Fique comigo...
Há sentido nas guerras?
Que sentido há na paz se não houvessem guerras?
Num flash... sorrisos para o retrato do pelotão, noutro flash... passos na neve em solo alemão.
Início de dezembro de 1944
Ficamos entrincheirados próximos a um Bunker nazista por dias, até que fomos atacados e convertidos em prisioneiros em Bergen-Belsen. Quando lá chegamos já haviam prisioneiros judeus "trajando" corpos esquálidos que nos assustavam. Sentíamos cheiro de doenças nos dormitórios e mortes saíam em forma de fumaça de grandes chaminés...
Num novo flash, minha memória busca o rosto de Franklin e nosso primeiro olhar cúmplice. Noutro flash seu sorriso largo que me fazia corar...
Sei que nossa amizade e amor nos mantinham vivos, muito mais que o parco alimento que recebíamos no campo de trabalho forçado.
O belo e musculoso Franklin que me deixava com as faces quentes quando se aproximava, poucos meses após aqui chegarmos, tornara-se um tipo magro e ossudo, com as faces cobertas pela fuligem das explosões nos túneis donde extraímos minérios para que fossem utilizados nas indústrias de armamentos.
No alojamento do campo de concentração, dormíamos com centenas de colegas amontoados, mas sempre dávamos um jeito de ficarmos próximos. Então nos entregávamos à paixão pelo simples ato de tocar nossos dedos e manter olhares discretos por minutos até que a exaustão nos derrubasse.
Cercados de mortes, doenças e choros, fizemos um pacto de nos concentrarmos apenas em nós e assim criamos nosso universo, eu e Franklin. Algumas vezes uma lágrima fazia um risco branco na sua cara empretecida pela poeira escura, outras vezes aproveitávamos o aperto dado pelas condições e nos aconchegávamos. Todo o prazer que podíamos nos proporcionar eram toques carinhosos de mãos entrelaçadas.
Um dia ousei mais em meio ao terror no qual vivíamos e lhe afaguei as costas sobre o uniforme de listras azuis. Pude sentir cada osso de suas costelas e isso fez-me sentir mais força, pois eu precisava protegê-lo. Eu seria forte por nós dois e fui.
Perdíamos peso, energia, saúde, dignidade, esperança e sanidade a cada minuto passado e a cada companheiro que era jogado sem respeito nas pilhas do "lixo" humano. Pensei assim ao ver aquelas pessoas reduzidas à "carcaças", pois a humanidade já havia abandonado seus corpos há muito tempo.
— Sam... O que será que existe no céu?
— Idiota, que pergunta! Não queira ir pra lá. — Nossas vozes saíam como sussurros pela falta de força... — Não acredito que vamos morrer aqui. E eu te proíbo de pensar em outra coisa que não seja em mim. Não há nada no céu e nem no inferno. Aqui existe eu e você. Lembra?
Nossa crença em Deus era pra nos manter fortes e não para nos preparar para morrer como nossos irmãos de armas. Eu não aceitava a morte e Franklin por ser mais religioso, aceitava menos ainda.
Deus não criou o homem para morrer.
Deus não criou o homem para ser solitário, está no livro de Gênesis e eu mesmo li.
Deus... esse nome enfraqueceu em meus lábios muitas vezes, mas estava forte no meu coração, porque Franklin vivia. A cada surto, mais almas evaporavam daqueles corpos e de forma miserável, teimávamos em continuar aquela sub-vida.
Eu não praguejaria desde que pudéssemos enroscar nossos dedos, cuidar de nossos ferimentos e nos incitarmos a ser fortes por mais um dia.
Não havia necessidade de pensamentos luxuriosos, pois tínhamos um sentimento que beirava o divino entre nós... Mas eu tinha reações instintivas ao mirar o azul quase apagado do olhar de Franklin, que voltava a acender quando me sorria timidamente de canto de boca.
— Sam... eu te amo...
Suas palavras me proporcionaram um choro que esteve guardado há meses, meses em que eu mentia pra nós dois que estávamos vivos, quando aquilo era só uma ilusão. Naquela noite eu acreditei que estava vivo outra vez. Mesmo estando fedidos, doentes e sujos nos apertamos no abraço mais forte que foi possível e ele me acalentou até que eu parasse de soluçar.
Minha força para levantar vinha de Franklin...
Sobrevivi à Marcha da Morte porque Franklin ali esteve caminhando comigo...
Numa madrugada durante aquela marcha, nos enfiaram dentro de um celeiro e ali compactuamos com nossos companheiros que não levantaríamos quando os soldados nos chamassem na manhã seguinte e foi a pior noite que tive na vida. Franklin além da desnutrição, contraiu tifo e a tosse o fez cuspir sangue a noite inteira.
Fomos acordados pelo som de artilharia pesada, metralhadoras e aquilo nos encheu de uma força sobre humana, aquele resquício que Deus não nos tira quando escolhemos viver.
Escutei a gritaria dos soldados alemães e levantei-me para espiar por entre as frestas, vendo que fugiam a medida em que os sons dos disparos ficavam mais altos... Amanheceu e eu com desespero e alegria que quase me sufocava, acordei meus irmãos de armas e de sofrimento, ajudei meu Franklin a levantar e lhe servi de apoio.
Chorávamos como crianças que saem do útero ao ver a estrela americana nos tanques, porque havíamos nascido outra vez.
Fomos socorridos, recolhidos, alimentados, misturamos nossas lágrimas com as desses soldados que nos trouxeram a libertação, sujamos suas roupas limpas com nossos abraços e nos vimos como homens outra vez. Havia tanta alegria e esperança em mim, Samuel. Mas nos olhos de Franklin o brilho se apagava.
— Sam, estou indo pro céu...Leia isso quando estiver mais forte, Sam...
— Fica comigo, Franklin...
Dentro daquele avião que nos tirava da Alemanha para a França, eu ainda tive força pra ajoelhar próximo de onde ele estava e tomar sua mão esquelética, fiz um último carinho em sua face e sequei sua última lágrima, para fechar seus olhos pra sempre.
Eu tinha apenas 21 anos naquela época e desde então, cinquenta se passaram.
Nunca mais fui feliz e por um tempo deixei de ser cristão... Pois tudo que pedi a Deus foi pela vida do homem que amei e todo o tempo como prisioneiro pedi que me levasse antes dele. Um dia eu quis me reconciliar com o Pai, porque Franklin morreu crendo que havia céu e pode ser que lá era o lugar onde ficaríamos bem e juntos.
Eu não tinha forças pra ler seu bilhete e esperei por muitos anos, até que próximo a minha própria morte, resolvi ler aquelas linhas escritas por uma caligrafia trêmula e quase ilegível.
"Sam seja forte e viva por mim, pois tenho pedido a Deus que lhe poupe e que me leve antes, eu não suportaria vê-lo partir. Apenas, obrigado por cuidar de mim. Sempre acreditei que seriamos livres um dia. Te amo, seu sempre... Franklin."
Se há céu ou o que nele existe, eu não saberia estando vivo. Sei que antes de fechar meu olhos para sempre, senti que estava indo encontrar-me com meu Franklin.
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Esse conto foi baseado em documentário sobre os prisioneiros americanos no Campo de Concentração chamado Bergen-Belsen na Alemanha.
Acho que passou da hora de muitos torcerem o nariz pros LGBT e nos abraçarem ou talvez nos deixarem em paz. Passou da hora de entenderem que não vivemos somente de luxúria e sim de afinidade.
Gente ainda é o Jota, o bobo. Eu realmente quero mostra que nem sempre há glamour quando "hasteamos" nossa bandeira.
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