3.

— Você está vestida — Henry balbucia, parecendo surpreso ao entrar no aposento e, novamente, preciso respirar fundo para impedir a mim mesma de cometer algum tipo de violência contra o completo idiota. Ao invés disso, apenas reviro os olhos e me ergo para encará-lo.

— Que coincidência — digo friamente enquanto aliso a saia do meu vestido. — Você também está.

O príncipe não resiste um pequeno sorriso, o que vai totalmente contra seu decoro, e fala baixinho:

— Bem... sim. Eu estava numa reunião com as majestades de Württemberg e Schleswig-Holstein. Estar vestido fazia parte do vestuário requerido.

Essa é sua tentativa de um gracejo. Normalmente eu afetaria humor. Riria mesmo sob o sofrimento de minha prisão, riria em qualquer ocasião que não fosse esta noite. Há coisas demais em jogo.

Minha vida, na verdade.

Eu o encaro longamente, esforçando-me por situar-me mentalmente no meu predicamento. Quando eu era criança, eu costumava ser capaz de fugir de qualquer situação em pensamentos. Essa habilidade particular deixava minha mãe louca porque fazia com que eu me deliciasse sempre que me trancava no quarto de vassouras a fim de me disciplinar.

O que pensava naqueles instantes?

Viajava longe, criando aventuras e passeios por lugares inalcançáveis. Imaginava castelos exatamente como esse, vestidos e jóias como os que carrego comigo, um príncipe perfeitamente ao estilo do que está diante de mim. Era o meu céu.

Por que, agora que estou aqui, minha mente me leva àquele simples quartinho apertado, grãos de poeira e teias brilhando à luz do sol, e doces canções balbuciadas por meus lábios de menina? Não, aquele era o meu céu. Eu era tão mais livre por trás daquela porta de madeira cheia de farpas e o futuro, o plano das possibilidades, aberto diante de mim. Eu poderia ser quem eu queria ser, no momento que o desejasse.

Diante de mim agora há um homem. Ele acaricia distraidamente uma abotoadura dourada de seu uniforme com um olhar inquisitivo no rosto, que sei por certo irá se transformar em apenas alguns instantes.

Eu preciso contar a verdade.

— Devo chamar sua criada para ajudá-la a se despir? — ele pergunta e, antes de ouvir resposta, já caminha velozmente em direção ao pequeno sino em minha cabeceira.

— Não! Henry... — clamo, dando uma passada apressada para impedi-lo e, neste instante, sinto o impacto do passo não-calculado do cristal contra o assoalho. Ouço o barulho de vidro se espatifando antes de sentir a dor lancinante de cacos penetrando a pele da planta dos meus pés.

Não encontro forças nem ao menos para gritar.

Henry gira nos calcanhares e paralisa. Quando ergo lentamente as diferentes camadas da saia do meu vestido, até a última barreira de tule, a mera visão me causa vertigens. E é assim que acontece minha revelação: na forma de um pé arroxeado, espremido e deformado contra os contornos transparentes e brilhantes do calçado, e o outro, coberto de sangue e farpas diminutas sobre os restos reluzentes de cristal.

Olho para meu marido com olhos cobertos de lágrima e de vergonha.

Não tinha planejado que fosse assim.

Eu calculara os riscos, sabia as possíveis consequências da confissão.

Mas nunca imaginei como me sentiria com a exposição da minha inadequação. Insuficiente. Deficiente. Como com o olhar omisso de papá que demonstrava que eu nunca seria sua legítima. A zombaria de Ella e dos empregados que provavam que eu nunca tomaria seu lugar. O brilho nos olhos de Henry, naquela noite no baile, reservado para alguém que eu nunca poderia ser. Os sussurros dos nobres da corte que me testificam dia após dia que definitivamente sou a pessoa errada. Todos confirmados, legitimados e provados nesse instante de humilhação e de agonia.

— Os sapatos reais! — Henry se aproxima com lábios pálidos, enquanto se ajoelha e ergue um pedaço do bico de cristal. Ajusto, desconfortável, o peso do meu corpo e as pontadas nos cortes se intensificam.

— Os sapatos? — Encaro-o incrédula e não consigo conter os soluços que partem de mim. Porque, de alguma forma, o foco de sua preocupação me corta mais do que os cacos. — É tudo o que te importa?

— O que? — Henry se ergue e me encara à altura de meus olhos. É aí que percebo que a expressão de consternação em seu rosto não se encaixa com as de retratos da realeza. O príncipe, por alguns segundos de sua vida, está realmente exteriorizando o que sente. Achei que não soubesse fazer isso.

Com uma reverência, ele me convidou, sem palavras, a dançar.

Foi sua primeira reação ao ver-me após o grande anúncio de que a dona dos sapatinhos havia sido finalmente encontrada.

Não trocamos palavra alguma.

Deslizávamos pelo salão, ao toque de música, com graça e precisão, como se fora ensaiado, como se nossos passos fossem planejados um para o outro. Milagrosamente, meus pés ainda não doíam. Creio que estava entretida demais em vislumbrar aquele rosto de fábulas, estar nos braços do nosso célebre príncipe.

Encarei seus olhos e não consegui interpretá-los. Não diziam nada. Será que não viam que eu não era Ella? Será que algum dia seriam capazes de me acolher com admiração?

Será que ele tinha escolha?

Eu sei que a morte é o risco mais alto que corro com minha confissão. Mas, de alguma forma, a indiferença de Henry quanto a mim me parece mais dolorosa do que esse castigo final.

— Você só está preocupado com o que dirá o mundo quando souber o que fiz — afirmo, trêmula, com a esperança tola de ser contradita.

— O que? — Henry repete, carregado de emoção, o nariz e as sobrancelhas contraídos com revolta, enquanto dá alguns passos para trás. — Como pode dizer isso, Anastasia? Estou preocupado com a forma que eles a feriram.

Com mais alguns passos, ele alcança minha cabeceira e balança o pequeno sino para que ajuda venha, antes de caminhar até mim e passar, de forma atrapalhada e com cuidado para não pisar nos cacos, um braço ao redor da minha cintura e outro por baixo das minhas axilas. Num impulso, ele me tem erguida, um vendaval de tule e seda rosa no ar, acalentada em seu peito, um pé pingando gotas rúbeas, antes mesmo que eu tenha tempo para administrar tudo que está acontecendo. Quero desfrutar do gesto, mas não posso porque Henry ainda não entendeu.

Ele não percebe que os sapatos já me feriam muito antes de um deles rachar.

Ele me deposita em minha cama de forma que o pé machucado permaneça pendido para fora. Ajoelhando-se, arrasta a tina metálica à base da cama para que receba o sangue corrente e sopra de leve para expulsar a fina camada de pó de cristal sob o meu pé. Seu sopro simultaneamente arde e me faz pequenas cócegas. Maria chega, com a cabeça coberta por uma touca branca e um vestido negro sem firulas. Ao ver o que se sucede, corre até a grande jarra dourada na mesa de console e a traz consigo, envolta em seus braços, com passos lentos por causa do peso. Henry imediatamente se coloca de pé, rígido, aparentemente se relembrando de quem é. E eu olho para os meus pés moídos, cansados, cobertos de manchas escuras. Já foram belos, brancos e delicados. Mas nunca bons o suficiente para esses sapatos. Nunca pertenceram a esse lugar.

Maria derrama água sobre o pé ensanguentado e passa vários minutos envolvendo-o numa faixa de linho. Henry permanece de pé, inerte, durante todo o tempo.

Vou enviar o jovem Lukas para chamar o doutor, vossa alteza real — diz, por fim, com uma reverência, levando consigo a tina metálica repleta de água e sangue. — Deve estar aqui em algumas horas.

— Não, não precisa — digo e Henry se volta para mim, exasperado. — Eu estou bem assim — concluo. Ele aquiesce com um balançar do rosto e Maria traz uma nova bacia para substituir a que levou e se vai, deixando-nos novamente a sós. Não quero correr o risco de ter nossa conversa interrompida. O que é um pé machucado diante de pagar com a minha vida? Assim que Maria se vai e a porta se fecha, Henry deposita um joelho na cama e, inclinando-se sobre meu corpo, beija com força meus lábios. Num reflexo, eu o empurro, chocada com a impetuosidade do ato.

— O que acha que está fazendo? — Eu o empurro.

— Esperei todo o dia por nossa audiência— responde, surpreso, seus olhos sondando os meus por respostas. Ele se adianta para beijar-me novamente e preciso usar toda minha força para afastá-lo pelos ombros.

— Pare, Henry, pare. Eu não quero.

Imediatamente, ele gira e senta-se na cama, suspirando abatido.

— De novo? — diz, desabotoando o colarinho apertado contra seu pescoço e balançando a cabeça. — Saiba que parei de visitá-la justamente por causa disso.

— O que? — pergunto, confusa. — Do que está falando?

— Suas rejeições. Uma vez está cansada, na outra indisposta. Nada é capaz de alegrá-la. Uma corte inteira de esforços não lhe basta. — Ele ergue as mãos para o alto e me encara com olhos que me interrogam. — Quando me deram a escolha de todas as jovens do reino, nunca me ocorreu que a jovem escolhida não escolheria a mim. Que minha esposa...— ele diz com esforço, a voz arranhada e nariz franzido numa expressão de repugnância — ...minha esposa se enojaria com a minha presença.

— Você não entendeu. Você nunca entende nada. — Ainda deitada, sacudo a cabeça em negação. — O problema sou eu.

Qual é seu problema? — Ele se ergue e passa as mãos pelo cabelo perfeitamente penteado. Henry provavelmente me odiaria se eu confessasse que sua falta de controle me atrai. Mas eu não devia estar pensando nisso. Ainda tenho a pior das confissões para fazer.

— Você casou com a mulher errada. É só isso! — grito e, em seguida, sento-me e o encaro. — Sou eu, eu sou o problema. — Bato no meu peito e ergo meu queixo em desafio.

— Você é louca — diz, caminhando de um lado para o outro.

— Pior do que isso. — Reviro os olhos e enxugo uma lágrima que não consigo conter. — Eu não sou sua princesa. Esses não são meus sapatos.

Henry olha para os meus pés e depois para meu rosto, com olhos arregalados à medida que a realidade dos fatos lentamente tomam forma em sua mente.

— Eles sequer cabem em mim. — Rio por um momento, por apenas um segundo, sem um pingo de humor, enquanto espalmo mais uma lágrima teimosa. — Mas enganei a todos direitinho, não enganei?

— É esse o seu problema? Os sapatos são apertados demais para você? — sussurra, novamente se ajoelhando à beira da cama.

— Não, Henry, você não entende? — Suspiro e olho para baixo. Não consigo encará-lo. — Eu não sou a pessoa por quem você realmente se apaixonou.

O silêncio me destrói e uma lágrima cai no meu colo. Com um susto, me dou conta de sua palma quente na minha bochecha, seu hálito quente contra a minha têmpora.

— É isso que a tortura durante todas essas noites? — ele sussurra nos meus cabelos. — Que você não é a moça com quem dancei enfeitiçado numa noite?

— Henry, você não entende... — Olho para ele com intensidade e balanço minhas mãos no ar enquanto falo. Talvez o inteligente fosse silenciar-me e aceitar o que diz, mas tenho medo de numa segunda reflexão compreenda e destroce a esperança que começa a brotar no meu coração. — Não sou a dona desse maldito sapatinho de cristal! Eu sou a vilã da história!

— Anastasia — ele pronuncia meu nome tão sério que sou forçada a parar de falar. — Creio que está confusa. Mulheres se interessam por sapatos. — Ele se arrasta na cama e se ajoelha mais uma vez diante de mim. Ele segura meu pé que não está enfaixado e deposita nele um beijo. — Beijarei seus pés descalços até que entenda que não me importo.

— Você não enten—começo, mas ele interrompe meu protesto com mais um beijo em meus lábios, intenso, quente, perdido, longo, descontrolado. E eu o beijo de volta esquecendo por agora das feridas, das responsabilidades e das consequências, aninho-me em seu peito, conforme um braço me puxa para perto de si e o outro desabotoa o próprio colete. Sinto meus lábios dormentes, minha visão envolta em uma névoa, nesse momento mágico e surreal.

Henry ama a mim, a mim, de pés descalços e alma nua.

É a primeira vez que sei que posso e quero ser completamente sua.

— Maria! — Henry interrompe a aura mágica com um grito. — Droga! Maria! — Ele se levanta e anda até a porta, impaciente.

Ofegante e assustada, questiono:

— O que foi?

Ele gesticula com ambas as mãos, apontando para o meu dorso.

— Eu não sei abrir seu vestido e espartilho. Todos esses malditos laços e nós. Droga, Anastasia, por isso que existe um protocolo! — Ele bate nas costas da própria mão, o estalo do impacto acompanhando suas sílabas. — Por isso que existe ordem. Você se retira aos aposentos, sua criada a ajuda a se despir. É assim que funciona. Por que você teima em quebrar as regras? Regras existem por um motivo! — ele dispara, sem olhar para mim, com a postura rígida militar de sempre, a mandíbula cerrada e firme como uma pedra.

Levanto devagar, alisando as camadas de tecido do vestido, equilibrando com cuidado o peso do meu corpo no pé esquerdo e tocando só a ponta do pé enfaixado no solo. Caminho mancando até a janela e observo o grande jardim lá fora.

— Bem... boa noite, vossa alteza real— respondo, despedindo-o na mesma frieza de uma cerimônia real e cruzo os braços.

Henry me encara incrédulo.

— O problema não eram os sapatos, então? — pergunta, conforme volta a abotoar seu colete e penteia o cabelo com os dedos, preparando-se para partir. — Qual é o motivo da indisposição da princesa dessa vez? — diz com um toque de sarcasmo que me transmite que princesa não tem um sentido positivo nessa frase. Diante do meu silêncio, Henry engole em seco e completa:

— Não se preocupe com os sapatos. Pela manhã mandarei que produzam outros. Desta vez, do tamanho certo.

Quando ele parte e me deixa só, ofegante e trêmula, pânico inundando minhas veias, cambaleio até a tina metálica aos pés da cama e vomito, conforme o futuro de cristal se desenrola diante de meus olhos.

Não, Henry, esses calçados sempre quebrarão nos meus pés. Não tenho a leveza de uma princesa, nem a compostura de uma dama e, muito menos, vocação para prisioneira. Há algo em mim que clama por muito mais do que brilho e perfeição. Eu quero o épico, a batalha, a paixão. Quero sorrisos sinceros, erros bem recebidos e a aventura do não saber.

E, por isso, é com pés feridos e descalços que ergo a aba do meu vestido e me preparo... para correr.


Não vou poder ficar online nos próximos dias, então aqui vai mais um capítulo. :))

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