim toda estressada, suas botas esmagando tudo que via pela frente. Eu sorri de leve e a segui de perto. As pessoas poderiam até fazer comentários, curiosos a respeito de seu irmão, mas esse medo não deveria paralisá-la. Além do mais, queria ver alguém tentar dizer alguma palavra sobre April comigo ao seu lado.




A P R I L


Não havia chamadas perdidas ou mensagens de texto não lidas. Desde minha última tentativa de contatar Cole, meu celular continuava tão morto que tive que checar duas vezes se estava com sinal. Meu irmão não tinha se dado ao trabalho de retornar minhas ligações e nem se preocupado o suficiente para checar se eu estava bem. Se não fosse a confirmação de uns amigos de Zack, eu sequer ficaria sabendo que ele havia saído do pub antes da confusão estourar.

Tudo bem. Meu irmão já havia passado muito mais tempo sem dar qualquer sinal de vida. Eu queria me convencer de que isso não era necessariamente um problema, mas nada com essa proporção havia acontecido antes.

Hunter encostou seu joelho no meu e sua voz baixa atravessou meus ouvidos:

— Tudo bem?

Em resposta, eu me aconcheguei ao seu peito. Nós estávamos de volta à lanchonete, cercados por nossos amigos. Depois da minha saída furtiva, todo resto havia se dispersado, talvez satisfeitos com o desfecho da noite — pelo que ouvi, ninguém mais havia se ferido com gravidade. Por mais que Zack nos encarasse um pouco demais e Finch por vezes demonstrasse estar completamente puto com Hunter, nós decidimos ficar mais um pouco.

Uma batata frita pousou sobre a mesa e ergui meus olhos para frente, encontrando o rosto corado e sorridente de Seth. Joguei a batata de volta para ele, que abriu a boca tarde demais para tentar comê-la. Quando a batata caiu, Seth se abaixou para procurá-la e a levou à boca sem pensar duas vezes.

— Para de beber, cara — Hunter sugeriu — Você vai se arrepender amanhã. 

— Fale por você — Seth respondeu em uma voz arrastada, arrancando algumas risadas dos meninos. Em seu copo de plástico, havia mais do que só refrigerante misturado aos cubos de gelo — Cuzão.

Hunter levou sua caneca de café até a boca, mas parou momentos antes de bebericar do líquido fumegante:

— Isso nem fez sentido.

— A ressaca agora já é inevitável — Zack testou um sorriso, debruçando-se sobre a mesa — Resta saber o quão ruim vai ser.

Mais cedo, o vocalista explicou para nós a saída dramática do pub. Aparentemente, Seth não gostou de como trataram umas garotas no pub e uma sucessão de eventos culminou na brincadeira que fez com que todos nós fôssemos perseguidos pelo cara com a parte superior do corpo de um Max Steel.

Apesar de sentir taquicardia só em lembrar do homem correndo atrás do furgão, sumindo e aparecendo sob a iluminação dos postes, eu precisava admitir: aquilo foi bem decente da parte de Seth.

— Isso aqui vai sobrar — Zack ergueu o cestinho de batatas fritas para a namorada — Zoe? Ainda está quente.

Toda vez que nos reuníamos para comer, ele fazia o mesmo pedido: uma porção grande de fritas com cobertura adicional de cheddar e bacon. A gordura fazia manchas no papel e uma generosa quantidade de queijo derretido se amontoava sobre as batatas, grudando tudo em uma massa uniforme.

— Não, obrigada — ela ergueu seu café — Eu estou bem.

— April?

Meneei a cabeça em resposta.

— Que isso? — Finch liberou uma risada frouxa na outra mesa — Vocês estão de dieta ou algo assim?

— Quase — quando ele franziu o cenho para mim, expliquei: — Fiz um piercing.

Em silêncio, Hunter enroscou seus dedos nos meus cabelos e os puxou para trás, procurando por uma joia nova. Ele estava distraído, bem mais calmo do que em comparação a horas atrás. Seus olhos azuis percorreram minhas orelhas em uma inspeção minuciosa e inocentemente passaram para o meu rosto, examinando cada traço como se o visse pela primeira vez.

Eu sorri para sua curiosidade.

— Onde? — ouvi alguém perguntar — Não estou vendo.

— É porque furei os mamilos.

O braço que envolvia meus ombros enrijeceu, assim como o resto do corpo de Hunter. O movimento de seu peito era artificial, ensaiado. Ele mal respirava, tenso demais para falar. Envolvi sua mão paralisada com um sorriso nos lábios e a retirei dos meus cabelos, entrelaçando nossos dedos sobre minha coxa.

Seth teve uma crise de tosse na outra mesa. Ele se voltou para frente com o rosto vermelho e parecia se afogar no seco, talvez sufocando uma risada.

O resto dos nossos amigos se esforçava para não esboçar uma reação:

— Ah — Finch tinha os olhos distantes, perdidos no meu decote — Legal.

Jackie revirou os olhos para os meninos e levou um canudinho de refrigerante à boca.

— Ficou bonito — ergueu seu copo para mim.

— Obrigada — a vontade inexplicável de rir quase embargou minha voz — O seu também.

Finch piscou algumas vezes ao lado dela, atordoado demais com a nova informação.

Quando o silêncio ameaçou se prolongar demais, eu completei:

— Jackie e Zoe aproveitaram a ocasião e decidiram furar também.

Zack encarou a namorada com um olhar que me pareceu ser de pura aflição. Eu observei seu pomo de Adão subir e descer rapidamente, esperando por uma resposta.

— Não os mamilos — Zoe corrigiu — Só a orelha mesmo.

O assunto capturou a atenção de Seth, que se empoleirou sobre o banco mais uma vez.

— Como foi isso mesmo? — coçou os cabelos ruivos, fingindo desinteresse, mas seus olhos o entregavam — Vocês ficaram nuas no estúdio ou algo assim?

— Seth — minha amiga grunhiu para a suposição — Quer calar a boca?

— Jackie, querida — ele sorriu — Me faça um favor e descreva com o máximo de detalhes possíveis, sim?

Simples assim, a mesa se tornou uma zona de guerra.

— Vamos pedir a conta? — Zack suplicou — Onde está a garçonete?

Hunter abriu a carteira e deixou uma nota sobre a mesa, dinheiro o suficiente para pagar por nossos cafés. Ele deslizou para fora do banco e seus olhos azuis famintos caíram sobre mim. A tensão em seus ombros e seu maxilar destacado sob a pele deixava uma mensagem clara: aquilo era um pedido, uma ordem. Eu agarrei minha bolsa e fui atrás com um sorriso, sem dar explicações.



Assim que nos distanciamos da lanchonete, Hunter me abraçou por trás e suas mãos passearam pela minha cintura:

Piercings!

Seus lábios desceram pela minha nuca, espalhando arrepios por todo meu corpo.

— São meus seios — defendi, tentando me soltar — Eu faço o que quiser.

Eu estava presa em seus braços. As mãos dele estavam em todo lugar. O som de sua respiração descompassada me fez tremer, soava tão falha e abafada quanto sua voz:

— Você deixa alguém perfurar sua pele com metal, mas reclama quando uso meus dentes.

Hunter não mordia. Massageava, sugava e até mordiscava, mas não mordia. Ele me tocava com adoração, beijando molhado e afundando seus dedos em mim. Fazia provocações e me deixava louca, mas jamais me machucava.

Meus olhos se fecharam pesados, revirando de prazer com sua boca em meu pescoço. Hunter trilhava um caminho do meu ombro até o pé da minha orelha. Puxou o lóbulo entre os dentes, pressionando sua virilha na minha bunda e eu arfei, me soltando com dificuldade:

— Hoje, definitivamente, você não vai morder nada.

Eu estava nervosa, com medo de dar alguma merda com o piercing. Não doía, nem nada, mas não queria arriscar. Era muito recente. Não queria que rolasse uma cena tipo Premonição no meio do sexo. Eu não tinha assistido os filmes, mas as cenas de morte mais famosas pintavam uma imagem clara.

Dei um passo ou dois em direção a calçada e olhei para trás, estranhando o silêncio. Sob a iluminação difusa dos postes de rua, Hunter me encarava como se tentasse descobrir o que faria comigo, demorando-se pelo corpo.

Depois de um breve momento, ele pareceu se decidir:

— Vou te levar para casa — decidiu, marchando em minha direção.

Não entendi o que ele pretendia fazer até meu mundo inteiro virar de ponta a cabeça. Hunter me jogou por cima do ombro e eu gritei de susto, tentando segurar minha saia no lugar. Tínhamos avançado menos de meio metro pelo asfalto quando ergui minha mão, juntando todas as forças que tinha para dar um tapa em sua bunda:

— Cuidado com meus peitos — grunhi — Seu bastardo.

— Isso é assédio — ele riu, incrédulo — Eu posso te deixar cair no chão, sabia?

— Não ouse.

Finalmente, Hunter desistiu da brincadeira e me desceu de seu colo. Antes que meus pés tocassem o asfalto, seus lábios estavam sobre os meus. Foi um beijo rápido, quase um selinho.

— Vamos — me guiou pela rua com pressa, arrancando uma risada da minha boca.

Nunca o vi dirigir aquela moto tão rápido quanto naquela noite.

Ele era mesmo maluco.









N/A (28/10/2021): SENTI MUITA FALTA DELES!!!!!!!!! SAUDADES DE VCS, DE TUDO!!!!

Mas chega de dias de luta ! Hoje é dia de atualização de BULLSHIT, uma história original do Wattpad.

O QUE ACHARAM DA CENA DO PIERCING?

Eu tava ansiosa por isso. Espero que vocês tenham conseguido matar a saudade, gostado do capítulo e tal.

Obrigada por lerem meu humilde livrinho. Tô bem boiolinha aqui, efeito dessas cenas Wribell, mas vocês fazem meu dia 🥺

ME AVISEM CASO VEJAM ALGUM ERRO OU BUG! Eu coringuei total e postei desse jeito mesmo, sem pensar mto, mas qualquer coisa me avisem! Talvez nos próximos dias eu retire alguns capítulos pra consertar e tal, mas não fiquem alarmados.

Beijocas,
B.

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