Capítulo XXIV [PARTE UM]




A P R I L


HUNTER NÃO ME PROCUROU DEPOIS DA AULA. Eu também não fui tola o suficiente para ir atrás dele. Nós não discutimos novamente, sequer trocamos olhares. Agimos o tempo todo como completos estranhos. Não me surpreendi quando ele foi embora ao lado dela. Eu já estava esperando por aquele desfecho — o pequeno show que Hunter protagonizou mais cedo havia deixado uma mensagem bem clara: vai se foder, April Wright.

Quer dizer, porra. Se Hunter queria provar alguma coisa para mim, ele estava se saindo muito bem.

De verdade, eu me sentia péssima. Os barulhos rotineiros do vestiário soavam abafados e distantes aos meus ouvidos, como se eu estivesse submersa em água. Desabotoei a saia e desci o zíper sem pensar. Meu estômago estava embrulhado. Não conseguia afastar da minha mente aquela cena. O sorriso dele, a forma como ela o tocava — parte de mim sabia que aquilo não era um jogo. Enquanto eu me lamentava, Hunter provavelmente já devia ter fodido aquela garota de cinco maneiras diferentes. Não importava se ele fazia aquilo para me atingir ou se fazia porque tinha vontade: eu não podia reclamar, sequer podia "terminar" com ele por aquele motivo. Não era como se tivéssemos um compromisso baseado em fidelidade.

Caralho.

Nós nem ao menos tínhamos um relacionamento.

Raspei a língua nos dentes, tentando me concentrar no presente.

Foco.

O vestiário estava quase vazio e eu não havia terminado de me trocar. A inspetora apareceu na porta e levou um apito aos lábios, seu aviso final. Ela precisava fechar o banheiro e entregar a chave na seção desportiva — sua última tarefa antes de encerrar o dia. Eu troquei a camisa social por um moletom cinza, que fazia parte do uniforme de educação física, e subi as meias grossas pelas minhas canelas. Lá fora estava frio, mas bem mais agradável se comparado ao último treino. Dei graças aos céus por ter aquele agasalho velho. Por fim, vesti um short que abraçava minha bunda como uma luva. Retirei o resto do meu equipamento do armário, travei o cadeado e vesti o cordão de fita que segurava meu chaveiro.

Tudo bem.

Futebol. Eu tiraria essa de letra.





Uma brisa atravessou o gramado, varrendo as folhas do chão. Eu deixei minha garrafa de água no banco, ignorando os assobios distantes de algum babaca, e me aproximei das meninas como da última vez. As conversas, antes animadas, caíram no silêncio. Não consegui decifrar se elas evitavam meu olhar por medo ou por vergonha. Todas pareciam se esconder de mim como se eu tivesse uma doença contagiosa. Todas menos Lexie, é claro. Ela conversava com uma amiga, mas fez questão de parar assim que me viu. Seus olhos verdes faiscaram para os meus em uma satisfação silenciosa.

— Já terminaram o aquecimento? — eu disse, quebrando a distância.

Depois do que pareceram minutos, percebi que não receberia uma resposta.

As meninas pareciam acuadas, olhavam para os próprios pés ou fingiam interesse em algo do outro lado do campo.

Cerrei os dentes com força.

Tudo bem. Foda-se. Eu estou no comando.

— Quem vai para o gol dessa vez?

Minha voz cortou o silêncio e eu pisei firme no gramado. Porra, eu não era imune aquela brincadeira. Minha respiração descompassada soava cada vez mais alta. Era inquietante ser ignorada daquele jeito.

— Tudo bem — disse decidida —, já que ninguém se habilita, eu vou.

Uma das garotas levantou o rosto e me lançou um olhar alerta, como se eu tivesse feito a escolha errada.

Bom, tarde demais.

Dei as costas para o time e vesti as luvas de goleiro enquanto me dirigia a trave. Sim, luvas. Pedi para minha mãe comprar o equipamento enquanto estava de cama ontem. Eu sabia que isso do gol poderia voltar a acontecer e precisava estar preparada. Não queria voltar a pegar emprestado um equipamento tão pessoal. As luvas de couro cheiravam à loja, assim como minhas chuteiras.

Havia um sorrisinho enfeitando meu rosto até o momento em que algo acertou minhas costas.

Caramba. Depois do último treino, já estava familiarizada com a sensação de levar uma bolada. Lancei um olhar sobre o ombro, tentando descobrir de onde veio o arremesso. Atrás de mim, encontrei uma menina vários centímetros mais baixa que eu me encarando com uma expressão mortificada:

— Me desculpa — ela deixou escapar por trás das próprias mãos, que cobriam sua boca — Não foi por querer.

A risada abafada de Lexie atravessou meus ouvidos. Ela virou o rosto para o lado e seu cabelo longo, preso em um rabo de cavalo, tremulou no vento.

Ignorei isso.

Chutei de volta e a bola aterrizou aos pés dela.

— Façam uma fila. Você começa.





O treino estava indo mal.

Muito mal.

Eu estava fora de forma. Nunca estive em boa forma, para falar a verdade. Odiava suar. Fazer exercícios era uma droga, proteger o gol era pior ainda. Juro por Deus. Meu pulmão estava em chamas. Se eu desmaiasse por falta de ar, eu mudaria de escola.

Quando finalmente achei que tinha encontrado um ritmo bom, um ponto branco se aproximando no horizonte me chamou atenção. O objeto esférico voava em nossa direção, encurtando a distância  a toda velocidade. Era uma bola de futebol. Acertou a cabeça de Lexie com força e ela se virou para trás, furiosa.

Não era minha, nem das outras meninas — eu tinha um bom controle sobre a bola, apesar de tudo.

O lance viera de um campo vizinho, bem menor. Um pedaço de terra retangular ficava encolhido entre o cercado de vôlei e a pista de atletismo que circundava o gramado — meu irmão me explicou que os meninos da Thomas treinariam ali naquela semana, enquanto o time feminino ocupava o maior.

Finch correu até nós com seus olhos verdes arregalados. Provavelmente, ele mesmo foi autor do lance que quase nocauteou Lexie.

Vários metros atrás, Hunter Campbell se recuperava de uma corrida e sorria como um filho da puta. Inferno. Não consegui afastar meus olhos de seu corpo. Eu sabia bem o que havia debaixo daquele uniforme. Porra. Eu conhecia o caminho da tentação e já havia descido lá várias vezes.

Fica fria, April.

Campbell irradiava prepotência enquanto caminhava sobre a grama. Passos firmes, ombros retos e maxilar marcado sob a pele. Se eu me aproximasse dele naquele instante, com certeza discutiríamos outra vez. Nós estávamos brigados, eu estava na eminência de um chute na bunda, mas continuava a desejá-lo como uma virgem excitada — a situação era frustrante e, francamente, até um pouco confusa para mim.

— Lexie — Finch se aproximou da menina, ajudando-a a se levantar — Caralho, foi mal. Você está bem?

Lexie levou uma das mãos ao topo da cabeça, massageando o local atingido. Sequer conseguiu responder antes de interromperem-na.

— Ela vai sobreviver, Abberley — Hunter gritou da extremidade do campo, secando a testa na própria camisa — Só passem a bola de volta para cá logo.

Finch ergueu os olhos de Lexie por um momento e fez menção de ir buscar a bola, mas Campbell o impediu:

— Não você, animal — ele vociferou e suas íris azuis caíram sobre mim em uma diversão feroz — Quis dizer elas.

As meninas trocaram um olhar incomodado, mas não se moveram. O tom de Hunter não foi gentil e ele não era exatamente famoso pelas boas maneiras também — isso apenas desencorajava qualquer um a se meter com ele.

— Vamos, moças — provocou — Qualquer uma serve.

A bola estava distante do gol. Eu não podia simplesmente abandonar a rede e atravessar o campo para arremessar a bola na cara do Campbell.

Porra.

Se as meninas continuassem atônitas por mais um minuto, talvez eu fizesse isso mesmo.

— Você — ele chamou — A de maria chiquinha. Não está longe. Chute a bola para cá.

As faces redondas de Erin estavam tingidas de vermelho. Não sabia se era pelo treino ou pela atenção repentina que recebia. Hunter bateu palmas, apressando a menina. Isso pareceu deixá-la mais nervosa. Ela deu um toque na bola, que não foi muito longe: fez uma curva e parou alguns metros à esquerda.

Boa — Campbell liberou uma risada irônica misturada ao fôlego.

As garotas do time se remexeram desconfortáveis. Graças a provocação, estudantes na arquibancada voltaram seus olhos para o campo de futebol, assim como os atletas, que haviam parado seus treinos para acompanhar a pequena movimentação.

Meu sangue gelou nas veias quando Hunter deu os primeiros passos em nossa direção.

Por Deus.

Ele não parava.

Finch percebeu isso também:

— Ei, cara — ele se colocou no caminho do amigo, segurando seu ombro, mas de nada adiantou.

Campbell estava decidido. Desvencilhou-se sem dificuldades e seguiu seu caminho como uma locomotiva desgovernada.

Você — a voz dele atravessou o gramado — Sentada no banco. Qual seu nome?

Eu murei por cima do ombro e encontrei a antiga goleira do time. Como eu ocupava o gol, Kate não tinha muito o que fazer. Ela estava sentada no banco, observando a tudo calada, sem ocupação definida. Havia outras jogadoras reunidas ao lado dela, apenas conversando para passar o tempo.

Meus olhos se estreitaram para Hunter.

O que você está planejando?

— Kate — finalmente respondeu.

Kate — Campbell repetiu — O que diabos você está fazendo sentada?

O rosto da menina ficou da cor de um tomate. Na mesma hora, seus olhos arregalados dispararam para Lexie em um pedido de socorro silencioso.

Por sorte, Lexie se aproximava com passos largos, pronta para responder como líder da equipe:

— Hunter — ela sorriu maliciosa — Nós estamos fazendo testes com a nossa nova goleira.

Campbell franziu o cenho.

— O que aconteceu com a antiga?

Por que ele agia como se fosse algum tipo de chefe?

— Campbell — chamei furiosa — Você não pode ficar aqui. Isso aqui é um treino da equipe feminina.

Um sorriso descarado deslizou por seus lábios, como se estivesse esperando por aquele momento.

— Engraçado você falar isso, April — ele se voltou para mim e suas íris azuis queimaram na minha pele — Porque não é o que parece da arquibancada — eu desviei o olhar, inquieta. Havia um grupo reunido próximo a grade, esperando pelo próximo espetáculo — Eu, pelo menos, só estou vendo meia dúzia de preguiçosas sentadas no banco e uma otária que gosta de se jogar na lama.

Minha respiração ficou presa na garganta.

Meus ombros permaneceram muito retos, cada vez mais tensos.

— O que você disse?

— Prestem atenção — sua voz se elevou — Nós só conseguimos reservar o campo para treinar duas vezes por semana depois de muito esforço. Enchemos o saco do setor de educação física por dias, fizemos mil reuniões com o conselho para organizar a agenda e corremos atrás de professores que não nos levam a sério — eu encarei os rostos dos meus colegas, que escutavam cada palavra com interesse. Até o resto do time masculino havia se aproximado, meu irmão entre eles — Essas pessoas na arquibancada rindo e vaiando... Elas não acreditam em nenhuma de vocês. Não acreditam em nenhum de nós. Toda vez que vocês decidem fazer essa merda, estão desperdiçando não só o tempo de vocês, mas o da Thomas inteira. Então, escutem o conselho de um torcedor preocupado: se continuarem com essa merda, vocês não vão muito longe na competição.

Meu rosto estava quente. O sangue acumulado em minhas bochechas chegava a pinicar. Eu não sabia o que responder.

Parte de mim entendia o problema. Nós havíamos ficado longe da taça do vencedor nos últimos vinte anos, pelo menos. Só tínhamos nosso lugar garantido no pódio porque não era possível nos rebaixar ainda mais. Eu olhei ao redor e encontrei meus colegas separados em diferentes estágios de compreensão — embora a maioria desse sinais de concordar com Campbell, nem todos o ouviam com a mesma satisfação.

Eu engoli em seco.

Hunter voltou a me encarar e, dessa vez, tive a impressão de que seus olhos se suavizaram. Foi muito breve, mas eu percebi a diferença: a miríade de azul intenso parou no meu rosto como se buscasse um sinal de compreensão.

Porra. Eu não tinha ideia do que Campbell pretendia fazer. Se aquele teatro era parte de um plano para me ajudar, como havia me prometido, então eu estava fodida.

Que plano bosta.

— Se esse é o melhor que a equipe feminina tem a oferecer — continuou ríspido, após a falta de resposta —, eu não estou impressionado.

Depois de uma pausa, acrescentou:

— O time masculino vai tomar o campo maior de volta — falou por cima do ombro, buscando a confirmação de seus colegas — Não faz sentido organizar um rodízio.

A julgar pelas suas expressões insatisfeitas, eles queriam o campo de volta e iriam tomá-lo.

Um burburinho rapidamente se alastrou pelo gramado, tornando impossível compreender o que acontecia. Todos tinham uma opinião sobre o assunto, alguns até gritavam, mas Hunter não se deixava intimidar pelo alvoroço. Ele umedeceu os lábios e sorriu cretino, afastando os fios molhados de suor de sua testa. O treino intenso havia trazido cor às maçãs de seu rosto e desalinhado seus cabelos escuros.

Naquele momento, seus olhos azuis me encontraram em meio a multidão e algo frio se espalhou pelo meu ventre.

O que você está fazendo, Campbell?

Eu olhei para as meninas, que discutiam indignadas. Para elas, eu havia deixado de ser o inimigo. Hunter havia assumido esse posto com gosto. Ele conseguia tirar qualquer um do sério, eu sabia disso muito bem.

Um assobio alto me chamou de volta para o campo. Era Finch.

Atrás de mim, Lexie bufou. Tinha os braços cruzados e uma expressão insatisfeita:

— Foi um ótimo discurso, Campbell, mas não é você quem decide isso — dirigiu um olhar para os meninos e encontrou rostos sérios, como se todos tivessem entrado em um acordo silencioso — Nem vocês.

Hunter não insistiu.

Apenas olhou para trás, para o campo menor, onde o time masculino se reunia. Meu irmão ouvia a discussão à distância, tinha os braços cruzados e apoiava seu ombro na trave do gol.

Quando Cole assentiu com a cabeça, uma exclamação coletiva escapou dos lábios das minhas colegas de time. Ele era o representante da Thomas, sua palavra final prevalecia sobre quase todos os assuntos.

Eu mordi a língua, tentando pensar em uma saída.

— Isso não é justo — ouvi uma voz feminina protestar.

Hunter liberou o ar em uma risada discreta e deu as costas, indo até a maldita bola:

— Acham que vão jogar como nós? Não vão.

Não consegui mais me segurar. Fui atrás dele, esmagando a grama sob minhas chuteiras com pisadas firmes.

— Tudo bem. Se vocês são tão bons assim — comecei, falando alto para que todos pudessem ouvir —, joguem com a gente.

Campbell hesitou. Ele se virou para mim, sobrancelhas encrespadas, e suas íris azuis queimaram em desafio:

— Ficou maluca?

Assim que o alcancei, o olhar de todos pesou sobre mim. Dessa vez, não me encolhi. Eu estava no meu elemento.

— Vamos dividir o campo — sugeri — Um treino misto.

Ele abriu um sorriso esperto. Se minhas suspeitas fossem reais e aquilo tudo não passasse de um teatro, Hunter não daria trégua — especialmente para mim.

— Vocês vão nos atrasar, princesa.

Nesse momento, Cole decidiu intervir. Ele se aproximou com passos firmes e se colocou entre nós como um mediador. Não havíamos conversado desde de manhã, quando brigamos no carro. Seus cabelos loiros, quase brancos, estavam penteados para trás e seu rosto era um conjunto de traços tensos.

— April tem razão — ele murmurou — É o melhor a se fazer. Assim, elas não perdem o campo e nós ganhamos espaço. Vamos — dessa vez, dirigiu-se aos colegas de equipe — Dividam-se.





Eu morreria antes de admitir em voz alta, mas a provocação de Hunter realmente estava surtindo efeito.

Minhas colegas de equipe, que antes ocupavam os bancos, aceitaram o desafio sem pestanejar. Elas jogavam com sangue nos olhos, perseguindo a bola de um lado para o outro e gritando xingamentos aos quatro ventos. O time se movia sobre o gramado como uma unidade e, aos poucos, a camaradagem que as unia passou a se estender a mim. Foi contagiante. Não demorei a encontrar meu lugar no jogo, dessa vez, longe do gol.

Os garotos, por outro lado, não estavam tão envolvidos quanto nós. Apesar da boa posse de bola, eles pareciam perdidos no campo. Enquanto alguns entregavam o jogo, assustados demais com a possibilidade de machucar uma menina, outros simplesmente não levavam a partida a sério: aproveitavam a oportunidade para conversar e flertar com as adversárias.

Era meio frustrante.

Observei concentrada a movimentação no meio campo, onde Lexie e outras duas garotas tentavam a sorte contra o time adversário. Havia suor em minha nuca, descendo pelo meu pescoço, e gotas geladas corriam pelas minhas costas de tempos em tempos — fazia mais de meia hora desde que começamos a partida e o placar continuava zerado.

Eu esperava por um passe. Quase dava pulinhos para gastar energia.

Finalmente, a bola entrou no meu alcance e eu corri, preparada para roubá-la. Meu coração batia forte em meu peito. Aquele lance tinha tudo para ser meu, mas a bola parou aos pés de Zack, que a chutou longe.

Segui a bola e meus olhos se cruzaram com os de meu adversário: Hunter Campbell também corria na direção da bola, mais gostoso do que nunca naquele uniforme. O suor escurecia seus cabelos e brilhava sobre sua pele — a imagem me remetia a sexo.

Por uma fração de segundos, eu me esqueci do treino e viajando por seu corpo delineado por músculos. Um xingamento escapou por meus lábios. Hunter estava sozinho no corredor lateral do campo e eu ainda estava no meio-espaço, mas não me deixei intimidar: aquela bola era minha.

Eu disparei pelo gramado e, por um erro de cálculo, nós entramos em rota de colisão. Não consegui parar a tempo. Meu ombro foi de encontro ao dele com toda força, mas o baque não foi o suficiente para me impedir de jogar. Avancei ferozmente na direção da bola, sem sequer enxergar se havia ultrapassado a faixa ou não.

— Calma, princesa — ele riu na minha nuca.

Pouco me importava se Campbell tinha um plano para me ajudar a ficar bem com as meninas. Naquele momento, eu estava determinada a vencer.

Vai se foder — rosnei.

Meus pés giraram sobre a grama e eu trouxe a bola para mim, tentando a qualquer custo me livrar de sua marcação. Tudo que eu sabia era que não podia entregá-la a Hunter.

— Ah — ele arfou, me acompanhando sem esforço — Isso foi rude.

Meus olhos foram da bola de futebol em meus pés para o campo à minha frente. Não consegui andar muito. Campbell estava em todo canto.

Rindo.

Zombando.

— Não acha que está exagerando, April? — sua voz vinha de algum lugar atrás de mim, perto demais.

Eu estou exagerando? — meus pulmões ofegavam por ar.

Chega.

O jogo não importava mais.

Girei sobre os calcanhares e minhas mãos foram de encontro ao seu peito. Eu o empurrei, mas Hunter sequer se moveu: seus pés permaneceram firmes sobre a grama, travados contra o solo. O golpe sequer lhe fizera cócegas. Ele tinha as mãos erguidas em sinal de rendição e sorria, deliciado com meu descontrole:

— Isso é agressão, princesa.

Meu coração batia forte contra minhas costelas, meu sangue fervia em minhas veias. Era como se estivéssemos de volta ao início, quando nos odiávamos. Mesmo que seu comportamento não passasse de um ato, não era fácil cruzar os braços e assisti-lo retomar seus velhos hábitos. Nas últimas semanas, Hunter havia se mostrado alguém completamente diferente daquele bastardo arrogante que fazia os outros de alvo — agora, no campo, ele parecia até pior do que eu me lembrava.

Cristo. Não era ingênua o suficiente para acreditar que o futebol havia alterado seu humor. Hunter estava irritado desde mais cedo, quando discutimos no corredor. Me ajudar a ficar bem aos olhos da equipe era apenas mais um pretexto para humilhar os outros.

Queria que Campbell parasse. Que voltasse a si. Que resolvesse seus problemas comigo, sem bodes expiatórios.

Não pensei antes de agir. Minhas mãos fizeram um impulso contra seu peito e, dessa vez, ele cambaleou para trás.

— O que tem de errado com você? — rugi, enfurecida.

Assisti o brilho divertido desaparecer de seus olhos azuis. Tarde demais, Hunter se deu conta de que eu falava sério. Em segundos, seu rosto se tornou um conjunto de traços tensos: sobrancelhas franzidas, maxilar rígido sob a pele — ele não gostou nada da minha atitude.

Um pigarro interrompeu meus pensamentos. Finch se aproximava relutante com a corrente de um apito pendurada ao redor de seu pescoço:

— April? — ele levou uma de suas mãos aos cabelos escuros — Tecnicamente, isso foi falta... Mas tem uma multidão de meninas zangadas atrás de mim e eu não quero cometer o erro de mexer com elas. Vocês poderiam, por favor, voltar ao jogo e fingir que nada disso aconteceu?

Não respondi, apenas me afastei.

Após aquele pequeno incidente, o treino continuou. Todos pareciam ter encontrado o ritmo da partida, menos eu. Não consegui jogar como antes. Eu estava envergonhada graças à minha explosão, com a cabeça recheada com pensamentos conflitantes e sobrecarregada por uma enxurrada de sentimentos novos.

Talvez eu tivesse ultrapassado os limites ao reagir daquela forma.

Porra.

Óbvio que eu não deveria ter empurrado ele.

O que tinha de errado comigo?

Hunter permaneceu distante o resto do treino. Toda vez que eu olhava em sua direção, ele desviava as íris azuis para longe e voltava ao jogo mais concentrado do que antes. Quando faltava pouco para o fim do horário, Campbell foi embora sem dar explicações. Depois disso, qualquer esforço para prestar atenção no treino foi em vão: Hunter deu as costas e levou meus pensamentos com ele.





Naquela tarde, nós deixamos o gramado com um novo acordo: sem mais brigas, trotes ou discussões infantis — meu irmão havia se certificado de que nenhum de nós saísse prejudicado. As equipes continuariam a revezar a ocupação do campo até o início das olimpíadas internas e, até lá, nós evitaríamos distrações a todo custo.

Assim que todos entraram em acordo, as meninas se espalharam sobre a grama. Elas deitaram de costas para o chão, rindo cansadas depois de tanto correr. Um garoto da minha aula de álgebra ligou uma caixa de som e os outros se reuniram perto do banco para conversar. O clima parecia muito melhor depois da pequena reunião, mas não me juntei a eles.

Eu tinha outra ideia em mente. Meu estômago se agitou em expectativa enquanto eu contornava um dos prédios centenários de St. Clair. Hunter havia deixado o campo de futebol fazia uns vinte minutos, talvez menos.

Se eu me apressasse, talvez pudesse alcançá-lo.

Não me preocupei em ir até o vestiário para me livrar do uniforme de educação física. Não tinha tempo para desperdiçar. Caminhei até o estacionamento com as batidas do meu coração martelando em meus ouvidos enquanto as travas das chuteiras faziam um som esquisito contra o asfalto.

Eu estava decidida: nada permaneceria no meu caminho, nem mesmo meu orgulho. Tive bastante tempo para pensar enquanto estávamos em campo e me dei conta de que devia desculpas a Hunter — tanto por gritar em sua cara, quanto por empurrá-lo na frente de todos. Não estava acostumada a errar daquele jeito. Geralmente, quando brigávamos, era ele quem bancava o babaca e precisava pedir perdão. Aquela era uma situação inteiramente nova para mim. Não consegui descobrir ao certo até onde meu impulso de pedir desculpas era genuíno e até onde era apenas uma necessidade de demonstrar minha superioridade, mas segui-lo parecia a coisa mais justa a se fazer.

Merda. Meu cérebro estava a mil.

Além da confusão no treino de futebol, nós também precisávamos ter uma conversa decente e esclarecer de uma vez por todas o que existia entre nós. Hunter não estava satisfeito com nosso arranjo, ele havia deixado isso bem claro para mim. A pergunta que me fizera mais cedo ainda ecoava em meus pensamentos.

Você quer terminar?

Eu não queria terminar. Céus. Queria justamente o contrário de terminar. Nós havíamos perdido tempo demais naquele joguinho e parte da culpa era minha. Essas brigas eram um saco. Se tudo que nos separava era meu estúpido medo de confiar, então, foda-se: eu daria um passo no escuro e iria atrás de dele.

Puta merda. Meus pés praticamente se guiavam sozinhos na direção dele. Já estava na hora do universo me recompensar por fazer a escolha certa. Se fosse como nos filmes, eu seria beijada pela inspiração assim que visse seu rosto: nós conversaríamos e tudo estaria resolvido — aquele treino desastroso, os desentendimentos, tudo ficaria para trás.

Uma vez no estacionamento, encontrei seu carro em uma vaga próxima a biblioteca. Pelas janelas, vi que o interior estava vazio. Hunter provavelmente estava no chuveiro ou terminava de se trocar.

Os primeiros atletas começaram a deixar o vestiário depois do treino e recebi todo tipo de olhar torto. Para os passantes, eu era apenas uma esquisita próxima a um carro, vestindo as roupas sujas de educação física.

Não dei atenção a isso.

Eu era eletricidade pura. A tensão de um fio desencapado zunia em meus ouvidos enquanto meu sangue vibrava em minhas veias.

Quando a ideia de correr até o vestiário começou a me parecer tentadora, Hunter surgiu no topo das escadas. Ele desceu os degraus com a bolsa de educação física atravessada em seu corpo, acompanhado da mesma loira da outra aula — ambos tinham os cabelos úmidos, recém saídos do banho.

Eu congelei.

Hunter havia deixado o treino mais cedo. Ela também, ao que parecia. Os dois andavam lado a lado como um casal de celebridades, cumprimentando colegas. Um gosto amargo invadiu minha boca enquanto as peças do quebra cabeça se juntavam diante dos meus olhos. Claro. Aquela era a continuação natural do flerte que assisti durante a aula — Campbell a queria e ela não era burra o suficiente para negar que o desejava. Eles se encontraram no vestiário vazio. Transaram lá mesmo, debaixo da água do chuveiro, contra os ladrilhos brancos do box comunal.

Porra.

Não conseguia afastar da minha mente imagens de Hunter fodendo sua nova amiga.

Minha pele queimava, meu estômago se revolvia. Eu queria vomitar. Em poucos segundos, uma situação hipotética em que Hunter havia transado com outra havia me tirado dos eixos. Eu precisava diminuir o ritmo. Campbell poderia não ter um compromisso comigo, mas ontem ele disse que a cena no bar não era o que parecia. Claro. O que presenciei hoje só podia fazer parte da mesma série de coincidências que o levaram para o meio das pernas de Lexie.

Naquele momento, percebi que continuava imóvel ao lado do carro. Meus pés pareciam tão pesados quanto concreto. Talvez eu estivesse surtando. Era muita pressão para uma garota só. Meu subconsciente procurava uma razão para escapar, amedrontado demais para confiar em Hunter, e, graças a minha imaginação fértil, tudo parecia um sinal para sair correndo.

Coragem, April.

Assim que Hunter me avistou perto de seu carro, um vinco surgiu no meio de sua testa. Ele tinha uma expressão dura em seu rosto, olhos azuis cravados em mim à distância.

Merda.

Isso foi uma má ideia.

A menina que o acompanhava não me deu a mesma importância. Ela ajeitou os cabelos loiros sobre os ombros e continuou a falar, compenetrada em sustentar a conversa que carregava quase inteiramente sozinha. A primeira coisa que reparei nela foram seus peitos — era meio impossível não olhar para eles. Na ausência de um sutiã, seus seios empinados se desenhavam perfeitamente sob a camisa social.

Tudo bem.

Quando apenas alguns metros nos separavam, Hunter limpou a garganta e se voltou para a nova amiga:

— Grace — ele franziu suas sobrancelhas escuras — Será que podemos continuar depois?

Os olhos dela pousaram nas mangas sujas de lama do meu moletom e eu levei meus braços para as costas na tentativa de escondê-los. O moletom era muito largo e meus shorts muito curtos. Eu não fazia ideia do estado do meu cabelo e talvez fosse melhor se eu não descobrisse.

Quanto mais eu pensava, mais eu parecia ridícula em comparação a ela.

Era infantil me comparar assim, mas eu não podia evitar. Toda e qualquer grama de racionalidade parecia ter abandonado meu corpo. Eu me descobria mais imatura a cada segundo, só conseguia me assistir regredir e cometer erros que pensei que jamais cometeria.

— Claro — Grace abriu um sorriso gentil, abraçada a seu equipamento esportivo — Até mais, Hunter.

Ela deu as costas para nós e seguiu em direção às amigas, que a aguardavam sem disfarçar olhares furtivos e risadinhas excitadas. Hunter entoou uma despedida e passou direto por mim, contornando o carro. Abriu o porta-malas e jogou para dentro sua mochila preta, junto da velha bolsa de educação física que carregava a tiracolo:

— Veio aqui atrás de uma segunda rodada, April? — ele murmurou enquanto o ridículo som das travas da chuteira contra o chão denunciava minha aproximação — Porque não sei se estou pronto para outra.

A acidez em sua voz não passou despercebida aos meus ouvidos.

Tudo bem. Eu podia lidar com sarcasmo.

— Me desculpe — disse firme — Não devia ter empurrado você.

Depois de seu comentário, Hunter não deu qualquer sinal de reconhecer minha presença ao seu lado. Poderia muito bem estar sozinho. Puxou uma garrafa de água da mochila e desenroscou a tampa com os olhos no carro, sem me dar atenção.

Inferno.

Eu odiava aquele silêncio.

O barulho de buzinas atravessou o estacionamento e as gargalhadas de estudantes eclodiram a distância. Meus olhos se fecharam e as palavras escaparam da minha boca antes que eu pudesse impedi-las:

— Por que você tratou as meninas daquele jeito?

Ele havia se comportado feito um babaca no campo. Eu precisava que Campbell me dissesse o porquê. Se eu estivesse certa, aquela era sua maneira torta e deturpada de me ajudar. Por mais tolo que fosse, eu queria ouvir aquilo dos lábios dele. Seria um bom ponto de partida para a nossa conversa.

Hunter levou a garrafa até os lábios e bebeu alguns goles de água. Eu observei seu pomo de Adão subir e descer sua garganta. Seus cabelos úmidos estavam penteados para trás e sua pele cheirava a sabonete.

Lindo.

— Um pouco de psicologia reversa — explicou enxugando sua boca com as costas da mão — Sempre funciona.

Não sorri.

— Isso não responde a minha pergunta.

— Escuta, April — ele liberou um suspiro cansado — Você conseguiu o que queria, não foi? Está no time, jogando pra valer. As garotas te respeitam, pararam de fazer corpo mole...

Minhas sobrancelhas se arquearam em descrença.

— E eu deveria te agradecer por isso?

Naquele momento, Hunter parecia mais interessado em conferir a pilha de tralhas acumulada no porta malas do que em falar comigo. Até mesmo o para-choque traseiro com pequenos pontos de oxidação recebeu uma inspeção minuciosa, cheia de cuidado. Tudo isso para evitar meu rosto.

— Seria um bom começo — deu de ombros, rosqueando a tampa da garrafa.

Uma risada irônica irrompeu do fundo da minha garganta.

— Por que você não para de agir assim?

— Porque eu cansei, April — seus olhos finalmente cravaram nos meus — Nós fizemos tudo do seu jeito e olha onde chegamos.

Um vento gelado soprou pelas árvores, agitando as folhas que cobriam o chão aos montes. Eu cruzei os braços e me encolhi, sem saber que me protegia do frio ou daquela conversa:

No estacionamento?

Uma gargalhada escapou de seus lábios misturada à respiração:

— Brilhante — sua voz raspou em meus ouvidos — Brilhante, April.

Hunter estava cheio de mim. Eu podia perceber isso em seus olhos gélidos, em sua postura distante e até no tom de suas palavras. Não era parecido com nada que eu havia visto antes. Ele nunca tinha me tratado assim.

— Eu estou tentando fazer as pazes com você...

O compartimento das malas se fechou com um baque. Hunter contornou o carro de novo e eu fui atrás, frustrada. Não podia deixá-lo partir. Nós tínhamos muito para discutir, eu era um fracasso em me comunicar e ele não facilitava, sequer se esforçava para me ouvir.

A chave se encaixou na fechadura e ele abriu a porta do veículo, colocando-a entre nós.

Merda, merda, merda.

Meu coração batia forte no peito, chegava a ser doloroso.

Pensa rápido, April.

— Ela é bonita — disparei.

Hunter tinha metade do corpo enfiada dentro do carro, pés no asfalto como eu. Assim que ouviu meu comentário, seus ombros se enrijeceram. Ele se voltou para mim com um olhar que transbordava incredulidade:

— Como é?

Em resposta, apontei para Grace com o queixo. Mesmo a distância podia ver sua cabeça loira rodeada por outras meninas, próximas a um Ford vermelho.

Hunter fez um gesto vago, de má vontade. Quando ele ameaçou voltar sua atenção para o carro, avancei mais um passo em sua direção:

— Você transou com ela?

Dessa vez, Campbell não se aguentou. Uma risada exasperada escapou de seus lábios e ele meneou a cabeça para os lados, sem acreditar. Quando continuei a encará-lo, ele apoiou suas mãos sobre a porta do carro e se inclinou para mim:

— Não. Mas eu poderia, não é? — seus lábios se repuxaram em um sorriso lascivo — De acordo com as suas regras.

Minha garganta se apertou em um nó.

Ao invés de respondê-lo, eu assenti em silêncio. Hunter podia fazer qualquer coisa com aquela menina e eu não tinha o direito de reclamar — como ele mesmo havia dito: "você quis assim, April".

Parabéns, Campbell. Você encontrou uma maneira babaca de me punir.

A maldita porta do carro continuava entre nós, separando-nos como uma espécie de barreira. Aquele era o momento perfeito para admitir que me arrependia do acordo, mas não conseguia abrir minha boca. Havia um peso sobre o meu peito que esmagava meu coração e dificultava a minha respiração.

Merda. Talvez eu devesse ir embora.

Quando ergui meu rosto, o humor havia desaparecido de sua expressão. Ele se aproximou devagar, como se quisesse me contar um segredo, e seus olhos famintos desceram para os meus lábios:

— O problema é que a única bocetinha molhada que eu quero comer é a sua — sua voz baixa fez meu corpo estremecer — Mais alguma pergunta, princesa? Eu estou atrasado.

O calor se espalhou pela minha pele como fogo. Eu o encarei por vários segundos, sem conseguir juntar uma frase coerente. Hunter esperou, muito entretido. Suas pupilas escuras me devoravam enquanto suas mãos permaneciam firmes, apoiadas no carro. Assim que concluiu que não receberia uma gracinha de volta, entrou no veículo e fechou a porta atrás de si.

Quando finalmente consegui me recompor, um ronco poderoso irrompeu do motor. Hunter acelerou o carro e me deixou sozinha no estacionamento, sem saber o que havia me atingido.





N/A (10/01/2021): PRIMEIRA ATUALIZAÇÃO DO ANO!!!! Espero que esteja todo mundo bem e que esse humilde livrinho tenha melhorado o dia de vocês pelo menos um pouquinho.

Voltando as vacas frias: eu sei o que vocês estão pensando...

Que capitulozinho mixuruca, Barbara!

Sim. Perdão!!! Mil perdões. Eu sei que parece curto em comparação ao anterior, mas foi necessário. A próxima cena tem um tom completamente diferente dessa safadeza aí de April/Hunter e me senti esquisita condensando os acontecimentos em um capítulo só.

Enfim, só mais um capítulozinho pela frente e então teremos... O show da The F Word!!! Será que vai dar ruim? Será que a April vai? Será que eles finalmente vão se acertar?

Para Bianca: será que o Hunter vai levar um tiro? (ela fica me dando ideias, cara, juro por deus)

O que acharam do Hunter nesse capitulo? Não sei se ficou 100% bom o que eu quis transparecer.

Um parênteses aqui: eu sempre soube que esse capítulo chegaria (sim, pode não parecer, mas eu tenho roteiro) e sempre passei mal de vergonha alheia (kkkkkkkkk) porque sabia que teria que escrever. Eu vou dar um jeito nessa rivalidade feminina. Juro.

Por último, obrigada pelo carinho e pelas mensagens!! Não seria a mesma coisa sem vocês. Aliás, as meninas que falaram comigo no twitter durante essa semana = tudo para mim. Espero que vocês não tenham se sentido enganadas enquanto liam esse capitulo UHAUAH Prometo que vai melhorar!!! <3 (mas se não gostarem, podem me falar pois importante ouvir para crescer).

Enfim, podem falar tudo o que vocês acharam. Estou aberta a críticas construtivas, dicas, opiniões.

Bjinhos,

B.

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