6. Olhar familiar

𝙿𝚘𝚛𝚌𝚊𝚛𝚒𝚊!

Richard praguejou, batendo com as mãos na superfície metálica da porta.

Mal tinha começado o turno e já dera de cara com um grande problema: a porta do seu escritório estava trancada.

Provavelmente, fora obra de algum funcionário diurno, e Richard suspeitava especialmente do vigia da manhã, com quem tinha encontrado. Pelo comportamento que aquele sujeito demonstrara, poderia muito bem ter sido um ato de vingança dele pelo trabalho extra.

Desistindo de entrar a força, o vigia-noturno se apoiou na parede ao lado, tornando a ficar pensativo. O que faria agora?

O escritório, mesmo que não fosse completamente à prova de robôs assassinos (já que uma vez sua porta fora arrombada), o fornecia certo abrigo. Ao menos, abrigo psicológico, porque fora dele, o segurança não só se sentia, como de verdade, estava completamente exposto e desprotegido.

Aquele era apenas um dos muitos momentos em que Richard começava a se questionar se deveria pedir demissão ou não. Mas, ele não faria isso, pelo menos, não agora. Ele tinha passado por muito tumulto para simplesmente ir embora, queria ao menos ganhar o primeiro salário. Também queria provar a Johnny que não estava louco. E, acima de tudo, queria impressionar Mary. Mas… Do que adiantaria isso tudo se estivesse morto?

O vigia sacudiu a cabeça para se livrar desses pensamentos sombrios. Afinal, ele sobrevivera a Ônix duas vezes, e nada de estranho tinha acontecido na última noite. Hoje, tudo ocorreria bem e de forma normal, sem nenhum tipo de perseguição ou visitas indesejad-…

O som de passos interrompeu o seus pensamentos.

Nos primeiros momentos o guarda não se preocupou com isso, imaginando que fosse algum outro funcionário. Só quê, quando olhou ao recém-chegado, empalideceu.

Das sombras, distinguiu a silhueta canina inconfundível de Ônix, ainda que o escuro não o permitisse o ver nitidamente. O mais estranho era a maneira como o robô tinha chegado de maneira tão despercebida.

Claro, Richard pensou amargamente, tudo o que é bom dura pouco.

O humano estava prestes a se virar para fugir, mas não o fez, ao estranhar como o lobo andava calmamente. Aquilo não era uma perseguição.

– Saudações, Richard – disse Ônix, ao sair da escuridão. Seu pelo sintético, agora brilhava como prata à luz da lua, se contrastando fortemente no cenário sombrio do parque. – Por que não veio mais me visitar? – o lobo fingiu tristeza, e então parou a alguns metros de distância.

Richard não se moveu, nem respondeu, e muito menos, tirou os olhos da figura cinzenta. Já sabia o quão traiçoeiro Ônix era, e não cairia em mais nenhum truque seu.

– Sabe… Eu tenho te visto por aí – o robô prosseguiu o discurso, se aproximando um pouco mais – Especialmente, durante o dia.

O vigia engoliu seco ao se lembrar de mais cedo, quando ele e Ônix haviam trocado olhares. O lobo realmente estivera o observando.

Da última vez em que interagiram diretamente, o robô tinha o enganado, fingindo oferecer ajuda. E, antes disso, Ônix invadira seu escritório e o perseguira, o forçando a se esconder em um contêiner de lixo, que, no fim das contas, resultou na perda de suas chaves. Conversar com ele estava fora de questão.

Richard se preparou para fugir, mas o comentário seguinte do lobo o impediu:

– Aquela bela moça era sua namorada?

Richard paralisou. Como ele sabia? 

Ônix soltou uma gargalhada ao ver a sua reação.

– Oh… perdão… – continuou ele, com escárnio, enquanto se deliciava com a expressão de medo que o vigia deixava transparecer – eu quis dizer ex-namorada.

Logo, o pavor de Richard foi substituído pela raiva. Ele fixou os olhos no lobo, como se o desafiasse a falar mais.

Oh, Brenda! – Ônix falou de modo teatral, no que era supostamente uma imitação de Richard. – Eu também me deixaria por alguém tão melhor, já que eu sou tão ruim!

– O NOME DELA NÃO É BRENDA! – O vigia explodiu.

Ônix gargalhou mais uma vez:

– Mas o resto você não negou, porque é verdade, não é?

O vigia cerrou os punhos e desviou do olhar de troça do mascote cinzento, cometendo então um grande erro: ele tinha sido tão afetado pelos comentários que nem vira quando o lobo se aproximou.

Ônix rapidamente avançou, pronto para o golpear, mas Richard conseguiu desviar, por muito pouco.

O vigia agora tinha que fugir do lobo pela terceira vez, mas, pelo menos, ele possuía mais chances naquele terreno aberto do que no salão de jogos entulhado. Richard correu à procura de algum esconderijo, tropeçando uma ou duas vezes no cascalho até que encontrasse um lugar “aceitável” para servir de abrigo.

Ele avistou o prédio do restaurante principal, batendo os olhos nas mesas e cadeiras do lado de fora. Não era grande coisa, mas era a sua única chance em muitos metros. Já sabia que o seu interior estava trancado de qualquer maneira.

Rapidamente, ele se enfiou de baixo da mesa mais próxima, mas se arrependeu assim que notou o quão ridículo de óbvio era aquele esconderijo. Até uma criança de seis anos teria pensado em algo melhor, praguejou Richard, prendendo a respiração logo em seguida, ao ouvir as passadas do robô.

Ônix continuava a rir e a fazer comentários maldosos.

Ricky, onde está você? – O lobo chamou, com a voz aumentando gradualmente conforme ele chegava mais perto – se ela te visse agora, acharia que é um covarde!

Richard se retesou no espaço apertado e se esforçou para permanecer imóvel. Ouvia mais o seu próprio coração martelando de medo do que a voz da criatura e seus deboches.

O som dos passos continuou a aumentar, mais e mais a cada instante, até que da brecha da tolha que cobria umas das mesas, Ônix viu o humano e levantou o pano.

–  Achei você.

O vigia já ia aceitando o seu destino, quando de súbito ouviu uma pancada de metal. Ônix urrou quando foi atirado para longe, o que era estranho para um robô, mas o que quer que fosse, isso o salvou. Era tudo o que importava. Ainda sim, o humano não ousava abandonar a sua “toca”, e muito menos, espiar pelo espaço entre a toalha e o chão. Era perigoso, e naquele momento, aquele pano velho era a única coisa que podia o “proteger”.

– Pode sair daí – disse uma voz feminina e robótica, um pouco familiar – Ônix já foi embora.

O vigia hesitou por mais alguns segundos, mas quando ele tomou coragem, se arrastou devagar para fora do esconderijo. Seus olhos se arregalaram de surpresa: a sua frente, estava a tão famosa Blueberry.

Seu pelo azul-escuro e sua máscara negra se mesclavam quase que perfeitamente com a escuridão da noite, enquanto sua gravata borboleta vermelha se contrastava a ela. O mais estranho eram os olhos da guaxinim: negros com pupilas brancas.

Aquela era a primeira vez que ele a via pessoalmente, mas Richard sentia-se como se já a tivesse encontrado em outro lugar, mesmo que não soubesse onde. É por causa dos posters, concluiu no fim.

De qualquer jeito, era melhor dar no pé. Richard olhou ao seu redor, a procura de uma nova de fuga, mas o animatrônico inesperadamente percebeu o seu comportamento e fixou seus olhos no pobre humano.

– Eu não tenho a intenção de te machucar – Blueberry esclareceu. – Na verdade, eu estou aqui para te ajudar.

Richard hesitou.

– C-como? E por que você faria isso?

– Eu não tenho motivos para te atacar – a guaxinim não desviou o olhar e o vigia não conseguiu decifrar sua expressão. – Conheço um lugar seguro – adicionou ela.

Era uma explicação até que razoável, por mais que ele nunca tivesse entendido o ataque dos outros robôs. Mas… Da última em vez que confiara em um animatrônico, Ônix o apunhalara pelas costas; porém, Blueberry o salvara dele, poucos momentos antes. Ficar exposto naquele terreno também não era uma boa opção. Resolveu ir atrás dela.

Blueberry o guiou mais adentro do parque, para um lugar do qual o vigia não se lembrava de ter ido. Na verdade, ele já havia circulado o terreno inteiro durante o dia para procurar chaves perdidas, então, deveria ser apenas um efeito das sombras, que não o deixavam reconhecer os detalhes familiares. Como já haviam passado pela praça principal e o carrossel, deduziu que estava próximo de um dos limites do território, quase do outro lado do parque.

Após andar por mais alguns minutos no escuro, a dupla deu de cara com uma grade metálica, enferrujada em muitos pontos. Mais do que a do estacionamento. Atrás dela, uma grande parede de concreto cinzento se estendia.

Richard achou isso estranho, uma vez que todos os outros prédios que já vira ali eram coloridos. Que tipo de atração seria aquela?

Quando tentou perguntar a sua guia, ela simplesmente aumentou o passo, não o deixando espaço para isso. Continuaram a seguir junto a cerca em silêncio. Ele só não fez mais questão de ter uma resposta porque iria descobrir de qualquer jeito daqui a pouco.

Parecia que estavam andando por uma eternidade, e o humano, já estava se convencendo de que aquilo não iria levar a lugar nenhum, até que de repente, um grande buraco na tela foi avistado.

Como aquilo não havia sido consertado? Simples: a abertura estava em um local abandonado e discreto do parque. Richard agora sabia que não passara por ali nem sequer uma vez.

Apesar de não parecer, o buraco era grande o suficiente para um animatrônico do tamanho da guaxinim passar. Blueberry foi primeiro, sem se incomodar com as pontas de metal soltas que emaranhavam no seu pelo azul. Do outro lado, fez um sinal para que o guarda fizesse o mesmo. Sendo um pouco menor do que ela e mais magro, Richard passou com facilidade. Feito isso, ambos seguiram caminho.

A “estrada” nova consistia em um espaço estreito entre a grade e a parede, que formava um longo corredor. Como estavam em uma das pontas do prédio, haviam dois caminhos possíveis: de um lado, que era por onde eles tinham vindo, era o terreno do parque; enquanto do outro, o caminho seguia por trás da contrução, com a cerca beirando para fora, em um bosque escuro. Eles seguiram rente a fronteira.

Não tinha muito o que olhar, e, Richard, começava a ficar aflito enquanto andava. Aquele lugar parecia mais perigoso do que seguro para se usar como um esconderijo. Na pior das hipóteses, poderia ser um beco sem saída.

Virou-se para frente, a fim de perguntar sobre isso a guaxinim, mas, seu olhar foi atraído para as patas. Garras afiadas pendiam em seus dedos, algo que era estranho para uma mascote destinado ao público infantil. Nenhum outro animatrônico em Oz Park possuía armas como aquela. Eu não me lembro de ter visto isso em pôsteres, mas aquilo continuava a ser estranhamente familiar e…

A imagem das garras rasgando o metal e os olhos negros com pupilas brancas espiando pelo buraco lhe voltaram a mente. Era os mesmos que o viram dentro do contêiner. Os mesmos que pertenciam a sua perseguidora daquela noite.

Fora Blueberry quem tinha o atacado, e, mais uma vez, ele fora enganado. Estava indo direto para uma cilada.

Mas o que ele faria agora? Olhou para frente novamente. Blueberry continuava a marchar, firme, sem ter o conhecimento do que ele já sabia. Ainda havia tempo para fugir. Mas por que Oliver e Oscar tinham mentindo, dizendo ter sido Ônix? Mesmo que o lobo também fosse uma ameaça, qual era o motivo por trás de ocultar Blueberry?

Richard engoliu seco ao perceber que estava limitado a uma passagem reta, sem saídas; para piorar, ele, por experiência própria, sabia muito bem que a guaxinim era bem mais rápida e o alcançaria antes mesmo que chegasse ao buraco da cerca.

Foi então que a solução surgiu diante de seus olhos: uma porta.

Se Richard entrasse no prédio, com certeza teria mais chances de despistar o animatrônico em meio as galerias e obstáculos da própria construção.

Ele se virou para frente, para certificar que Blueberry estava distraída para poder realizar o seu plano. A guaxinim, por sua vez, nem sequer suspeitava, ela continuava a olhar para frente e nem se dava ao trabalho de conferir se o humano realmente a seguia.

Richard esperou mais um pouco, até que, silenciosamente, esgueirou-se para a porta e entrou, a fechando rapidamente.

O vigia deu de cara com a mais pura escuridão. Ali dentro, não haviam janelas abertas para o luar entrar. Seguiu caminho pelas paredes, até que seus olhos se acostumassem. Quando a parede terminou, ele quase caiu. Aparentemente, havia chegado ao salão principal, aonde, agora com a visão adapta, distinguiu diversos portais negros que também desembocavam ali.

Não havia sinais de que Blueberry teria ido atrás dele, mas, passado um tempo de silêncio sinistro, o guarda sentiu que algo estava errado.

Logo escutou passos. Passos pesados e cheios de guinchos mecânicos, característicos de um animatrônico. Mas não de Blueberry. Eram barulhentos demais para que fossem ela. O ruído que as peças causavam ao raspar uma na outra indicavam falta de lubrificação, além de ferir os ouvidos de qualquer um que ouvisse. Blueberry, sendo a estrela de Oz Park, jamais seria sujeita a tamanha falta de manutenção.

Claro, deve ser outro robô, pensou o guarda, nem um pouco surpreso. Então tornou a olhar ao redor, tentando localizar de onde vinha o som, naquele cenário que lhe era estranhamente familiar. Só conseguiu adivinhar o porquê depois de alguns instantes. É igual ao prédio de administração.

Os ruídos vinham de um corredor logo a sua frente, que parecia muito mais escuro do que os outros, mas talvez, esse detalhe fosse só sua imaginação. Mas lá, no fundo da passagem, ele avistou algo ainda pior: dois pontos vermelhos como sangue que brilhavam na escuridão. Olhos.

Mesmo que não fosse Blueberry, aquela coisa também não era sua amiga. A criatura estava vindo diretamente em sua direção com uma intenção assassina.

Quando se deu conta do novo problema, Richard mergulhou em um dos corredores e se pôs a fugir, tentando despistar o novo caçador. Não, pensou ele, isso não é um mascote, demônio seria uma palavra melhor.

Ele se enganara feio, porque no fim das contas, trocara seis por meia dúzia: o lugar era um labirinto, e assim como lá fora, ele não tinha chance nenhuma de escapar.

O vigia teve que frear bruscamente quando o corredor se dividiu em duas direções. Ele as examinou, mas, como eram exatamente iguais, terminou apenas em indecisão. Sem tempo a perder, foi pela tendência humana de seguir pela direita em ambientes desconhecidos. Deu o primeiro passo e…

Vá pela esquerda – disse uma voz que ele não conhecia, o interrompendo no meio do ato.

Não era aquela voz da outra noite, porque essa, soava mais fantasmagórica do que robótica, apesar do som de estática. Era estranha, indefinida. Quase como um sussurro. Parecia mais humana.

Em situações normais ele teria hesitado, ou até mesmo, ignorado. Quem em sã consciência seguiria uma  voz desconhecida? Porém, sua situação era desesperadora, então ele deixou se guiar por ela.

Aquele corredor era mais estreito e ainda mais escuro, por mais que aquilo aparentasse ser impossível. Richard desanimou e a voz voltou a se manifestar, para o encorajar:

—  Apenas siga em frente.

O vigia respirou fundo antes de continuar, como quem se prepara para mergulhar em águas frias e traiçoeiras do mar.

O silêncio voltou a predominar. A única coisa que o humano poderia ouvir era seu próprio coração martelando de pânico. Andou e andou pelo que pareceu levar uma eternidade, até que, por fim, se chocou contra algo: uma porta.

Segurou a maçaneta, torcendo para que a saída não estivesse trancada, até que novamente fora impedido:

Vá ao restaurante principal – aconselhou a mesma voz misteriosa. Richard tentou identificar de onde ela vinha, mas não conseguiu. – Lá você irá encontrar quem poderá te ajudar.

O vigia esperou mais um pouco, até que ficou claro que ela não tinha mais nada a dizer.

Sem perder mais tempo, ele foi abrir a porta. Quando encostou na sua superfície, sentiu um choque frio. Era de metal, como a saída do seu escritório. Empurrou com um pouco de dificuldade, estava emperrada, mas logo se viu no ar fresco noturno.

– Obrigado – Richard disse a quem tinha o ajudado, mesmo que não a visse. Virou para trás uma última vez antes de ir embora.

Como o esperado, não obteve resposta. Foi embora.

***

O vigia chegou ao restaurante em tempo recorde, tudo graças ao medo intenso de reencontrar Ônix ou Blueberry no meio do caminho.

Enquanto andava, Richard tentou adivinhar o porquê teriam o mandado para aquele lugar, quando a construção estivera trancada todas as outras vezes quando ele estivera lá.

Mas logo entendeu quando entrou. Inesperadamente, dessa vez, o lugar estava destrancado.

— Olá Richard! – Oliver, o esquilo robótico, apareceu de súbito ao lado do humano.

Richard só não desmaiou de susto por conta de já ter se acostumado.

Se Oliver está aqui, Oscar também deve estar por perto. Seus olhos percorreram o local e ele se provou certo. O cangambá só observava, há uma certa distância.

O vigia desanimou ao perceber que eles seriam a tal “ajuda”.

– O que estão fazendo aqui!? – Richard explodiu. Afinal, da última vez em que tinham se visto, eles haviam o abandonado para morrer nas garras de Ônix, sem falar que tinham mentido para ele também.

– Bom ver você também – o esquilo retrucou – viemos te ajudar.

– Me ajudar? Até parece! Vocês só sabem mentir e roubar minhas coisas!

– Roubamos porque Blueberry nos obriga – dessa vez foi Oscar quem falou.

– Espera aí um momento… – Richard cerrou os olhos – foram vocês que roubaram as minhas chaves?

– Você quer ajuda ou não? – Oliver repetiu, nervoso, na tentativa de mudar de assunto.

Richard cruzou os braços. Novamente, estava sem opções. Tinha que arriscar nisso.

– Certo… – disse ele com relutância – o que eu devo fazer?

– Apenas nos siga – os dois robôs responderam simultaneamente.

– Mas vocês não…?

Oscar fixou seus olhos brilhantes no humano.

– Não podemos fazer nada além disso, na verdade – ele o explicou – Vamos apenas te guiar até alguém que poderá fazer mais.

O Cangambá então olhou para o esquilo, que completou:

– Lino irá dizer o que você precisa fazer. Pelo preço certo, é claro.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top