5. O reencontro com o grande amor
Somatizar alguma coisa significa dizer que um conflito/problema/sofrimento que você tem vivido na sua mente se tornou tão insuportável que foi transferido para o seu corpo na forma de sintomas físicos (tais como a febre que não tem uma causa e ainda assim é sentida). O corpo fala o que sentimos.
Eis o Jerome das somatizações.
Meu reencontro com você me valeu uma série de reações para as quais jamais estive preparado. Já faz algum tempo, mas ainda me lembro de cada detalhe de como foi para mim saber que eu estava prestes a revê-la. A Ellie adulta, a Ellie corretora, a Ellie madura. Meu grande amor.
Será que você tem ideia do quanto mexe comigo, Ás de Copas?
Já estava dentro do avião a caminho de Atlanta quando acionei o botão para chamar a comissária de bordo pela enésima vez. Em poucos instantes, avistei uma mulher maquiada e toda arrumada vindo ao meu encontro. Ela era incapaz de exibir o charme que exibiu para mim quando me atendeu pela primeira vez durante o voo para Atlanta.
— Vocês estão atrasados — disparei, antes mesmo que ela me alcançasse. — Este avião levantou voo depois da hora estabelecida para a decolagem e agora vai chegar atrasado!
— Conforme eu já lhe disse, não podemos fazer nada quanto a isso, senhor. O tempo para reabastecer na conexão anterior levou mais do que o planejado.
— Pois comecem a planejar certo — resmunguei, irritado, e bati algumas vezes na tela de vidro do meu relógio de pulso. — Eu tenho um compromisso muito importante ao qual não posso faltar.
— Acredito que todas as pessoas neste voo têm negócios a tratar — revidou ela, carrancuda.
— O que está insinuando?
— Não estou insinuando nada, senhor.
— Não há um jeito de o piloto agilizar esse pouso?
A comissária suspirou diante da minha insistência.
— Se tivesse, o capitão já teria recorrido a ele, acredite.
Neste exato momento, ouvi a voz do comandante anunciando a preparação para a aterrissagem em Atlanta. Não sabia explicar por quê, mas um súbito mal-estar me dominou. Era para eu estar celebrando que ia conseguir me reencontrar com você depois de tanto tempo separados. Em vez disso, acho que a constatação de que o reencontro finalmente seria realidade me deixou tão abalado psicologicamente que as emoções ficaram difíceis de serem domadas. Anos longe de você e eu ainda sentia como se fosse atingido por um trem de carga só de lembrar de como era seu beijo.
Senti a pressão baixar. Minha respiração ficou desregulada.
— Espere! Espere um pouco! — chamei a comissária antes que ela fosse embora. — Não estou conseguindo respirar direito. — O que não era novidade, não é mesmo? Você tirava o meu ar, Ellie. Roubava o meu fôlego. Ainda faz todas essas coisas só com um único sorriso seu.
— Senhor, precisa se acalmar. Está muito exaltado desde que entrou nesse avião.
— É que estou vindo da Inglaterra. Foram muitas horas de viagem. Mal consegui dormir — menti sobre a verdadeira causa para minha inquietação, embora de fato eu estivesse exausto. — Acho que só preciso descansar e então tudo voltará ao normal.
— Entendo. Estamos prestes a pousar — informou a comissária, apressada. — Afivele seu cinto e aguarde pelas próximas instruções.
— Estou com falta de ar — revelei, um pouco constrangido quando os passageiros ao meu lado direcionaram seus olhares curiosos para mim. — Vocês não têm uma daquelas máscaras de oxigênio, não?
Cheguei ao aeroporto de Atlanta respirando fundo como um estúpido com a ajuda da máscara, tendo que aguentar o burburinho que se formou dentro do avião devido à minha condição. Eu me sentia ridículo, mas a dificuldade em tomar fôlego era uma coisa da qual eu não tinha controle quando pensava o que aconteceria nos momentos seguintes. Eu e você, dois corpos no mesmo ambiente que se atraíam feito ímãs.
Antes de descer do avião, a mesma comissária me abordou.
— Sente-se melhor, senhor? Acha que precisa que um médico o examine?
— Estou ótimo — menti de novo. — Desculpe se dei muito trabalho, mas é realmente um compromisso muito importante. Questão de vida ou morte! — disse para soar dramático, como se assim pudesse justificar com dignidade meu estado deplorável.
Com pressa, alcancei a sala para pegar bagagem, onde esperei impacientemente por minha única mala. Segui as indicações para a saída, e quando as portas de vidro se abriram, fiz um sinal para o primeiro taxista com que me deparei. Uma vez dentro do veículo, cheirei minha própria roupa. Fiz uma careta de nojo. Não era que eu quisesse causar boa impressão para uma antiga ex-companheira, mas me senti tão pegajoso que preferi o asseio antes do encontro com você na cafeteria, mesmo estando tão atrasado para o nosso compromisso.
— Leve-me para este endereço, por favor — pedi, entregando ao motorista um pedaço de papel com o endereço do hotel em que ficaria. — Pagarei o dobro se conseguir fazer o trajeto mais rápido que puder.
O tempo que levei para tomar banho e vestir roupas limpas me custou mais pensamentos em torno de você. Havia em mim uma ansiedade traidora por almejar tanto vê-la. Por outro lado, também existia essa raiva que me lembrava do motivo para eu ter forjado minha morte. Meu coração arrebentou no peito quando vislumbrei Jameson e a identidade que tinha estado roubando por anos. Não adiantava ficar me lamuriando; a merda já estava feita. Agora que eu estava ali, precisava fazer o que vim fazer.
A segurança na minha decisão estabilizou meu ritmo respiratório. O cansaço de viagem me proporcionou uma letargia momentânea por não ter conseguido pregar os olhos por horas seguidas de descanso desde que saí de Londres. E foi assim que entrei na cafeteria: calmo, sereno e perdido. Com mais de uma hora de atraso, por isso temia que você já tivesse ido embora. Não conhecia mais essa cidade e tenho certeza de que nunca vim a este estabelecimento antes. Eu era um turista. Devia ser mesmo um maluco por querer regressar a um lugar que me trazia más recordações. Um que significou tanto o começo da minha vida como o fim dela.
Eu não era mais Jerome. Ou... eu ainda era Jerome? Havia criado uma bagunça do tamanho do mundo que agora não conseguia arrumar. Estava em sérios apuros.
Olhei para meu lado esquerdo, não encontrando nada além de pessoas conversando e se alimentando. Podia ouvir o som da minha respiração pesada e ansiosa quando fixei minha frente, à sua procura. Sabia que você era corretora de imóveis. Não conseguia nem imaginar como era isso, ou como era sua vida agora, apesar de querer muito bisbilhotá-la naquele instante.
A sensação de estar sendo observado me fez virar o rosto para a direita e meus olhos, enfim, encontraram os seus. Fiquei petrificado diante da mulher que tenho tido amado e odiado durante todos esses anos. Amor e ódio. Dois sentimentos antagônicos, dois sentimentos igualmente intensos.
Ás de Copas...
— Jerome? — você murmurou, debilmente.
Senti o sangue correr forte nas veias ao ouvir meu nome ser pronunciado por seus lábios, em uma clara mostra de que meu disfarce havia sido descoberto em menos de poucos minutos que pisei naquele lugar. Não, ela deve estar confusa, pensei. Não era possível que alguém pudesse me desmascarar tão rápido assim.
Mas você me reconheceu, não foi, meu amor? Você soube desde o princípio quem eu era. Ellie, você foi a única pessoa que enxergou através do meu disfarce. Mesmo hoje, eu me pergunto: o que você identificou em mim nesse dia que a fez pensar que eu não era Jameson, e sim Jerome, o gêmeo dado como morto anos atrás?
Eu a vi lentamente desfalecer e corri para ampará-la, redescobrindo a sensação de como era ter você em meus braços. Senti seu aroma feminino envolvente que me fez querer agarrá-la e puxá-la para mim. Grudar seu corpo ao meu, tocar você de todas as formas após tanto tempo em celibato sem explorar o corpo de uma mulher. Uma série de razões me barrou, obviamente. Primeiro: estávamos em público. Segundo: você estava desmaiada e eu não me aproveito de mulheres. E terceiro: os fregueses da cafeteria só ficavam nos olhando sem fazer absolutamente nada.
— Não fiquem aí parados só olhando! Alguém me ajude, por favor! — berrei.
No fim de tudo, eu a coloquei na cama do quarto do hotel e deixei que você repousasse. Sabia que eu deveria fazer o mesmo, mas também sabia que não conseguiria. Não com você bem ali na minha cama e tão próxima a mim.
Fitei o inconfundível rosto mais uma vez, contendo o desejo de correr o nariz por seus cabelos acobreados para sentir cada centímetro do que a compunha. Encarei seus lábios entreabertos e a falta de ar ameaçou voltar.
Fodeu, Jerome. Você está encrencado.
Eu estava, mas no fundo sabia ser uma encrenca que valia muito a pena. Sempre foi assim com você. Eu precisava de um fechamento para tudo aquilo, para todos aqueles sentimentos que persistiam em me assombrar. Resolver as pendências do passado nunca tinha me parecido algo tão primordial.
Extremamente sonolento, me dirigi ao banheiro a fim de tomar outra ducha fria que me devolvesse a razão e me despertasse para o que estava por vir.
Quanto ao resto deste relato... O resto você já sabe, Ás de Copas. Entreguei-me ao seu beijo poderoso e, por um instante — só pelo mais breve dos instantes —, quase deixei toda a farsa calculadamente montada ruir nesse dia em que você achou que tinha me beijado por engano.
Mas eu não era Jameson, era Jerome. Não houve engano. Mesmo depois de tudo o que tínhamos passado juntos, foi um choque saber que eu ainda te amava. Detestei confirmar isso, porém me tornei um homem obcecado, torcendo para que houvesse um próximo momento em que pudéssemos ter esse contato íntimo de novo... Uma ocasião em que eu pudesse dar vazão à minha paixão, sem que você desconfiasse.
E é por isso, meu amor, que desejei aquele beijo — e os tantos outros que se sucederam — tanto quanto você, no dia do evento beneficente. Não poderia ter ficado mais agradecido do que já estava por você ter requisitado de mim o que eu estava louco para lhe dar naquela noite memorável.
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