Capítulo 48 - A Necrópole de Cela

Gerlon analisava o corpo morto de Kuma como se estivesse fazendo uma autopsia. Sua cara de nojo não escondia o desprezo do quão antiético ele poderia ser. Um homem que se achava deus, por brincar com vidas reais. Os ossos de Kuma estavam diferentes, quase que cristalizados. Um brilho opaco reluzia friamente a luz ambiente, enquanto os últimos resquícios de Brana ainda se esvaiam.

-Desgraçado... quando é que você vai parar?

O pirata tinha nojo em mexer naquele corpo já sem vida, mas suas suspeitas se concretizaram, tornando real seu pesadelo. Ele se pôs de pé e caminhou até onde estava Zafira e os outros, eles estavam ao redor de Esdras.

-O cretino pôs seus ossos sobre as zezirites. Tudo no seu corpo está alterado, com resquícios de Brana pelos órgãos, tecidos, ossos, tudo. Enquanto a Esdras? Como ele está? -Disse Gerlon.

Mikka soltou um suspiro de lamentação e balançou a cabela de um lado para o outro, com um olhar triste. Então suas orelhas saltaram para cima.

-Espere... sabe algo sobre Selena? Ela está por aqui?

-Ela se foi. Foi dar um passeio contra a vontade dela para encontrar o Marechal Minos e Slyter.

Atrás deles, caminhando com a ajuda de uma assistente, o príncipe Nerona caminhava com muita dificuldade. Suas roupas chiques agora estavam sujas e rasgadas. A assistente lhe ajudou a sentar, e ele garfou de dor. Todo o seu corpo doía.

-Você está bem? - Perguntou Sirius, se aproximando.

Paiyos fez um gesto positivo com a cabeça.

-Então ele estava aqui? - Perguntou Spike.

-Ah, para o bem da nossa jovem princesa, ela foi junto... para evitar problemas, como pode ver. Mas o desgraçado do Kuma tinha outros planos.

Eles olharam ao redor e se depararam que não havia somente os corpos de Kuma e Esdras, mas de vários outros guardas élficos espalhados por todo o salão. Paiyos continuou:

-Ele ficou furioso, e eu tive que me virar para sobreviver. Ajudei os guardas nas defesas lá embaixo, por sorte alguns piratas subiram a montanha. Eles eram bem poderosos, mas não o bastante para salvar o velho Esdras.

-Era um Marechal, nem nós sabíamos se íamos vencer. - Respondeu Zafira, com um olhar melancólico para o corpo de Kuma.

-Por favor, princesa. Você deve permitir que eu te leve de volta comigo para Élnides. -Disse Paiyos.

-Para que você possa me proteger?

-Eu dou a minha vida em uma única palavra para ter certeza... mas eu não duvido de sua grande coragem. Leore quer que nós fiquemos nas sombras da guerra. Ele prefere um ataque preventivo. Mas você... você vai convencê-los de outra forma. E você vai ver, eles não vão começar esta guerra.

Zafira cerrou os punhos.

-Isso eu não posso fazer. Perdoe-me. Mas a minha missão aqui ainda não acabou. Devo empunhar a espada do Rei, Gran-Solaris, e com ela trazer um fim aos Tesseratos. Ao Safira, Esmeralda e ao Rúbi.

Paiyos suspirou. Aquelas palavras o pegaram desprevenido. Foi como ser acertado de surpresa com uma pancada na cabeça.

-Ah, essas coisas... tudo para você gira em torno dessas coisas, e você nem sabe ao menos onde está este último.

-Eu posso arriscar um palpite - Disse Gerlon, atrás deles - Laboratório de Hinkon. Em Thiel. As pesquisas de armas do Império começam e termina lá. Quando vamos partir?

-Agora mesmo - respondeu Zafira, de prontidão -Quanto aos assuntos de Élnides, eu desejo toda a sorte do mundo.

Com extrema dificuldade e dores por todo o corpo, Paiyos se pôs de pé com a ajuda de sua assistente. Ele suspirou e seu pulmão chiou.

-Então, você deixaria todos para cuidar de você mesma. Espero que você não se decepcione. - Eles deram meia volta, e antes que cruzasse a entrada, voltou a falar - Selena deixou uma mensagem para você, eu não entendi bem, mas algo entre as diferenças de nossos lares desaparecerem com o sonho de todos. Ela disse que você saberia o que significa. Com sua licença, eu me despeço.

Paiyos atravessou o portão e desapareceu.

★★★

O céu nublado acima deles anunciava o presságio de uma poderosa tempestade que se aproximava vinda do norte. O vento gelado impedia das fogueiras permanecerem vivas e cabanas de pé. Os estragos haviam sido muitos desastrosos, inúmeras mortes desnecessária assolava os refugiados, que procuravam pelos cadáveres de seus parentes enquanto se desmanchavam em lágrimas. Do alto ainda possível ver pelotões de elfos caçando os últimos remanescentes de criaturas nefastas e sombrias e as matavam sem dó. Das escadas do grande templo, o grupo estava reunido.

Sagitta, Beat e Seal eram tratados por curandeiros, seus ferimentos ainda doíam bastante. Cortes profundos que antes jorrava sangue, agora devidamente curados e tratados. Wiz e Dymas tinham ferimentos mais graves, conscientes a algum tempo, foram realocados para fora do templo, em camas improvisadas com palha e tecidos, Dymas respirava com certa dificuldade, e isso preocupava muito Gerlon e Flora.

De dentro do templo, Folgo vinha caminhando com dificuldade, com um braço ao redor do pescoço de sua esposa.

-Amirah? Você... como? - Perguntou Gerlon e Flora, surpresos por uma velha amiga ainda estar viva.

Ela soltou um sorriso fraco.

-Isso é uma longa história, Gerlon. Eu procurei vocês por anos, mas graças as deusas me recompensaram aqui e agora.
Mikka correu para ajuda-la com Folgo. Ele é bastante pesado.

-Isso é um milagre - disse Flora, emocionada - mas como...

-É uma longa história, passei por maus bocados até chegar até aqui, mas o que importa é que encontrei vocês.

-Fico feliz que esteja viva, Folgo sentiu muito a sua falta - disse Gerlon.
Amirah sorriu.

-Eu também estou atrás de nossa filha... nós nos separamos após o ataque e desde de então venho procurando por ela.

Todos arregalaram os olhos, incrédulos. Aquela frase aparentemente não parecia fazer sentido. Como assim a filha de Folgo está viva? O único motivo de Folgo era sua vingança contra o Império. O velho lobo parecia não estar acreditando no que sua própria esposa falara.

-O que? - perguntou ele atortoado. Ele havia perdido muito sangue no combate.

-Vamos descansar primeiro, querido. Eu vou fazer seus curativos e te explico.

Ela o ajudou a descer as escadas e seguiram rumo a uma cabana ao pé de uma grande rocha, alguns sobreviventes foram a seu encontro.

Gerlon ficou pensativo.

-Está preocupado com alguma coisa? - Perguntou Zafira, se aproximando.

-Não. Eu só quero que eles fiquem bem. É uma tripulação bem leal.

Ao longe, uma pequena aeronave feita de madeira e asas de morcego voava a toda velocidade. Donpa e Recon pilotava o mais rapído que eles podiam. Eles aterrissaram perto deles e foram de encontro com seu capitão.

-Capitão! Precisamos ir! Interceptei as comunicações e disseram que uma grande frota de Falconia estaria vindo para cá! - Disse Recon.

-E que a armada pretende interceptar as frotas aéreas e Thiel, pelos menos as que ainda estão no espaço aéreo. -Disse Donpa.

-Isso é ruim, Falconia pretende contra atacar com tudo se alcançar a Kartacos. -Disse Spike.

-Ouvimos também sobre reinos rebeldes, não entendemos bem sobre o que querem dizer - voltou a falar Recon.

Zafira se virou para o gatuno.

-Como faremos para chegarmos até Thiel nessas condições? As fronteiras thieldianas serão bem guardadas a partir de agora, por medo de uma invasão de Élnides ou Falconia. Não podemos se atrever a ir pelo ar. Todo o espaço aéreo de Falconia até o litoral será um grande campo de guerra e seremos pegos nesses combates.

-Não podemos ir pelo mar também, como o príncipe de Élnides disse, a marinha de Thiél também estará nas aguas próximas ao litoral - completou Spike.

-Vamos a pé. - disse Gerlon, encarando o horizonte - chegaremos até Arghar por terra, pra isso, vamos atravessar a floresta de Echovalle e seguiremos escondidos até a península de Pákhos. De lá, seguiremos até Ponta da Alvorada, o extremo leste de Pangeia.

-Que eu saiba, há um acampamento de anões além de Echovalle. Talvez eles possam no ajudar a entrar nas fronteiras de Thiél sem sermos notados. - disse Flora.

-Conseguir que isso dê certo deve ser a metade da diversão toda. Vamos partir imediatamente, não quero estar aqui quando os falconianos chegarem. Disse Gerlon. - Diga a todos que estamos de saída.

-E oque faremos com os feridos? A maioria de nós não pode andar, muito menos lutar - retrucou Donpa.

-É por isso que nós vamos partir. Vamos ficar no reino de Cela, eu tenho que passar lá antes, há alguém que pode nos ajudar, um informante.

-E onde devemos espera-los?

-Voltem para a capital Imperio e aguardem novas ordens. Tomem cuidado para não serem vistos por Thiél e procurem por medicamentos para os outros. Voltaremos assim que conseguirmos as respostas.

Donpa e Recon acenaram com a cabeça. Sirius e Mikka se aproximaram.

-E então, quanto tempo até chegarmos em Echovalle? - Perguntou Sirius.

-Se fossemos voando com a Bichano , chegaríamos em dois dias, três no máximo, mas não podemos chamar atenção. Falconia fortalecerá as patrulhas aéreas depois desse ataque, então vamos pelo chão, então em uma semana, quem sabe, chegamos até lá.

-Uma semana?! Não podemos perder tanto tempo assim! - protestou Zafira.

-Você tem alguma ideia melhor, princesa? Não podemos ser pegos por ninguém, as coisas já estão difíceis e a tendência é apertar ainda mais.

Zafira quis relutar, mas desistiu quando Spike pôs a mão em seu ombro esquerdo e a encarou.

-Tudo bem, vamos indo. Temos que passar em Cela primeiro. Lembrei-me que tenhos alguns amigos que estão me devendo alguns favores, vamos depressa.

E rapidamente, Recon e Donpa solicitaram a Filo que enviasse as montarias mecânicas. Não demorou muito para que elas chegassem e os outros cuidassem de seus companheiros. Naquela mesma tarde, eles enfrentariam um longo caminho de volta para Cela.

Naquela noite, Mikka encontrou Sirius perdido em seus pensamentos no convés do navio. Sentado sobre algumas caixas, seus dedos rasgavam as nuvens que tocavam seus dedos negros. No alto, Erís caminhava majestosamente no céu infinito e escuro, a lua azul brilhava em contraste com as infinitas estrelas no céu.

-Você está bem? - Perguntou Mikka.

-Sim, eu estava pensando em Zaya. Faz um tempo que eu não retorno para casa e não dou noticias... eu não sei quando voltaremos para casa, para ser sincero com você.

-Estaremos perto de casa, talvez dê para você dar um pulo por lá, sabe, só para mostrar que você está bem.

-É, eu acho que sim. Estive pensando nos outros órfãos também. A guerra está vindo e não sei se conseguiremos salvar a todos... acho que já tiveram desgraça demais pra crianças.

-Você fala como se conhecesse os horrores da guerra - disse alguém atrás deles. Amirah carregava alguns pacotes de remédios e comida. Ela havia se voluntariado para cuidar dos outros piratas do bando.

-Bem, nós conhecemos, nossos pais morreram na guerra. Meu irmão morreu em Itorama e eu vivo sozinho deste então com minha irmã mais nova. Viviamos bem até Thiél decidir invadir o continente. Roubo comida e remédio para não morrer de fome.

-Você me lembra um pouco minha filha. Folgo me contou um pouco sobre você e me contou sobre as coisas que vocês passaram. Sinto pena pois o campo de guerra não é para crianças como vocês, mas vocês se provaram ser corajosos quando decidiram procurar pelo Tesserato no Vale dos Reis, ou quando foram presos em Yanilad. Sei que vocês tem um motivo para lutar, e não só lutam por vocês, mas para todos os órfãos da Capital Império.

-Não que seja meu dever, mas sinto que devo isso a eles. Pela minha irmã, eu não posso parar agora. É o meu lar que está em perigo, é a loja do senhor Ângelo, é a casa de Mikka e dos órfãos. Preciso continuar firme por eles.

Mikka sorriu levemente para Sirius.

-Tudo bem - disse Amirah - foi debatido ainda a pouco sobre os nossos próximos passos. Gerlon quer usar os contatos dele em Cela para ir para Thiel e foi acertado que a saúde da tripulação era prioridade. Vamos descer em Capital Império para comprar alguns remédios e posso passar na sua casa e falar com sua irmã.

-Você faria isso por mim?

-Mas é claro, Gerlon precisa de vocês focados para a missão, então, tudo o que eu puder fazer para ajudar a tripulação que cuidou do meu marido, eu o farei.

Sirius sentiu o peso de seus ombros diminuírem drasticamente. Se sentia culpado havia dias por não dar nenhum sinal de vida para sua irmã ou para o senhor Ângelo, que a essa altura deveria ter um treco preocupado com os dois.

Amirah sorriu gentilmente para os dois jovens.

-Vocês seriam grandes amigos da nossa filha, ela era uma garota muito positiva e gostava de ajudar os outros, assim como vocês. Mas poucos dias antes do Império atacar nossa vila, ela adoeceu gravemente... -Amirah segurou as lagrimas o quanto pôde - fico feliz que a vida tenha dado uma segunda chance para minha família e eu me reunir com meu marido.

Ela deu meia volta e desceu para as cabines.

★★★

Depois de dois dias de viagem, a tripulação finalmente pousava no aeródromo de Cela. Horas antes, a grande prisão de Yanilad já podia ser vista no horizonte e uma grande movimentação já podia ser notada. A fortaleza construída num óasis localizado entre os reinos de Cela e Henry. Defendida por altas cristas e areias áridas, manteve-se firme durante muito tempo contra gerações de agressores. A Fortaleza de Yanilad e a cidade mercantil que surgiu a sombra fizeram da área um ponto focal para o comércio local. O tratado para encerrar as hostilidades na guerra contra Thiel foi assinado em Itorama, capital de Cela, mas imediatamente após a assinatura, o rei Marley foi morto e, como resultado, o reino de Henry ficou sob o domínio Imperial Thieldiano por completo. Nos cinco anos desde de a guerra e ocupação pelas forças de Thiel, a fortaleza tornou-se um reduto estratégico chave contra o distante, mas sempre ameaçador, Império Élnidiano. As obras continuam até hoje para reparar os danos que a fortaleza sofreu durante a guerra. Recentemente, os mercados onde se pode encontrar facilmente antiguidades e raridades surgiram nos bairros exteriores da fortaleza, aproveitando o fluxo constante de tráfego que passa por este ponto médio entre Itomara e Capital Império. É esta localização crucial que confere a fortaleza o seu caráter único. Muitos são os viajantes que visitam a Fortaleza de Yanilad para testemunhar este oásis em constante expansão que se recusa a ser abandonado ou desmoronar diante dos ventos fortes da guerra.

Assim que Sirius e os outros desceram da Bichano, eles repararam algumas coisas curiosas. Sirius notou que mesmo morando no reino vizinho, nunca visitou realmente Itorama, apenas ouvia história dos outros mercadores falarem dela na cidade baixo, até os guardas thieldianos ele já ouvira comentários. Spike, apesar de ter ficado preso ali por cinco longos anos, nunca reparou o quanto que a cidade havia crescido ao redor daquela prisão fosse tão movimentada, e achou estranho as pessoas ali nunca se importarem as sombras de uma fortaleza que é usada como prisão para os inimigos políticos do império e prisioneiros de guerra. Quanto a Gerlon, achou estranho o povo não ter consciência de que moravam tão perto de uma Rainha Peçonhenta, algo que acabaria com a paz daquele local se descobrissem.

Naves Thieldianas sobrevoando a Fortaleza de Yanilad

Depois que os imperiais assumiram o controle da Fortaleza de Yanilad, ela agora é usada principalmente como prisão. A própria cidade foi reconstruída e agora contém um mercado próspero e um caís para aeronaves. Os soldados são abundantes, guardando o acesso para as rotas que levam ao Deserto de Madrash e ao reino de Henry, e aqueles que desejam visitar o aeródromo são escoltados através da fortaleza.

As bandeiras do Império Thieldiano estavam hasteadas por vários locais e tremulavam ao vento. Naves imperiais entravam e saiam dos arredores da cidade constantemente, enquanto aeronaves cargueiras estavam paradas no ar e compartimentos se abriram na barriga da nave para a entrega de mercadores gentilmente colocada no chão por guindastes dentro das próprias naves. Alguns prédios ainda estavam sendo construídos, como a biblioteca, onde vários estruturas de madeira estavam erguidas ao redor da grande cúpula de vidro azul.

A cidade era dividida na alta e baixa Itorama, com ruas e praças enfeitadas por altos coqueiros e uma cachoeira de quase vinte metros que saia por um dos lados das estruturas de pedra da alta Itorama, os moradores reconstruíram visando a importante do oásis para a cidade.

Rua da cidade alta, ao redor da Fortaleza de Yanilad

O grupo saiu rapidamente do aeródromo e foram rapidamente para a parte mais periférica da cidade, na baixa Itorama. As ruas largas e com fluxo intenso de pessoas os ajudavam a se camuflar bem, já que a última coisa que eles queriam naquele momento era ser descobertos por guardas. Eles andaram por alguns minutos até pararem numa fonte.

-Quem estamos procurando, pirata? - Perguntou Spike - seu contato é confiável?

-Confiável, essa é uma nobre palavra para isso, está mais para útil.

-Como assim? - Quis saber mais a princesa Zafira.

-Aguarde e saberá.

O sol apontava meio dia. O dia estava ensolarado e quase sem nenhuma nuvem no sol. O calor fazia todos ali suarem mais do que gostariam. De repente, algumas crianças passaram correndo entre eles e gargalhavam bastante.

-Protejam bem seus bolsos - sugeriu Gerlon.

Eles acompanharam as crianças correrem rapidamente entre os comerciantes e furtando alguns guardas e comerciantes tão rápidos quanto um piscar de olhos. Sirius encarou aqueles atos e os julgou silenciosamente. Mas se sentiu culpado, pois ele fazia aquilo para sobreviver. Quantos guardas ele roubou para vender na cidade baixa para levar comida para sua irmã e os outros órfãos? Talvez eles os repreendesse por não praticar estes pequenos furtos há algumas já, até porque ele se viu em um cenário maior, numa missão de vida que pode mudar aquele continente para sempre.

Uma breve confusão se iniciou um pouco mais a frente deles, perto de uma barraca de especiarias, mas as crianças já haviam corrido dali e se escondido numa viela ali perto. Gerlon não tirou seus olhos de felinos deles, ele caminhou sorrateiramente até a população, e os outros o seguiram. Por caminhos estreitos e esquecidos, eles seguiam as gargalhadas das crianças. Num beco escuro e até bem escondido , as crianças haviam construído um forte de madeira numa casa abandonada. Elas repartiam alguns pedaços de pão e outras coisas entre elas, quando se assustaram com a presença de Gerlon.

-Onde está a Madame Crussel? - Perguntou o pirata. As crianças arregalaram os olhos, assustadas.

-Eu falei para conferir se não estava sendo seguido, seu idiota! -gritou uma delas.

-Mas eu me certifiquei, esse panaca não aparenta ser do império - disse outra.

Gerlon bufou.

-Realmente, não pertenço ao império, ao contrário, estamos tentando pará-lo.

Os garotos riram. Um deles sacou um canivete. Mikka se assustou e se escondeu atrás de Sirius. Ele nunca havia sido violento a ponto de portar uma lamina com ele. Gerlon permaneceu imóvel.

-Vocês parecem portar coisas valiosas com vocês, e nós queremos. - Mais garotos apanharam alguns pedaços de madeira para usar como porrete.

Gerlon deu um leve sorriso e Spike descruzou os braços. O primeiro avançou contra a princesa Zafira, mas Spike foi mais rápido e num movimento fácil, desarmou o garoto e quebrou o porrete ao meio.

O que estava com a faca, aparentemente era o líder das crianças, avançou contra Gerlon e colocou a faca na garganta do pirata.

-Se vocês acham que venceriam a gente só porque o cachorro velho desarmou ele, estão muito enganados.

-Se vocês acham que venceriam a gente só porque está com uma faca no meu pescoço, estão muito enganado - Gerlon tinha sua faca apontada para a barriga do garoto, sem que ele tivesse percebido - você quer ser malandro para cima de mim, na escola que você aprendeu, eu fui professor.

O pequeno ladrão olhou para o lado e notou que runas mágicas brilhavam nas mãos de Flora. Ela estava pronta para acertá-lo com sua poderosa magia caso fosse necessário. Gerlon amava Flora, ela não pensaria duas vezes em incendiar meia dúzia de arruaceiros. Ela sequer hesitaria. Aquele confronto não valeria a pena. Ele recuou sua faca e a guardou no bolso da calça.

Ele olhou para trás e fez um gesto com a cabeça. Um deles correu para outro cômodo e um barulho de madeira sendo arrastada. O grupo seguiu os pequenos ladrões até um buraco na parede que levava para outro lugar.

-Madame Crussel está numa tenda alaranjada no primeiro beco a esquerda. Ela está um pouco doente, então não a estressem.

O grupo adentrou dentro do túnel e caminharam até o final, saindo do outro lado, becos e vielas escuras aos pés da Fortaleza de Yanilad, fazia dali o descarte e o esgoto a céu aberto daquela Fortaleza. A tenda laranja grudada com pregos nas paredes. Entrando nela, uma senhora idosa estava deitada numa cama improvisada com caixas de madeira e feno. Panos grossos. Ela lia um livro desgastado e de páginas amarelas.

-Madame Crussel - disse Gerlon.

Ela se assustou e se pôs de pé num salto. Tinha um rosto magro e abatido e poucos dentes na boca.

-Ora, ora, ora. Quem está vivo sempre aparece, em? -Disse a velha, dando um largo sorriso - e parece que ele não está sozinho.

-Precisamos da sua ajuda, Madame Crussel. Precisamos chegar até a Ponta da Alvorada sem chamar atenção.

-E o que te faz pensar que eu posso ajuda-lo? Essa velha só lhe é útil quando tenho algo a oferecer, não é? Você não vem me visitar desde de quando?

-Há cinco anos.

-Cinco anos... achou que eu estivesse morta, não é? - A velha deu uma gargalhada.

-Bem que eu queria, sinceramente. Mas você ainda está me devendo um favor e eu vim cobrá-la.

-Há seu moleque ingrato. O que posso fazer por você?

-Gostaria que você nos colocasse dentro da Necrópole de Cela, pretendo pegar a rota até chegarmos em Echovalle e de lá, algum caminho para nos levar até a Ponta da Alvorada. Eu pretendo chegar em Arghar pelas cavernas subterrâneas.

-O gatinho perdeu o caminho de casa? - A velha voltou a gargalhar - certo, mas porque você não foi com a Bichano? Não me diga que explodiram ela?

-Não, não, ela está bem, é só que aconteceu uma baguncinha em Kravaattii e digamos que as coisas não estão muito fáceis. Principalmente porque estamos na companhia da Princesa Zafira.

A velha arregalou os olhos ao encarar Zafira. Ela a analisou de cima a baixo. Em todos os seus anos de vida, ela jamais pensaria ver alguém da realeza na sua frente.

-O que vocês andaram fazendo, Gerlon?

-Você vai me ajudar ou não?

A velha estalou seus dedos e duas crianças apareceram.

-Leve os para a Necrópole em segurança. Não deixe que ninguém os veja. Dessa vez não há espaço para pregar peças nos nossos convidados.

-É um caso de vida ou morte. - Disse Gerlon, tirando do bolso e jogando um saco de ouro para a velha - Espero que consiga comprar comidas pra esses órfãos, eles nos atacaram com paus e uma faca.

A velha deu outra gargalhada.

-Como estão as coisas lá fora?

-O império está avançando cada vez mais para dentro do continente. Falconia vai intensificar as vigílias e provavelmente os primeiros embates irão acontecer. A guerra vai acontecer mais cedo ou mais tarde, e só nós podemos impedi-la.

-Porque acha isso?

-Por quê temos armas que podem vencer o Império. -Disse Zafira - com elas, toda essa opressão sobre os povos de Pangeia irão acabar, mas precisamos de toda ajuda possível, desde de ajudas simples como nos levar em segurança para mais perto do nosso objetivo. Seus esforços serão recompensados.

A velha refletiu por um tempo. Aquelas palavras a encorajaram de que tudo poderia mudar ainda, que nem tudo estava perdido.

-Ouvi boatos de que a velha raposa está convocando os reinos oprimidos para lutarem na guerra que se aproxima. Você promete dar uma nação livre do império para todos esses órfãos?

Zafira acenou positivamente com a cabeça.

-Pois bem - A velha pegou um cartão que estava guardado entre as paginas do seu livro e entregou para Gerlon - Ouvi dizer que alguns contrabandistas montaram um acampamento. Mostrem este cartão e conseguiram algumas armas e informações que poderão ser úteis para vocês.

Gerlon se despediu da Madame Crussel e saíram de sua pequena tenda. Eles seguiram os órfãos pela viela escura, até saírem numa rua perto de uma das avenidas principais que davam para fora de Yanilad. A passagem que dava para fora dava acesso a uma paisagem seca e árida. Um outro óasis que dá vida aquela região, ao norte de Madrash, onde as dunas do grande deserto ainda se faz presente. Um quilômetro ao norte, a antiga capital, Itorama, agora não passava de ruinas engolidas pela as areias.

Na saída, um grupo de imperiais descansava e conversavam sentado encima de uma grande pilastra tombada alguns metros da entrada, eles agiam como pedágios, controlando quem entrava ou saia da cidade. Antes do grupo se preocupar, Gerlon chamou um dos órfãos e combinou um deles um plano de distração.

Uma das saídas da cidade que cerca a Fortaleza de Yanilad


O plano simples consistia em um deles caminhar até o grupo de soldados e lhes roubar as bolsas de água que eles bebiam. Os garotos eram bons ladrões, pois os guardas só deram por falta da água por que um dos órfãos gritou para que fosse perseguido de próposito.

-Seguiremos sem um guia por aqui.

Eles caminharam por meia hora até chegar nas ruínas de Itorama. Zafira e Spike ficaram com olhares pesados. Eles se perguntaram se o poder que causaram aquilo na cidade, o Tesserato que eles haviam em posse poderia causar aquilo no Império. Era exatamente isso que ela queria? Zafira voltou a si quando Mikka a chamou. O grupo havia se distanciado um pouco.

Eles caminharam em direção a uma grande cratera num local que provavelmente seria uma praça, hoje em ruinas. Distante, avistaram um Palácio que já abrigou a família real Cela. Chamado de Palácio de Vermount, outrora orgulhosamente no meio de um lago, hoje seco. Destruído no ataque de Thiel há cinco anos. Embora o fantasma do edifício permaneça nas paredes em ruínas, ele está totalmente destruído e fica meio submerso na escuridão. Agora a Brana flui livremente por seus corredores abandonados, e sua gloriosa memória é profanada por um zoológico de criaturas vis.

Um a um, Flora os ajudava a descer com sua magia de vento e os fazia aterrissar com segurança. O caminho era um longo e alto túnel que era iluminado por cristais nas paredes. Manifestações de Brana flutuavam acima deles e seguiam em uma única direção como se fosse um rio mágico acima de suas cabeças. O caminho era largo suficiente para passar um grande trem.

Sirius e Mikka foram ao encontro de Spike, que estava um pouco mais afastado, enquando Gerlon descansava sobre um pedaço do teto. O chão era de um cimento mal acabado, quase como se fosse terra batida, e coberto por uma vegetação rasteira e musgos.

-Isso é tudo que resta de Itorama. Cinco anos atrás foi destruída por uma força misteriosa. Um trabalho do Tesserato Rubi. -Disse Spike, encarando o caminho na frente deles.

-Isso? Em apenas cinco anos? Como? - Perguntou Sirius.

-A medida que o Tesserato Esmeralda derrubou a Bearthorn, uma névoa se formou adiante. É como se fosse a mesma coisa que aconteceu aqui. A névoa corrompeu a vida deste lugar. É uma Necrópole invadida por animais. Nós pisamos aqui em uma missão de tolos, seria melhor voltar para trás e repensar nos nossos passos.

Zafira até então, havia permanecida em silencio. Ela encarava algo no chão, até que Flora se aproximou dela.

-É vingança que você deseja? - Perguntou a pirata - sim ou não, não será na capital que irá encontra-la. O caminho para Arghar está a Nordeste de Echovalle, além da Ponta da Alvorada e do Planalto de Kuloong.

-Certo, descansamos demais, estamos perdendo tempo. Vamos embora - disse Gerlon, pondo-se de pé.

★★★

Eles andaram uns trinta minutos antes de estarem irremediavelmente perdidos. O túnel não parecia nada similar ao que eles já estiveram antes. Eles não haviam percebido, mas agora ele era redondo como um esgoto, construído de tijolos de barro com vãos com barras de ferro de três metros. Eles juraram ter ouvido vozes ali embaixo, mas podia ter sido apenas o vento frio. Até que se encontraram no meio de uma câmara circular com oito túneis, e não tinham ideia de como prosseguir.

-Hum, por qual caminho viemos? - Perguntou Sirius.

-Apenas dê meia volta - disse Flora.
Cada um deles se virou para um túnel diferente. Foi ridículo, nenhum deles conseguia decidir que caminho levava de volta de onde vieram.

Gerlon e Flora varreram a entrada dos oito túneis, de imediato, elas eram idênticas.
-Por ali - disse o Gerlon.

-Como você sabe? - Perguntou Zafira.

-Raciocínio dedutivo.

-Então você está adivinhando?

O túnel que ele escolha se estreitou rapidamente. As paredes transformaram-se em cimento cinza, e o teto ficou tão baixo que logo tiveram que arquear as costas.
Sirius hiperventilando era o mais alto ruído do labirinto.

-Eu não sei se aguentarei por muito tempo, estamos chegando? - Disse Sirius, nervoso.

-Nós estamos aqui em baixo uns quarenta minutos - disse Mikka.

Continuara desodernadamente em frente. Bem quando tiveram a certeza de que o túnel ficaria tão estreito que iriam se espremer, ele se abriu numa enorme sala. Flora iluminou novamente com uma magia de fogo, enquanto Sirius e Mikka soltaram um "Uau".

O cômodo todo era coberto por azulejos de mosaico. As figuras estavam encardidas e desbotadas, mas ainda podia se ver as cores vermelho, azul, dourado e marrom. O mural mostrava reis em um grande banquete rodeado por soldados. No meio da imagem, um grande rei portava uma espada dourada, segurando uma taça de vinho e brindava para os soldados. Capitães e generais festejavam uns com os outros. As imagens eram lindas, mas não eram muitos precisas. Reis se misturavam com seus soldados? Servir a nobreza era tão legal assim?

No meio da sala estava uma fonte com três níveis. Parecia que não tinha água na fonte há um longo tempo.

-Que lugar é este? - Perguntou Sirius.

-Esses mosaicos são muito antigos, não é deste milênio. -disse Spike.

-A necrópole é uma miscelânea - disse Flora - parece que ele está sempre e expansão, adicionando peças. Os fluxos de Brana deve manter este lugar vivo, se adaptando e adquirindo novas áreas a medida que Itorama crescia e sua história é gravada em murais.

-Você faz soar como se estivesse vivo. - Disse Mikka.

Um barulho como um gemido ecoou do túnel a frente deles.

-Não vamos falar sobre ele estar vivo, por favor? - Choramingou Sirius.

-Tudo bem, avançando - disse Gerlon.

-Descer o corredor com estes sons estranho? - Spike disse, ele parecia meio nervoso.

-É - Gerlon falou - a arquitetura está ficando mais velha, e isso é um bom sinal, já que nós queremos sair dele. É pra sairmos no meio de alguma cordilheira próxima a Echovalle.

Isso fazia sentido. Mas logo a necrópole estava brincando com eles, eles andaram por uns quinze minutos e o túnel virou cimento de novo, com canos de bronze correndo pelos lados. As paredes foram pintadas com runas douradas. Lia-se uma palavra como ouro quente SHMON.

-O que é SHMON? - perguntou Mikka.

-Não está completa, então quem estuda magia, não tem significado algum. - respondeu Flora.

A pirata respirou fundo e seguiu em frente. A cada poucos passos os túneis espiralavam e se transformavam e se ramificavam. O piso abaixo deles foi de cimento para a lama para tijolos e tudo de novo. Não havia qualquer sentido em nenhum deles. Eles tropeçaram em uma adega estreita, várias garrafas empoeiradas em prateleiras de madeira, como se estivessem o porão de alguém, só que não havia saída alguma acima deles, só mais túneis. Provavelmente era algum posto de vigilância dos guardas de Itorama. Depois o teto se transformou em tábuas de madeira, e eles podiam ouvir vozes acima deles e barulhos de pegadas, como se estivessem caminhando sob alguma parte da cidade ou vilarejo. Era reconfortante ouvir outras pessoas, mas mais uma vez, não podiam chegar até elas. Estavam presos ali embaixo, se saída. Então começaram a encontrar os primeiros esqueletos.

-Estava vestido com roupas brancas, como uma espécie de túnica. Um livro e uma cruz de madeira estava próximo a ele.
-Clérigos - disse Gerlon.

-O quê? - Perguntou Sirius.

-Eles costumavam fazer do clero, eram tipos padres e sacerdotes.

-Eu sei o que é um clérigo, me refiro o que ele está fazendo aqui?

-Quem sabe? Foi chamado para exorcizar os fantasmas que podem habitar aqui.

-F-F-Fantasmas?! Aqui?! -Sirius começou a se treme por inteiro.

-Claro, isso é uma Necrópole, sabe o que significa, não é?

-Ele está aqui embaixo há muito tempo - Spike apontou para sua roupa e seu livro, que estaba coberta com poeira branca. Os dedos estavam arranhando a parede, como se tivesse morrido tentando sair.

-São só ossos - disse Zafira - não se preocupe, ele está morto.

-Não é o clérigo que me incomoda - Sirius falou - É os monstros. Você não consegue sentir eles?

Flora assentiu.

-Um monte de monstros, mas normalmente lugares sagrados, abandonados ou inundados por Brana são assim.

-Queria que não fosse assim - disse Sirius.
-Temos que ir mais fundo, tem de haver um caminho para sairmos daqui - Disse Gerlon.

Eles caminharam pelo túnel, entraram num caminho a direita, depois para a esquerda, através de um corredor de aço como uma espécie de eixo de ar, e voltaram ao cômodo com azulejos azuis, dourados e vermelhos e a fonte.

Desta vez, não estavam sozinhos.

★★★

O que Sirius viu primeiro foi seus rostos. Os dois. Um estava sobreposto ao outro como uma miragem. O sobreposto ele tinha feições maléficas. Olhando diretamente para eles, tudo que eles enxergavam eram duas orelhas sobrepostas e imagens-espelho.

Era uma pessoa baixa, usava roupas extravagantes, como um bobo da corte. Seus cabelos eram ruivos num tom de ferrugem. Usava uma cartola que cabia perfeitamente em sua cabeça e o que mais lhe chamava atenção: usava uma máscara branca e outra metade amarelada, quase dourada. Na bochecha, a parte branca tinha um desenho de uma lua, enquanto na dourada, de um sol. Ambas as partes pareciam ter vida própria. Ela moviam as maçãs de seu rosto e abriam a boca sem precisar da outra. Seus olhos eram frios e causavam um certo desconforto.

-Bem, Zafira? - disse o rosto da esquerda.

-Não ligue para ele - disse o rosto da direita - ele é terrivelmente rude. Por essa direção, senhorita.

O queixo de Zafira caiu.

-Uh... eu não... - ela levantou uma de suas sobrancelhas e olhou para seus companheiros.

-Esse cara é engraçado, tem duas caras - disse Sirius, franzindo as sobrancelhas.

-O homem engraçado tem ouvido, sabia? - a face da esquerda resmungou - agora venha, senhorita.

-Não, não - a face da direita disse - nesta direção, senhorita. Fale comigo, por favor.

O homem de duas caras observou Zafira da melhor fora que podia pelo canto de seus olhos. Era impossível olhar para ele diretamente sem focar um lado ou outro. E de repente perceberam que era isso que ele estava pedindo: ele queria que Zafira escolhesse.

Atrás dele estavam duas saídas, bloqueadas por portas de madeira com enormes cadeados de ferro. Eles não estiveram lá na primeira vez que eles passaram por ali. O homem segurava uma chave prata, que ele continuava passando de sua mão esquerda para a sua mão direita. Imaginavam se ele este era um lugar completamente diferente, mas o mural dos reis e de deuses parecia exatamente o mesmo.

Atrás deles, a porta pela qual entraram desapareceu, substituída por mais mosaicos.

Não poderiam voltar pelo caminho que vieram.

-As saídas estão fechadas - disse Zafira.

-Sim? - a face esquerda respondeu.

-Aonde elas levam? - ela perguntou.

-Uma provavelmente leva ao lugar que você deseja ir - disse o rosto da direita animadamente - a outra leva a morte certa.

-É, mas quem você é? - Perguntou a princesa.

-Isso não importa - zombou o rosto da esquerda - você sabe que caminho escolher? Eu preciso sair daqui também.

-Por que vocês estão tentando nos confundir?

A face da direita sorriu.

-Você está no comando agora, minha querida. Todas as decisões estão em seus ombros. Isso é o que você quer, não é? Ser uma rainha que manda?
-Eu...

-Nós conhecemos você, Zafira. - a face da esquerda disse - sabemos o que você luta todos os dias, o que você deseja. Sabemos suas indecisões. Você terá que fazer muitas outras mais cedo ou mais tarde. E a escolha pode matar você.

Eles não sabiam do que eles estavam falando, mas soou como se fosse mais do que uma escolha entre portas.

O ar fugiu dos pulmões de Zafira.
-Eu... não, eu...

-Deixei-a em paz - disse Spike - quem é você, afinal?

-Nós somos os seus melhores amigos - disse a face da direita.

-Nós somos os seus piores inimigos - disse a face da esquerda.

-Somos filhos de um condenado - disse a face da direita.

-Somos libertadores - disse a face da esquerda.

-Estamos buscando por alguém que nós perdemos - disse a face da esquerda.

-Eu sou Magus - afirmaram ambas as faces em harmonia - Deus das portas, começos e fins, escolhas e consequências. Estou procurando por aquele que tece e comanda o destino de todos, e no final, minhas escolhas me levaram ao fim de tudo. - Ele cerrou os olhos afiadamente - Eu verei vocês em breve, mas isso não importa agora, agora é a vez da princesa Zafira.

Magus riu vertiginosamente.

-Cale a boca! - gritou Zafira.

-Isso é sério. Uma má escolha pode arruinar toda a sua vida. Pode matar você e todos os seus amigos. Mas sem pressão, princesa - disse o rosto da esquerda.

-Escolha! - disse o rosto da direita.

-Não faça isso - disse Spike.

Zafira olhou para Gerlon em busca de algumas palavras, mas o pirata apenas a encarou, sem dizer uma palavra. "Eu confio na sua escolha", dizia o seu olhar.

A Princesa Zafira se pôs firme na sua decisão, e prestes a escolher, uma brilhante luz inundou a sala. Magus e Janus levantaram suas mãos para cada lado de sua cabeça para cobrir os olhos. Quando a luz sumiu, uma mulher estava em pé diante deles.

Ela era estranha, era como se não fosse de carne, não... ela tinha uma pele estranhamente lisa, brilhava em tons metálicos. Seus olhos eram vermelhos e rígidos. Mas ela não estava pessoalmente ali, era mais como uma miragem, uma projeção de seu poder.

Mulher com pele metálica e olhos vermelhos

-Magus - disse ela - está causando problemas de novo?

-Mãe? Eu não estou causando problemas! Eu estou procurando o desgraçado que roubou minha única maneira de salvar você! Eu preciso saber onde você está! E a resposta estava diante de meus olhos! Maldito Pólio! -Disse a parte branca.

-Sim, mãe, estamos causando problemas - disse a parte amarelada - o ladrão de luz nos tirou a única solução para te encontrar e te libertar!

A mulher sorriu de forma benevolente. Pelo menos assim parecia. Suas feições mecânicas eram difíceis de deduzir.

-Entendo - disse ela - eu já falei para não me procurarem mais! Vocês precisam viver suas vidas, vocês possuem responsabilidade! Eu pagarei pelo meu pecado e não desejo ser libertada!
Ela se virou para a Princesa Zafira.

-A hora da garota ainda não chegou. Então darei a você uma escolha: deixar eles irem ou nunca mais visitarei vocês! E deixarei que morram na solidão que vocês mesmo construíram ao redor de ambos.
-Até que não é tão ruim - disse o rosto amarelado.

-Cale a boca! - gritou o rosto branco.
A miragem os encarou friamente. O rosto branco da máscara continuou.

-Não, mãe. Claro que eu vou sair. Nós só estávamos nos divertindo um pouco. Fazendo o nosso trabalho. Oferecendo opções.

-Vocês sabem muito bem que ele não possuem ligação com aquele que os roubou. Tomem cuidado, meus filhos. Não se esqueçam: um grande coelho gordo e Elazul estão caçando vocês. Por favor, cuidem um do outro. -Suplicou ela.

-Não é com eles que nós nos preocupamos, mãe. Você tem visto o homem da máscara negra ultimamente?

-Ele anda fazendo sua parte. Não se preocupem, tenho tudo sobre controle. O árbitro não nos alcançará. Agora vão, minhas forças estão se esvaindo. Tomem cuidado.

Magus e Janus retirou do bolso, uma chave prateada e inseriu numa fenda na parede. Ele abriu e magicamente atravessou, como se fosse uma porta invisível.

A miragem se voltou para eles, e o medo se fechou em torno de seus corações. Se tiverem que lutar, não venceriam, eles estavam sem armas. Os olhos delas brilhavam com poder. Ela tinha autoridade e força para mandar naquele ser estranho. Deus das portas e das escolhas, ele disse? Isso não parecia bom, nada bom. Ela encarou Sirius com um olhar fulminante.

-Use seu Namida Ecólita, vai ajudar. Diga amigo e peça permissão. -E a miragem se desfez no ar.

O cara de Sirius brilhou num verde intenso, como uma floresta estivesse prestes a ser expelida por aquele cristal. Nada aconteceu.

-Precisamos seguir reto - disse ele.
Os outros se entreolharam.

-Essa é a escolha menos provável - disse Zafira.

-Vocês não vêem? - Sirius perguntou - olhem para cima.

Eles não viram nada além de tijolos desgastados, lama e um tapete falho e feio de grama.

-Tem uma claridade - insistiu Sirius - bem fraca, na verdade, mas adiante é o caminho certo.

-Sirius, você tem certeza do que está falando? -Perguntou Mikka, preocupada.

Ele assentiu com a cabeça.

-Para e esquerda à frente do túnel, as raízes daquela árvore se movem como tentáculos e eu não gosto disso. Para a direita, há uma armadilha no chão a quase cem metros a frente.

-O Namida Ecólita está lhe mostrando isso? -Perguntou Gerlon.

-Eu... acho que sim, vocês não vêem?

Todos fizeram sim com a cabeça.

-Então vamos adiante - Disse Flora.

-Você acredita nele? - Perguntou Gerlon.

-Eu acredito e confio no cristal. Se ele revelou para Sirius, então é o correto a se fazer.

Flora e Spike foram os primeiros a seguir o caminho indicado por Sirius. Os demais os seguiram firmemente. Juntos seguiram pelo corredor de tijolos. Ele girou e mudou, mas não havia mais túneis laterais. Pareciam estar descendo, se aprofundando cada vez mais no subsolo.

-Sem armadilhas? -Perguntou Zafira, ansiosa.

-Nenhuma - Sirius franziu as sobrancelhas - deveria ser tão fácil assim?

-Não sei, mas não deveria, mas vamos agradecer por ser - disse Gerlon.

Eles caminharam por um longo tempo, sem saber ao certo. Seus pés doíam e eles paravam de tempos em tempos para descansar. Sem a luz solar ou até uma brisa leve para orientá-los ali embaixo, era uma tarefa muito complicada e de resistência árdua.

-Por aqui - dizia Sirius.

Zafira se perguntava com frequência qual seria o tamanho daquela Necrópole, e com todo o tempo que já haviam passado ali, chegou a conclusão de que eles já estavam fora das terras de Cela a muito tempo.

Era um caminho difícil, porém mais seguro que enfrentar as hordas de imperiais na superfície. A guerra do norte estava prestes a recomeçar com a invasão em massa de Thiel. Eles não poderiam arriscar. Andar pra cima e pra baixo com uma princesa jurada de morte e traição, só os atrapalharia. E confusão aquela altura, era melhor com monstros do que com pessoas. O caminho oferecia uma rota "segura" até próximo a Echovalle, uma floresta muito ao norte do Reino de Henry, mais próxima do litoral. Eles não sabiam quando ou onde chegariam por ali, mas os caminhos por dentro das montanhas e pelo subsolo era muito mais fácil quando se tem um Namida Ecólita.

Eles perderam a conta de quantas vezes tiveram que se abaixar para escaparem de armadilhas, todas elas (ou quase todas) eram projetadas por Mymercianos ou gnomos da terra, seja para se proteger de predadores, ou pegar a presa. A vida ali embaixo não era nada diferente da superfície. Isso fez Sirius, Mikka e Flora se perguntarem o quão grande este mundo é. Havia raças, povos, seres que eles nunca haviam ouvido falar por simplesmente não estarem ao alcance deles, e nem dos povos mais tribais da superfície.

Eles perderam a conta de quantas vezes escaparam de armadilhas ou correram de minhocas e insetos debaixo da terra. Não pararam para descansar até chegar em uma sala do tamanho de uma quadra, com velhas colunas de mármore segurando o teto. Eles pararam na porta, tentando ouvir sons de criaturas ou qualquer ser vivo ali, mas não havia nada.

Sirius e Mikka estavam tão exaustos que sentaram no chão próxima a uma coluna mesmo. Spike encontrou alguns gravetos secos e fez uma fogueira. Sombras dançavam nas colunas erguendo-se em volta deles como árvores.

Flora cutucava o fogo com um outro graveto maior que ela havia encontrado.

-Eu tenho pena da Selena - disse Zafira após algum tempo - ela ter que ouvir que seu irmão matou seu pai não deve ter sido fácil.

-Ela deveria ter ido conosco para Rahma Haruna - disse Mikka, cabisbaixa. Dentre todos ali, Mikka era a que mais se preocupava com Selena, elas haviam se tornado muito próximas.

-Ela só atrapalharia - respondeu Gerlon, friamente.

-Por que você diz isso? Nós cuidamos um dos outros -disse Zafira.

-Ela tem seus próprios motivos para lutar, e sua missão não é conosco. Entenda que nossos caminhos se cruzam apenas porque temos os mesmos objetivos.

-E por causa disso, ela foi levada de volta para o império.

-Para casa. Onde ela pertence. Ela seria mais útil se ela desestabilizasse o Império por dentro. Chegaríamos a Arghar mais rapidamente.

-Por que você tem tanto ódio de Thiel? -Perguntou Mikka, e todos encararam para Gerlon.

-Você não tem ódio do Império? -Retrucou Gerlon.

-Não sei se ódio é bem a palavra correta. Por um tempo, acreditei mesmo que o pai da Selena pudesse realmente ajudar a conter este avanço. Concertar o que Leore vem fazendo, mas... -Mikka abraçou suas pernas, tristemente.

Eles ficaram em silêncio por um tempo. Flora se pôs de pé.

-Para onde o cristal aponta, Sirius? -Perguntou.

Sirius não respondeu imediatamente. Ele ficara mais quieto desde da conversa. Ele havia queimado a ponta de um graveto no fogo e o estava usando para desenhar um navio pirata e alguns desenhos de quatro pessoas.

-Seguiremos o caminho - ele disse - a claridade sobre nossas cabeças.

-A claridade que nos leva direto para armadilhas? -Perguntou Gerlon.

-Deixe-o em paz, Gerlon - Disse Mikka - ele está fazendo o melhor que ele pode.
Gerlon revirou os olhos.

-Eu posso ver o caminho - disse ele - não consigo explicar, mas eu vejo claramente.
Ele apontou para outra saída da sala, para a escuridão.

-Vamos descansar por hoje. Vamos dormir e quando acordamos, seguiremos em frente. -Ordenou Spike.

Flora e Zafira haviam pego algumas folhas secas e juntaram como se fosse uma cama encima de um tapete de grama mal cuidado do lado de uma coluna.

-Eu faço a primeira vigília -Disse Gerlon. Seu tom parecia chateado com alguma coisa. Ele se sentou de frente para o caminho que Sirius havia apontando e aguardou por algumas horas.

Eles despertaram depois de sete horas de descanso. A barriga de Sirius e Mikka roncavam alto. O ânimo e a disposição para continuar o caminho já quase não existiam. Usaram o resto para continuar a caminhada, afinal, era a única coisa a se fazer. Eles caminharam por umas duas horas até darem de cara num grande portão preto.

Flora pareceu animada. Ela deu três batidas e uma portinhola se abriu.

-Quem é? -Perguntou uma voz fina e grotesca.

-Somos viajantes. Viemos de Ramdahmut e vamos para Echovalle. Sou uma Noru em peregrinação - disse ela.

-"Somos"? Quem mais está com você? Outras belezinhas Noru? Elas são lindas!

-Sim, é claro - disse Flora, revirando os olhos.

O portão se abriu. Na frente deles, um pequeno gnomo de orelhas grandes, meio desprovido de beleza, usava roupas de mecânico, com luvas e barbicha sujas de graxa, apareceu, sorridente. Seus dentes amarelos e banguelas era o que mais chamava atenção.

Gnomo mecânico

Na frente dele, Flora e Spike surgiram.

-Ei! - Quis protestar, mas recebeu uma encarada séria de Spike e ficou quieto.

Na frente deles, uma grande salão se extendia. Vários gnomos, duendes e Mymercianos andavam para lá e para cá, quase como se fosse um pequeno vilarejo.

Todos arregalaram os olhos. Não podiam acreditar no que viam. Era como se um mundo se esconde-se sob eles. O vilarejo era vivo, pulsante e bem movimentado. No teto, enormes insetos caminhavam sobre um fio grosso e forte de cabeça para baixo. Vários caixotes de madeira formavam bancos e vários seres utilizavam aquilo como meio de transporte por dentro da terra, como se fossem linhas de metrô.

-Ei, gnomo, onde fica a bilheteria? -Perguntou Flora.

O gnomo apontou para frente, numa toca de madeira e barro na parede. Eles caminharam até lá.

-Eu não imaginava que havia lugares assim no mundo. -Disse Sirius.

Ele e Mikka ficaram estupefatos com aquela visão na frente deles. Se amedrontavam com os insetos colossais acima de suas cabeças.

-Qual é o plano? -Perguntou Spike, igualmente surpreso.

-Vamos para Echovalle e estes insetos nos levarão até lá.

Sirius arregalou os olhos.

-O quê?! Nós vamos nisso aí?!

-Tem alguma ideia melhor? -Perguntou Gerlon, tirando um pequeno saco com moedas de ouro e entregando a Flora. -Eu só quero dar o fora daqui o quanto antes.

Flora entregou o saco cheio de moedas de ouro, o que deixou o duende do guichê de olhos brilhando.

-Com isso, vocês podem voar no nosso inseto VIP e ainda sobrará para umas mil viagens! -disse.

-Só queremos uma de ida, pode ficar com o resto -disse Flora lhe abrindo um sorriso doce.

Em alguns minutos, desceu um grande inseto que lembrava uma libélula. Em seu dorso, havia oito assentos bem confortáveis. Eles se acomodaram e a grande libélula começou a bater as poderosas asas, ela alçou vôo para o grande buraco que dava acesso para o lado de fora.

Libélula-dragão

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