Episódio 10



No episódio anterior:

 Emocionante encontro de Ludmárcia e Ivanir;

 Branca anuncia a Dudinha: Estou grávida e você pode ser o pai.

 Ludmárcia descobre que Ivanir está na miséria.



– Bem, meus amigos, principais personagens dos acontecimentos folhetinescos que fizeram Ovelhópolis tremer nos últimos meses... – Dona Val começou assim sua fala, após reunir todos os envolvidos e principais interessados em desvendar os crimes da mão misteriosa no salão oval e suntuoso do Grand Hotel, o cinco estrelas de Ovelhópolis. – Era para esse evento ter ocorrido na mansão do defunto... digo, do doutor, mas o sobrinho dele foi ser besta, foi se submeter a uma chantagem idiota e entregar a mansão e o HGO de mão beijada para o chantagista mais furreca que já se teve notícia...

Ivanir, trêmulo de indignação por aquele "vexa" sem necessidade, quis rebater as insinuações da "delegada", mas Ludmárcia, ainda mais apaixonada depois de saber do supremo sacrifício que seu amado fizera por ela, apertou-lhe a mão com carinho e fitou-o com olhos tão enternecidos e apaziguadores, que foi água na fervura, o galã mais que depressa baixou a crista e resolveu relevar.

– Muito bem. – continuava Dona Val o pronunciamento de sua tribuna de honra. – Nós, depois de muitos interrogatórios e investigações, já chegamos a uma conclusão sobre os crimes que intrigaram e tiraram o sono das pessoas de bem dessa cidade.

Um sonoro, prolongado e sincronizado "Oh" partiu dos ouvintes. Dona Val sentiu o peito inflar de vaidade. Finalmente ela realizava o seu mais caro sonho: ser Miss Marple ao menos uma vez na vida.

– Como já é de domínio público, afinal de contas aqui todo mundo dá definição da vida de todo mundo, o doutor foi morto com dois tipos de veneno: um, o velho cianureto, o outro, uma beberagem feita de ervas raras.

Outro "oh" prolongado partiu da assistência.

– Pois é. E isso de haver dois tipos de veneno obviamente quer dizer algo. Alguém arrisca um palpite? – Dona Val dava mostras de que, além de ter notável perspicácia detetivesca, ainda tinha didática suficiente para animar um programa de auditório.

– Que o assassino estava muito puto com o doutor e queria matar ele duas vezes. – Valadão deixou escapar o belo palpite.

Dona Val revirou os olhos, respirou fundo e cortou logo:

– Valadinho, meu filho, fique quietinho no seu lugar, viu? Boquinha de siri. – E só para o Delegado, lançou um olhar nada amistoso, enquanto fazia a mímica de fechar a boca com um zíper imaginário. – Eu mereço. Fui dar anistia. Enfim, voltando: dois venenos quer dizer dois assassinos. É óbvio.

Os queixos dos ouvintes bateram nos respectivos umbigos e o "oh" saiu das bocas abertas, moles e sincronizadas mais sonoro que os anteriores.

– Poxa, mas esse doutor não era muito querido, não, né? – Ralf arriscou o comentário. – Duas pessoas tiveram a mesma ideia de matar o pobre.

– Anatalino, – fez questão de chamá-lo pelo nome de batismo na frente de todos para atormentar o pobre diabo – você disse uma verdade, o doutor era de fato uma máquina de fazer inimigos. Se tivesse parado sua fala por aí, seria uma colocação estúpida e inútil, mas um fato incontestável. Mas não, tinha que continuar e falar besteira. E só não te ponho para fora daqui por essa interrupção porque você é uma testemunha importante.

Ralf encheu os olhos de lágrimas e ficou mais murcho que o Benjamim Button pré-adolescente.

– Bem, voltando de novo. – Dona Val já apresentava os primeiros sinais da impaciência bem própria de sua família. – Duas pessoas tiveram a ideia de matar, mas não a mesma vítima.

Outro "oh" sincronizado e ainda mais prolongado que os anteriores encheu o salão.

– Tá, tá, tá! – Dona Val interrompeu a surpresa coletiva. – Deixem logo eu terminar de vender meu peixe, que eu ainda tenho um rol de coisa para revelar, depois vocês podem soltar esses "ohs" bestas até deslocarem os queixos.

Houve quem, magoado, fizesse beicinho trêmulo.

– Já nem sei onde estava, meu Deus. – Dona Val pensava irritada que Miss Marple nunca tivera que enfrentar plateia tão tapada na vida.

– A senhora dizia que eram dois assassinos e dois mortos. Falta dizer agora onde enfiaram o outro corpo. – Cabo 70 tentou ajudar.

– O outro corpo está enfiado no teu... olha, vou até me calar. – Respirou fundo. – Olha, menino, agradeça você por ser concursado. – Foi vaga, mas lançou um olhar tão feroz que fez o pobre do Cabo 70 sentir um calafrio. – Foram dois assassinos querendo matar duas pessoas, mas um dos incompetentes não soube fazer o serviço direito e errou o alvo. E a senhora Ludimárcia dê graças a Deus a burrice do meliante, senão, agora, já estava há muito tempo na terra dos pés juntos, comendo grama pela raiz.

– Só uma ressalva, Dona Val, o certo é Lud... márcia, o "d" é mu... O QUÊ? Eu, morta?

– Sim, senhora, você era um dos alvos de um dos assassinos.

A necessidade de soltar um "oh", ainda que curto e sem forças, foi mais forte e falou mais alto no âmago do povo.

– Espera aí, Dona Val, esse negócio não pode estar certo. – Flori se pronunciou. – Quem é que ia querer matar essa pobre, meu Pai?

Essa coitada parece uma alma peidona, não faz mal nem a uma mosca, não ofende nem o ar que respira.

– Dinheiro, Dona Flori, dinheiro. Sua amiga é uma abestada santarrona? É. Não tem inimigo, fora a irmã invejosa? Não. Mas é rica, riquíssima. E, assim que se casou com o velho gringo e dele ficou viúva, virou alvo da máfia finlandesa, cujo um dos chefões é o último bastardo do milionário Jostein Não-sei-quê.

– Meu Deus, não pode ser. – Ludmárcia levou a mão ao coração, entre apavorada e perplexa.

Ivanir se retesou, crista levantada e esporões afiados.

– Pois me diga, Dona Val, o nome desse calhorda que vou MATAAAR!

– Faça-se de besta que lhe enquadro, ora essa! – Dona Val cortou sem dó nem piedade a valentia do enfermeiro. – Mesmo porque um fratricídio seria um crime abominável.

Como ninguém fez nenhum comentário, Dona Val logo deduziu: E eu ainda me iludo que alguma besta dos presentes saberia o que é um fratricídio, ou, se soubesse, ligaria o nome a pessoa.

– Mas esse assassino foi muito fácil de descobrir. Bastou uma ligação ao FBI – pronunciou "efebiai" demonstrando ser fluente no inglês, ou pelo menos que preferia ver os filmes legendados –, outra para a CIA, e outra para a Scotland Yard. – Pronunciando esse último, enrolou tanto a língua que por pouco não a engole, como pensou um dos presentes, mente e língua ferinas. – Suspeita que foi confirmada quando analisamos os restos da sopa de ovo que foi oferecida para a viuvinha durante seu cativeiro.

– O quê? Mas aquela sopa de ovo, quem me ofereceu foi... Alcione!

A um gesto discreto de Dona Val, o Cab'Um-Atrás-do-Outro, o qual fora incumbido pela própria da trilha sonora do evento, girou o volume e uma música de revelação, forte e surpreendente, troou no recinto.

– Ah, canalha! – Ivanir precisou ser segurado pelo Cabo Dois-Patim, pelo Cab'Idade-de-Cristo e pelos gritos desesperados de Ludmárcia.

– Ordem! Ordem no recinto. – gritava Dona Val.

Até que Valadão, na sua doçura e tato, puxou o três-oitão e deu dois disparos. Não teve um vivente que depois disso não ficasse sentadinho e comportado no seu respectivo lugar.

– Muito obrigada, meu filho. É por essas e outras que isso é o orgulho da mamãe.

– Que isso, maminha! – Valadão corou, todo cheio de dedos.

– Agora só uma coisinha, sua mula: sabe quanto foi o aluguel dessa porra de hotel? Sabe? Saiba que o prejuízo desses tiros vai sair da sua mesada. – Falou a velha, para o filho, por entre os dentes. Valadão murchou mais que bilau de velho no frio. Dona Val era mesmo do tipo que "assopra e morde".

– Muito bem, voltando...

– Mas, Dona Val – interrompeu Ludmárcia –, a senhora tem certeza disso? Alcione parecia ser tão bom e me querer tanto bem...

Ivanir até tomou um susto com essa fala de sua amada, olhou-a entre indignado, surpreso e enciumado.

– Fingimento, minha filha, puro fingimento. Você é muito boba, muito boazinha, não consegue perceber a maldade à sua volta. Esse traste – apontou para um Alcione trêmulo e assustado, doido para escapar dos meganhas que o ladeavam – não vale o que um gato pega e enterra. – E passou a enumerar os podres do criminoso. – Primeiro, perdeu a parte na herança dos pais todinha com jogo, mulher e farra. Segundo, se endividou tanto com a máfia dos cassinos clandestinos da Europa que acabou tendo que trabalhar para eles, fazendo diversos servicinhos sujos em vários países, desde espionagem industrial até queima de arquivo. Não contente com a merda em que estava envolvido, começou um caso com a mulher de um mafioso siciliano, que descobriu e o jurou de morte. Lascado, mais quebrado que arroz de terceira, teve que se disfarçar e sobreviver como gari na França. Até que a máfia finlandesa o contratou para dar cabo da viuvinha, prometendo livrá-lo das ameaças sicilianas e lhe encher os bolsos de euros.  Chegando aqui, na certa pensou: "e se eu conquistasse essa palhaça e ficasse com toda a grana?" Jogou todo o charme de conquistador barato, mas nada, a viuvinha estava firme e forte no propósito de fazer um velhinho feliz, não deu nem trela a esse Don Juan de Vassoura. Quando viu que desse mato não saía coelho, resolveu acabar com vida da pobre, tentou a primeira vez na festa, envenenando as bordas da taça da noiva. Só não contava que ela, muito boazinha e chata, não ingerisse bebida alcoólica e no brinde tradicional de noivos, entrelaçasse os braços com o noivo e acabasse dando para o pobre o vinho da sua taça. Mais tarde, depois desse fracasso vergonhoso, com a ajuda da irmã invejosa, sequestrou a infeliz para levar a cabo seu plano diabólico. Mais uma vez, a viuvinha se livrou da morte arreando o pé no prato de sopa de ovo temperada com cianureto.

Os ouvintes estavam com a cara no chão, pasmos com tantas e terríveis revelações. Mal sabiam que muitas bombas mais estavam por vir.

– Bem, esse imbecil foi fácil desmascarar. – E para os meganhas. – Meninos, já podem levar o mequetrefe para o camburão, que esse daí, a partir de agora, vai ver o sol nascer quadrado por muito tempo.

– Eu sou inocente! – gritou Alcione. – É mentira dessa bruaca! Ludmárcia, minha gostosa, não acredita nela, não! Eu sou muito mais gostoso que o Ivanir. Já fui até modelo da Calvin Klein. – E lutava em vão, enquanto os brutamontes o arrastavam para fora. – Ludmárcia, não faz assim, não vira o rosto, olha pra mim. Ludmárcia, sua porra, olha pra mim, caralho. Ah, sua égua! Pois, vá chupar um canavial de pica, sua quenga virgem! Sou assassino sim, ora merda, ninguém tem nada a ver com isso. Pelo menos sou um homem viajado! Coisa que vocês, seu bando de pobre, nunca vão SER... Eu vou me vingar, ouviu, Ivanir? Eu voltareeei...

Quando finalmente levaram o infeliz, que se debatia e se babava todo de ódio, Dona Val ainda tripudiou:

– Isso, leva essa carniça daqui. Vai-t'embora, marmota! Isso é pior que espírito obsessor. Eu t'esconjuro! – Pigarreou e continuou. – Muito bem, como eu ia dizendo, pegar esse traste foi fácil. Difícil foi juntar as peças do outro quebra-cabeça, que remonta a um crime ocorrido no passado e que até hoje havia sido dado como acidente: a morte dos pais de Ivanir. – E fez um sinal para o Cab'Um-Atrás-do-Outro entrar com a trilha sonora de suspense, que encheu a sala e pregou um susto nos mais desavisados.

– Não pode ser. – Ivanir não conseguia acreditar no que ouvia. – Meus pais morreram num desastre de automóvel. Foi acidente!

– Morreram sim de desastre de automóvel, mas não foi um acidente. Está aqui o pastor Eleazar, na época um humilde pastor de ovelhas de verdade, que não me deixa mentir.

O pastor chega tomou um susto.

– Eu?! – Desconcertado. – Eu não vi nada, de modos que não posso afirmar nada. – Tentou esquivar-se.

– Viu? – exclamou triunfante, mas logo deu-se conta de que a testemunha-bomba amarelara. – Epa! Como não pode afirmar nada?

Deixa de ser frouxo, criatura. Conta logo aquele negócio das ovelhas, marmota.

O pastor começou a suar e agarrou-se ainda com mais firmeza à sua surrada bíblia.

– Pastor, é melhor o senhor vomitar logo tudo, senão vai acabar sobrando para o senhor. Afinal de contas, eu sei muito bem que o senhor entrou naquela festa disfarçado de garçom com segundas intenções. – ameaçou Dona Val, toda insinuante e reticente.

O pobre do pastor quase se obra, o suor frio gotejando na testa: 

– Epa, alto lá! Eu só fui naquela festa para tomar satisfação com o Doutor a respeito do sobrinho ter iludido e seduzido minha filha.

– Eu, seduzido? – Ivanir pulou longe. – Ora, mas acho-te uma graça! Epa, esper'aí. Então quer dizer que o senhor foi fazer essa calúnia para o meu tio? Atormentar o pobre no dia do casamento dele?

– Claro, eu sou pai! – O pastor engoliu em seco, já arrependido.

– Ah, então foi por isso que... – E Ivanir se lembrou da conversa que tivera com o tio, pouco antes deste passar dessa para uma melhor.


– Titio, não é nada disso que o senhor está pensando. Eu posso explicar... – Espremidos no lavabo, Ivanir e o doutor, ambos embaçados e meio borrados (afinal de contas as imagens de um flashback nunca são muito nítidas), o primeiro já foi logo praticamente assumindo sua culpa no cartório com aqueles clichês de quem está mais sujo que banheiro químico no final de um show gratuito. – Aquela bruxa está mentindo. É tudo mentira dela, titio, o senhor precisa acreditar em mim.

– Eu acredito. – falou mansamente o doutor.

– Mas eu sou inocente, eu juro. Além do mais... Ops! O que foi que o senhor disse?

– Que acredito em voxê, Ivanir, nunca duvidei de voxê.

– Mas já! Pensei que o senhor... – Ivanir ficou confuso.

– Eu xei bem quem eshtá mexendo com exe xeu coraxão vagabundo. Xó não entendo por quê? Bem, tem goshto pra tudo... – O tio foi reticente.

– Eu não estou entendendo, titio.

– Mejmo que eu não xoubexe de xuash xafadejas, eu xaberia que você jamaij xeria capaj de me trair. Eu que fui pra voxê como um pai.

Ivanir engoliu em seco.

– Maj ao mejmo tempo, xei que voxê é um jovem muito bonito, parexido comigo quando era jovem. – O velho estava emocionado. – E não xou nenhuma crianxa, xei que apejar de Ludmárxia eshtá perdidamente apaixonada por mim, a prochimidade com um jovem tão bonito pode...

– Eu entendi, titio, o senhor quer que eu me afaste, que saia dessa casa.

– Não, dexa caja. Dexa xidade.

– Ah, bom, por um momento eu achei... O QUÊ?

– Vai xer melhor para todo mundo, meu xobrinho. Eu pago uma viagem para voxê. Europa, que tal? Eu já xou um velho e Ludmárxia é tão bonita... Voxê xabe que é minha última chanxe de xer felij... Além do mais, tem exa moxa com quem voxê xe envolveu.

– Moxa? Quer dizer, moça? Que moça?

– Eu xei, meu xobrinho, que o coraxão tem rajõesh que a própria rajão deshconhexe. – Deu uma de Branca Helena. – Maj exa moxa não é pra voxê. Eu não criei um fi... digo, um xobrinho, para terminar oj diaj ao lado de uma coija daquelash. Deuj me livre, não é bom nem penxar. Voxê um jovem tão bonito, tão promixor...

– Titio, eu não faço a menor ideia do que o senhor está falando. Mas, tudo bem. O senhor quer que eu vá embora, não é isso? Tudo bem.

– É para o xeu próprio bem, Ivanir. – O velho implorou. – Além dixo, voxê não prexija me reshponder agora, pode penxar bem e...

Não, não preciso pensar mais. Já tenho uma resposta. Eu vou. – E naquele momento Ivanir se sentiu um São Sebastião flechado.


– Pastor, minha paciência tem limite. – Dona Val ameaçou logo.

– Eu só contei que no dia do acidente – o pastor, suando bicas, resolveu abrir o bico – me contrataram para levar algumas das minhas ovelhas para a tosa na fábrica de lã do Mercado Municipal numa determinada hora do dia.

– Exatamente a hora em que o marido de sua mãe, Ivanir, passava, depois do almoço, todos os dias para a fábrica de cachimbos da família, tudo para parecer um acidente. Uma armadilha perfeita.

– O marido de minha mãe... O meu pai, a senhora quer dizer.

– Não. Eu quis dizer mesmo o marido de sua mãe. O seu pai foi quem arquitetou tudo.

– Ora, mais essa! – Ivanir, assustado, olhava de um lado para o outro como a pedir a intervenção caridosa de alguém. – Mas isso não faz o menor sentido. Meu pai armou uma armadilha e acabou morrendo nela.

– Não, ANTA, seu pai não morreu no acidente. Quem morreu no acidente foi o marido de sua mãe, e a própria, claro. E essa foi a única falha no plano perfeito de seu pai: ele jamais contara que sua amada entrasse naquele carro desesperada para salvar o casamento e não cair na boca do povo.

– Então meu pai ainda está vivo? – balbuciou Ivanir, sentindo-se num sonho surreal.

– Claro que está. Foi ele quem envenenou o Dr. Epaminondas e a "trava" Paloma, e empurrou o Emo Duda para a morte.

– Não pode ser. Meu pai, um homem tão bom... – Ivanir não conseguia entender o sentido secreto das palavras de Dona Val. – Mas, então, quem foi enterrado no lugar de meu pai? – O pobre enfermeiro estava mais perdido que minhoca no galinheiro.

Dona Val suspirou impaciente.

– Ô, cacete, mas vai ser lerdo assim longe. Ninguém, criatura. Não há nenhuma sepultura com o nome de seu pai, porque ele está VIVO! 

– Como não? Tem sim. Todo dia de finados vou deixar uma coroa de flores lá. E outra, a senhora por acaso está insinuando que minha mãe foi casada com outro homem além de meu pai, que ela cometera bigamia? Escute aqui, Dona Val, eu preciso saber, isso é uma acusação muito séria, e eu preciso saber agora a identidade do homem que está enterrado ao lado de minha mãe, tenho esse direito.

– Ora quem! O único marido dela, o Dr. Darcy Braga de Medeiros.

– Epa! Essa não! Esse é o nome de papai!

Dona Val levou a mão à testa e a massageou, enquanto enchia os pulmões de ar, para, logo depois, soltá-lo no desabafo:

– Viram? Vocês são testemunhas de que tentei falar para essa porta da maneira mais sutil e suave que ele é um bastardo e que a mãe dele não perdoava nem poste, passava o rodo geral. Depois dizem que sou grossa, estúpida, o diabo. Mas vocês viram, são testemunhas de que tentei.

Tão boquiabertos todos estavam que nem o tradicional e involuntário "oh" deram conta de proferir. Ivanir, coitado, o mais afetado pelas terríveis revelações, esse esqueceu até de respirar.

– Ô, meu povo, que isso? Fechem a boca que o cão anda solto. – Nada divertia mais Dona Val do que aquelas caras abobalhadas. – Essas revelaçõezinhas que acabei de fazer, da missa, não são nem a metade.

Ivanir, lembrando-se de soltar o ar preso nos pulmões, explodiu num choro sufocado e tossido. Prontamente e com o coração partido, Ludmárcia o consolou.

– Não pode ser! Não pode ser! – gemia o infeliz.

– Pode sim. Tanto pode, que é. – Dona Val foi mais dura que beira de sino. – Você nunca desconfiou dos desvelos paternos que seu tio lhe devotava?

– O quê? – Olhos esbugalhados e lacrimosos, Ivanir parou imediatamente de chorar, sentindo o coração quase parar de susto com a insinuação da "delegada". – Meu pai é o titio?

– Ele pensava que era, jurando que era o único amante da cunhada. Humpf! Esperança!

– CHEGA! – gritou Ivanir pulando da cadeira e quase derrubando a pobre da Ludmárcia. – CHEGAAA! Eu não sou obrigado a ficar aqui ouvindo a senhora liquidar a reputação da minha famíliaaa!

– CALA A BOCA E SENTA JÁÁÁ!!! – Dona Val gritou mais alto.

Ivanir sentiu o berro da "delegada" atingir-lhe a boca do estômago como se fosse um soco. Caiu sentado, trêmulo, humilhado e assustado. Ludmárcia, também toda se tremendo, enlaçou-o e tornou a consolá-lo.

– EU NÃO QUERO, NEM VOU ADMITIR MAIS NENHUMA INTERRUPÇÃO! – Continuou Dona Val, possessa, no mesmo tom. – E ENQUADRO QUEM ME INTERROMPEEER!

Os presentes se reduziram a estátuas tremilicantes e de olhos enormes.

– Humpf! Assim está melhor. – A "delegada" pigarreou e continuou. – Pois bem, Dona Ivanildes, mulher do Dr. Darcy, botava chifres no infeliz com o próprio cunhado, e neste, com o então vigia da mansão. Quando o marido viajou a trabalho, passando uns três meses fora, a danada achou de pegar barriga pela segunda vez. Do cunhado ela sabia que não era, porque este havia contraído sezão na época, e estava acamado e brocha. Certa da paternidade de seu caçula, ela contou a tragédia para o outro amante e este, no desespero, começou a arquitetar a morte do rival oficial. Prejudicou os freios do carro e agendou com o pastor Eleazar o negócio das ovelhas. Só não contava que outra amante do Dr. Epaminondas, uma que ele conhecera ainda estreante no Cabaré da Risoleta, fosse até o Dr. Darcy e passasse todo o serviço do caso horroroso entre Ivanildes e o próprio irmão do corno. Darcy, no fatídico dia, poucos meses depois do nascimento de Ivanir, chegou em casa bufando de ódio, deu uns catiripapos na adúltera e saiu com sangue no olho atrás do irmão traidor. Enlouquecida, se obrando de medo de que acontecesse uma tragédia entre os irmãos, e, o que seria pior, um escândalo que a levaria direto para a rua da amargura com um filho pequeno para criar, Ivanildes entrou no carro também, chorando, se humilhando e pedindo perdão. O resultado todo mundo já sabe. – Fez uma pausa para um gole d'água e para saborear as caras abobalhadas dos ouvintes. – Dr. Epaminondas, então, assumiu a guarda dos sobrinhos, o comando da mansão, dos negócios da família, incluindo a fábrica, que faliu pouco tempo depois devido a um desfalque. Desconfiando ser Ivanir seu filho, o Doutor não conseguia disfarçar sua preferência, tratava o pequeno com mimos e atenções, enquanto que o outro, naquele mesmo ano, foi desterrado para um internato na Suíça. Ah, detalhe: pouco depois da falência da fábrica, o tutor dos meninos começou a construção do HGO, interessante, não? – Foi insinuante e irônica. – Mas, justiça seja feita, nunca faltou nada para os meninos, e, quando atingiram a maioridade, Epaminondas fez questão de dividir entre os dois toda a herança do falecido irmão. Um gastou tudo com jogo, farras, orgias e mulheres. O outro, metido a playboy, muito mimado, torrou toda a herança com carros importados de luxo, roupas de grife, tudo quanto era de futilidade, fez aplicações estúpidas em empresas já no buraco, e, por fim, comprou uma tapera caindo aos pedaços e um terreno brejado que não valiam um cibazol vencido, gastando uma fábula, e ainda inventou de construir uma "mansão" nesse mesmo lugar, que não saiu do alicerce, por inadimplência desse Palocci Júnior. – Dona Val foi de um sarcasmo desnecessário.

Ivanir, vendo suas atrapalhadas financeiras expostas para quem quisesse ouvir, inchou de ódio. Ludmárcia, sentida, pensou, mas não teve coragem de se expressar: "Epa, minha casa antiga também não era assim tão ruim. Até teto tinha... Só não podia era chover forte demais..."

Lucrécia, mergulhando no passado, sorriu cínica lembrando do bom negócio que fizera ao dar o golpe no trouxa do marido com a venda supervalorizada da casa materna. Mas logo perdeu a graça quando a figura do "filho da puta" do Levitraz também lhe veio à mente, sorrindo e lhe usurpando até as calças.

– E o assassino? Ora, sabendo das suspeitas paternais de Epaminondas, ficou feliz da vida por ser pai do futuro herdeiro do homem mais rico de Ovelhópolis. E o tempo passou... Até que surgiu Ludmárcia. A princípio ele não deve ter gostado nada da união de Epaminondas com a viuvinha, mas quando soube dos bilhões dela, com certeza mudou de ideia rapidinho. Um casamento entre ela e o velho caquético só aumentaria a herança do filho, caso ela morresse antes do doutor, algo realmente improvável, a não ser que ele desse uma mãozinha. Ele só não contava que fosse ressurgir das cinzas a antiga amante de Epaminondas, falando da existência de uma suposta filha. Não é, Dona Calô?

A velha harpia amarelou e engoliu em seco.

Os presentes já estavam passados, a baba escorrendo pela boca aberta, sentiam-se todos num quadro de Salvador Dali.

– Mamãe? – Flori se abismou. – Quer dizer, então, que eu sou filha do Doutor Epaminondas?

– Claro que não, mulher! Deixa de pergunta besta! – Dona Val cortou logo. – E outra: o que foi que eu disse sobre quem me interrompesse?

Flori murchou, baixou a vista e ficou quietinha.

– Mesmo depois que fisgou o banana do Major Ozório – prosseguiu a delegada –, Calô continuou mantendo um caso com o velho Doutor. Não foi, Calormina?

– E eu sei do que tu está falando, Valdevina? Me respeite, que sou uma mulher direita.

– Direita! Só se for por não ser canhota! – Dona Val tripudiou. – E outra: Você não me desminta, não, sinhá menina. Não me desminta, se não quiser que amanhã mesmo um fiscal do Leão passe nas suas propriedades, conferindo o número de cabeças dos seus rebanhos.

Entre a cruz e a caldeirinha, a posição de mulher respeitável e a multa por sonegação, Dona Calô não teve alternativa:

– Confirmo a história. – rugiu empertigada.

– Ah. Bom! Assim sim! – Dona Val era implacável. – Voltando. No dia da festa de casamento do doutor, Calormina, desesperada por ter perdido a neta, seu investimento de uma vida inteira, a pessoa que lhe acompanharia na velhice e que lhe seria uma espécie de pau-pra-toda-obra e, o que era melhor, de graça, ela foi, desesperada e disfarçada de cozinheira, chantagear sem o menor escrúpulo o pobre do velho.


– Voxê aqui? – O doutor se assustou quando abriu a porta do quarto e deu de cara com a ex-amante. – Maj o que diaboj voxê eshtá fagendo aqui, criatura? Quem foi que te deixou entrar? Nem foi convidada.

– Eu te alertei, não te alertei? – Dona Calô já foi logo empurrando o velho e entrando no quarto sem pedir licença. – Sou vingativa e comigo o buraco é mais embaixo.

– Xai já daqui, xua velha caduca, xenão chamo já já osh xeguranxas! Quer ver como eu chamo?

– Ah, é assim? Pois chama, velho azedo, pode chamar. Chama e ponho a boca no trombone, ah, ponho! – Dona Calô desafiou. – Quero ver o que tua noivinha vai achar quando souber que você me largou grávida no passado.

O velho chega sentiu uma pontada no coração.

– Grávida! Que hishtória é exa, xua doida? Pirou?

– É ixo, digo, isso mesmo. Você tem uma filha, Epaminondas.

O velho caiu sentado na cama.


– A verdade – continuava a "delegada" – é que Calô, na época, muito bem casada com o Major Otário, ops, digo, Ozório e sabendo já desgastado seu chamego com o doutor, não quis trocar o certo pelo duvidoso. Inventou uma tia agonizante em Mimoso do Sul e que precisava cuidar dela, como forma de retribuir o que essa tia supostamente tinha feito por ela. Deixa que "Mimoso do Sul" era na verdade o cabaré da Risoleta, onde ela ficou até o bebê nascer. Está aqui a própria Risoleta que não me deixa mentir.

Uma velhinha centenária balançou a cabeça.

– Foi desse jeitim mesmo que aconteceu tudo. – a caquética proxeneta confirmou.

– Viram? Isso é mais velha que o rascunho da bíblia, mas está mais lúcida que muitos aqui. Pois bem, como estava dizendo, os planos de Calô eram despachar a criança para a Roda dos Enjeitados do Convento das Carmelitas Descalças Seculares e Bordadeiras, em Serro Azul. Mas uma antiga colega de metiê a impediu de cometer tal atrocidade. Essa colega foi a preferida do Dr. Epaminondas antes da chegada de "Calor del Caribe", nome de guerra de Calormina. Essa mocinha, muito apaixonada por seu cliente ricaço, quase morreu de tristeza depois do pé na bunda que levou, se não fosse os carinhos e atenções de um velho mascate solteirão, que acabou tirando-a da vida e casando-se com ela. Quando soube que seu "Epão" tinha feito um filho na cobra da Calor del Caribe, a então viúva do mascate (o velho não aguentou por muito tempo o rojão), se prontificou a criar a menina como filha e jamais revelar a ninguém a verdadeira filiação da enjeitadinha. Não foi assim que aconteceu, Gertrudes?

– Assim mesmo. – confirmou Dona Gertrudes, fungando emocionada.

– Minha gente, me amarrota que eu estou passado. Quer dizer que o velho Epaminondas já tinha passado para o papo a sogra também! – Admirou-se Ralph. – Gente, esse velho devia ser um bofe escândalo mesmo, traçou todas as velhinhas desse folhetim! Ah, velhinho sapeca!

– Anatalino Tocandofundo Pinto! – Dona Val humilhou e, em seguida, botou moral. – Vai querer experimentar uma noite no xilindró? E, olhe, que não é bom nem se animar, que você não vai para a cela do Ladrão Colombiano.

Ralph quase tem uma síncope ao ouvir seu nome completo. Baixou a cabeça e chorou baixinho.

– Uepaaa! Espera lá! – Dessa vez foi a vez de Ludmárcia catapultar-se da cadeira, já demonstrando claros sinais de outra crise de histeria. – Quer dizer, então, que eu sou filha do... Que eu sou viúva do meu próprio pai. Meu Deus! Meu Deeeeus! Isso é horrível demais. – e as mãos já procuraram nervosas o decote do vestido para se rasgar toda, de alto abaixo, e só não o fez, porque foram impedidas pelas mãos gentis, mas firmes de Ivanir.

– Deixa de ser histérica, menina! Diabo doida! Não é tu, não, me'rmã! – Fez uma pausa contrariada. – Olha, sinceramente, devia ser proibido que mocinhas de folhetim fossem assim tão "ingênuas". – E frisou bem a última palavra com aspas aéreas e um tom de indisfarçável ironia. – A filha do velho é a tua irmã postiça, aquela ordinária ali que quase acabou com a tua vida.

– Epa, olha o respeito! – Lucrécia se doeu, e só, então, se deu conta da enormidade da informação. – Opa! Quer dizer então que eu sou a verdadeira herdeira do velho?

– Herdeira de merda! – Dona Val não poupou. – Não tem mais herança, minha filha. Ivanir, lhe fez o favor de doar tudo para o chantagista Levitraz. Agora fica quietinha aí, senão te despacho para o Vespeiro e você perde o melhor da nossa festinha aqui. – e para a plateia. – Posso continuar? Gente, olha o silêncio!

Mas a plateia tinha ficado quieta por muito tempo. Eram revelações demais e segurar a língua numa ocasião assim exigia autocontrole sobre-humano. Ninguém mais ali conseguia suportar a própria ansiedade.

Foi quando três disparos fizeram parar o tempo e as respirações. 

– Vão me deixar continuar ou não? – Dona Val segurava o três-oitão fumegante apontado para o teto.

Dudinha se urinou que nem sentiu.

– Que droga! A pessoa quer vender o peixe, o peixe apodrece e a pessoa não consegue terminar! – Dona Val se queixou ante a plateia catatônica. – Pois sim... Nem sei mais onde estava... Ah, sim, na chantagem da Calormina.


Não pode xer! Ixo é um blefe. Voxê eshtá blefando, Calormina!

Quer pagar para ver?

Poij dij onde eshtá exa menina. O nome, muito bem, eu quero o nome.

Ixo, ô meu Deus... – a chantagista atrapalhou-se. – Isso eu não digo.

Viu?! – o doutor, triunfante, exclamou. – Não há filha nenhuma, muito menos houve gravidej. Vou já chamar osh xeguranxaj. – E foi com seu passo trêmulo rumo à porta.

Pois bem. Se você não acredita, paciência. – E deu o golpe de misericórdia. – Só me resta apelar para a noivinha.

NÃO! – Quase gritou. – Xe voxê meter minha noiva nixo, eu nem xei, eu te mato, Calormina.

Só vai depender de voxê, digo, de você.

E o que é que voxê quer, criatura? É dinheiro, é ixo que voxê quer?

Dinheiro, ora dinheiro! – A velha até se ofendeu. – Desde quando eu preciso do teu dinheiro, seu velho babão. Nunca precisei. Nem no tempo de Madame Risoleta. E se aceitava, naquele tempo, era só para não desvalorizar meu passe. Eu sou rica, Epaminondas, cheia da gaita, meu filho. Muito mais que você.

– Então, criatura, me dij o que voxê quer.

Nada demais, só que você destrua minha filha Florípedes para que minha neta volte pro meu poder.

– Voxê é muito baixa. – enojou-se o doutor. – E por que voxê mejma não faj ixo?

Porque não quero me intrigar com minha neta, ora. Uma coisa é ter poder sobre uma pessoa por consentimento dela, outra, é forçar uma pessoa a ser seu capacho. Eu quero que minha neta venha a mim como se eu fosse seu porto seguro, seu refúgio. Uahahah! Sou muito diabólica, meu Deus!

Voxê é muito é da ordinária! – ainda exclamou o doutor antes de ceder a chantagem.


– Mas, mamãe, francamente. – Flori estava revoltada. – Você está vendo, Branca, como é sua avó, você está vendo!

– "De perto, ninguém é normal." – Branca filosofou decepcionada.

O pigarrear ameaçador de Dona Val silenciou o burburinho crescente.

– Calormina só não contava que, naquela mesma noite, Dona Gertrudes, numa conversa privada... bota privada nisso... no lavabo da biblioteca, passasse todo o serviço ao doutor e aceitasse testemunhar sobre o total desconhecimento dele sobre a existência daquela filha. – Ligeira pausa para um golinho d'água. – O velho, apesar de aliviado por não ter que se dobrar às chantagens de ex-amante, estava triste e preocupado. Triste por ter sido privado da companhia da filha por tanto tempo... Mal sabia ele que isso foi a maior benção que ele havia recebido em vida...

Lucrécia inchou de raiva e se remexeu na cadeira.

– E preocupado em corrigir a ausência paterna, mesmo que ele não fosse o culpado, decidiu refazer o testamento, incluindo nele a filha. Antes nunca se preocupara em comprovar a paternidade em relação a Ivanir. Para ele, o "menino" era seu herdeiro e pronto. Mas agora, diante dos fatos, precisava ter certeza. Colheu alguns fios de cabelo da escova de Ivanir e pediu a seu colega e sócio minoritário, o Dr. Ribamar, que lhe colhesse uma amostra de sangue e levasse imediatamente para o laboratório. O assassino, então, surpreendeu-os e estranhou o fato de um médico estar colhendo o sangue do velho Epaminondas. Muito solícito, foi logo perguntando, se o velho estava passando mal e...


– Eu podia muito bem dijer que não é de xua conta, ora maij exa! Mash como prexijo de um favor xeu... Digo que ixo daqui não é nada! (referia-se ao fato de um médico lhe estar tirando o sangue literalmente). – Eshpera xó um pouquinho aí! – fez uma careta de dor. – Ai, caxete de agulha! Poxa, Riba, mash tu tem a mão muito pejada. Vai-te pra lá? É pra tirar meu xangue, não é para arrancar meu braxo, não.

O doutor Ribamar pensou ofendido: "Não sou enfermeiro, sou médico. Devia ter chamado a besta do teu sobrinho, velho babão." Mas não disse nada disso.

– Pronto, Dr. Epaminondas, as amostras já estão coletadas.

Ainda bem, por que eu eshtava vendo a hora ficar xem xangue. – queixou-se, apertando a picada da agulha com um algodão embebido em álcool. – Poish muito bem, agora, Riba, voxê vai me fajer a fineja de levar imediatamente exaj amoshtrash para o laboratório. Quero osh rejultadoj o maish rápido poxível.

Com ódio por ter sido tratado como um reles auxiliar de enfermagem e por ser privado de continuar na festa enchendo os cornos de cachaça e o bucho de salgados, o doutor Ribamar fez um esforço tremendo para se controlar:

– Como o doutor quiser.

Uma mão misteriosa abriu a porta e o doutor Riba saiu empertigado e rangendo os dentes.

Dr. Epaminondas, fechando as abotoaduras, falou para a outra pessoa que estava no quarto:

Não, eu eshtou bem, já dixe! Que xaco! "Que ejame era aquele?" Não é de xua conta, mash como voxê xabe de tudo, vou contar. É um ejame que eu xempre temi fajer, mash que agora... Uma dúvida de uma vida inteira agora vai xer eshclarexida. Vou xaber xe realmente Ivanir é meu filho... Ora, "por que ixo agora"! Porque eu tenho o direito de xaber, ora carambolaj! E também porque... Vem cá, deixa eu te contar tudo. Em voxê eu poxo confiar, ainda maish que vou prexijar de voxê para xer teshtemunha de meu novo teshtamento...


– Mal sabia o doutor que estava assinando sua sentença de morte. – comentou Dona Val. – O assassino ouviu tudo calado, mas sua cabeça devia estar a mil. Ele não podia mais ser paciente, senão seu filho poderia perder toda a herança. Decidiu que agiria com mais rapidez. Há meses ele envenenava o velho com uma beberagem fruto de um conhecimento milenar dos africanos. Essa gororoba, resultado de uma combinação de ervas exóticas, a base de sumo de comigo-ninguém-pode e espada de São Jorge, usada para derrubar onça e elefante lá na África e trazida para o Brasil devido às suas propriedades abortivas, se usada constantemente em doses homeopáticas diluída em outros líquidos, é capaz de matar lentamente o cidadão, afetando o sistema respiratório, hormonal, digestivo, linfático, simpático, parassimpático, antipático, enfim, o diabo. E os principais sintomas do envenenamento por essa substância são asma, taquicardia, retenção urinária, reumatismo, mau humor, dormência na língua e, naturalmente, problemas de dicção.


Uma mão misteriosa apresentou um copinho de xarope contendo um líquido esverdeado ao Dr. Epaminondas, tão próximo do nariz do velho, que o pobre ficou meio zarolho tentando mirar o estranho remédio.

– Vem cá, voxê tomou quantash para achar que eu vou tomar exa porcaria dexe xarope no dia do meu cajamento? Xó xe eu foxe maish beshta que voxê! Já penxou não poder tomar maish nem um rabim de galo! Não, não vou tomar! Ai, meu xaco! Para de inxishtir, coija chata! Toma tu, ora merda! E quer xaber de outra? Vou é procurar minha noiva que ganho maish, eshtou doido de xaudade daquele par de coxa. Ehehehe!


– De forma que o velho não deixou alternativa ao assassino, a não ser envenenar o vinho do brinde, mesmo correndo o risco de que Ludmárcia também o tomasse. – Dona Val concluiu triunfante.

Na cara de todos, um grande ponto de interrogação: "mas, afinal, quem matou o Doutor Epaminondas?"

– Tudo seria perfeito – continuou retumbante a "delegada" –, se não fosse pela presença da única pessoa que conhecia os estranhos efeitos do veneno: a trava Paloma.

– Delegada... – Chamou Desireé, erguendo timidamente a mão. – Gostaria de lhe pedir encarecidamente que a senhora não se referisse à minha finada digníssima por "trava".

– Vá se lascar! – Foi incisiva. – Eu aqui querendo te inocentar pela morte daquele travesti de terreiro e tu aí com frescura, Beira-Rio!

– Ah... Pois não! Pois não! – desculpou-se, suando frio.

– Vocês devem estar se perguntando – continuou a delegada – por que cargas d'água a trava Paloma conhecia os efeitos do veneno? Muito simples: como eu falei a receitinha do veneno veio com os escravos trazidos da África, e por causa das ditas propriedades abortivas, ainda hoje é de conhecimento do povo da comunidade quilombola "Carimbó do Abaeté", daqui de Ovelhópolis, umas 20 léguas, acho que todo mundo aqui já ouviu falar, e comunidade esta da qual aquele travesti de terreiro e a família vieram. O nosso engenhoso assassino, filho de chocadeira, foi criado pela avó de Paloma, sendo, portanto, seu tio postiço. – Bebeu um gole de água para molhar a garganta, já ansiosa pela proximidade da grande revelação e do ápice de sua fala. – De posse da certeza de que só uma pessoa naquela festa podia conhecer o veneno que deixava o pré-defunto como que possuído por uma pomba-gira cigana, dando cambalhotas obscenas, a trava Paloma foi ter com o suposto tio e, obviamente, o chantageou sem dó nem piedade. Pediu dinheiro para se calar e a fineza de ele acabar com a vida de sua maior rival, Florípedes Raimunda, de forma a parecer um acidente.

– Gozado! Todo mundo desse folhetim cismou com a minha cara. – Revoltou-se Flori. – Todo mundo querendo acabar com a minha vida, cara!

– Cala a boca! – Dona Val deu um grito, agora realmente já possessa por ser tão interrompida.

Flori quase cai da cadeira com o susto.

– Inferno! Deixa eu fazer logo a revelação bombástica que tenho para fazer, pel'amor de Deeeeus! – Silêncio absoluto. – Humpf! Assim está melhor. – Prosseguiu, depois de fuzilar a todos, com um olhar furibundo. – Pois bem, a trava chantageou o tio postiço e Dursilon Dáblio, aqui presente, ouviu tudo. Depois, foi perseguido e empurrado escada a baixo no sótão da mansão, ficando em coma por vários dias. Você confirma isso, Dursilon?

Dudinha agora entendia perfeitamente as agonias por que há pouco passara Ralph. "Por que mamãe me deu essa cruz em lugar de um nomezinho normal?" Num fio de voz, mais encolhido do que nunca, gemeu numa voz fina de criança morta que baixa em centro espírita:

– Sim.

– O quê? Não ouvi. Fala direito, menino. – Dona Val não poupava ninguém.

– Siim. – gemeu novamente, dessa vez mais alto.

– E você pode dizer para todos quem você viu conversando com a trava Paloma?

O pobre do emo, a cabeça quase entrando no tórax de tão encolhido, apontou para trás de si, o dedo magro, que encolhia e esticava mimosamente.

– FALA, menino! DEIXA DE FRESCURA! – Deu logo uns gritos.

A pressão foi tamanha que Dudinha não resistiu, escorregou desmaiado para os braços de Branca.

– Pel'amor de Deus! – queixou-se Branca. – Pedra dura em água mole, tanto bate, até que... enfim. – Até atrapalhou-se com aquele peso morto nos braços.

– Ah, fuleiragem! – Dona Val já se cansava de ser Miss Marple. – E você, Anatalino?

Ralph estava para cair em convulsões, nunca alguém pronunciara tantas vezes e em tão pouco tempo seu odiado nome em vão.

– Você em depoimento afirmou ter surpreendido a trava Paloma em conversa suspeita ao celular. Conte-nos o que sabe, tudo e agora! 


Ralph saiu, mais desconfiado que padre em puteiro, de trás de uma touceira de comigo-ninguém-pode. Logo em seguida saiu um garçom ainda se compondo

– Sabe dar nó de gravata borbo... – o garçom nonsense falou a plenos pulmões.

Psiiiu! Fala baixo! – cuspiu por entre os dentes. – Quer que todo mundo saiba o que houve atrás dessa moita? – Uma comichão gostosa, mas fora de hora, lhe percorreu a espinha à lembrança do que acontecera.

Nesse momento, ouviu passos que se aproximavam. Mais ligeiro que cuspida de músico, Ralph empurrou o garçom "amigo" de volta para a moita e praticamente mergulhou de cabeça em seguida no comigo-ninguém-pode.

Uma figura alta, magérrima e lantejoulada passou pela moita ocupada. Ralph reconheceu Paloma, que, nervosa, trêmula e assustada, sussurrava ao celular:

Mas me diz, será que ele morreu?... Eu não queria fazer aquilo... Eu sei, eu sei... Mas naquela hora eu não ia empurrar, eu ia era segurar aquela praga, para você poder matar... Não, não, eu estou calma. Quem é que está nervosa aqui? – Roía desesperadamente as unhas postiças. – O que me revolta é me sujar por conta daquela monette de cabelo rasga-fronha... Se era para eu matar alguém, que fosse pelo menos... Certo, certo, não vou mais repetir isso... Já vou, já vou, não precisa expulsar também, não... O quê? A polícia já está vindo? Valha-me, minha Santa Cynthia... Não, já vou agora! Já estou aqui nos fundos da casa. Sei, entendi, entendi.

Desligou o celular e, ante os olhos horrorizados de Ralph, deu um duplo twist carpado e pulou por cima do muro, sumindo fora dos domínios da mansão.


– Mal sabia a desgraçada que acabava de assinar a própria sentença de morte, com aquele destempero todo. – comentou Dona Val. – Mas, uma coisa, Anatalino: que você ouviu a trava no celular falando do atentado contra a vida de Dursilon já sabemos. Agora o que queremos saber é se você ouviu o nome da pessoa com quem ela falava, ouviu?

Ralph inquietou-se, suou frio.

– Não lembro... acho que não. – gemeu.

– Anatalino, Anatalino, pensa bem. Faz um esforço para lembrar.

– Já disse que não. Eu estava tão nervoso naquela hora que... – quase chorando.

– Ô, diabo fresco! Bem, então só temos mesmo uma testemunha.

– Voltou-se para Dudinha. – Dursilon Dáblio, avia, menino! Umbora, deixa de coisa, seja homem!

– Mas ele está desmaiado. – argumentou Flori, enquanto, com a filha, abanavam o pobre mancebo.

– Pimenta nos olhos dos outros é refresco. – ajuntou Branca Helena.

– Pois, muito bem, se ele não acordar, vou mandar já já o Cabo 70 ir até um certo armário lá na U.O e riscar uma certa coleção autografada de CD de Zezé di Camargo e Luciano, todinha!

Espanto geral! Dudinha deu um pulo da cadeira, já completamente restabelecido do desmaio.

– Mas, olha, menino, que foi o mesmo que botar água na fervura. 

Num instante acordou. Melhor que amoníaco! – A "delegada" tripudiou sem dó.

– Dudinha, Zezé di Camargo e Luciano? Sertanejozão pesado! Mas tu não é emo, criatura! "Nem tudo que reluz é ouro". "Morro e não vejo tudo."– Branca abismou-se.

Dona Val achou-se na obrigação de esclarecer.

– Essa desgraça é emo só na baitolagem, mas nunca tolerou as musiquinhas da turminha dele, aquelas bandinhas chatinhas e melosinhas. Sempre gostou mesmo foi de um sertanejão brabo. Sem personalidade, escondeu isso de todos. Mas, como a mentira tem perna curta, a turminha dele descobriu e quis "curar" ele, fazendo-o escutar noite e dia música "emocore". Para não enlouquecer foi que ele fugiu de Serro Azul e veio estudar contabilidade na UO. Era esse o segredo que aquela turma de vândalos usava para chantagear e fazer o abestado de gato-e-sapato. Agora, seu Dursilon, ou você deixa de frescura e passa logo o serviço, ou eu mesma entro em contato com o emo Bonequinho de Porcelana, o cabeça da sua antiga turminha ema e entrego seu paradeiro a eles.

Dudinha, entre a cruz e a caldeirinha, não pensou duas vezes:

– Foi o Alfred, o assassino é o Alfred.

Comoção geral. Todos ficaram em polvorosa, menos uma pessoa, o próprio Alfred, que, sempre britânico, manteve a postura de mordomo de romance policial, impassível e empolado.

Na feira em que se tornara o salão do hotel, houve até quem dissesse:

– Mas o assassino é o mordomo?! Que falta de originalidade.

Dona Val se doeu pelo comentário e, impaciente, puxou o três-oitão e deu outro tiro para o ar, pondo mais uma vez moral e ordem no recinto. Reza a lenda que se ouviu um urro de dor no andar de cima do salão.

– Vamos acabar logo com essa palhaçada, que isso aqui já deu o que tinha que dar. Muito bem, senhor Alfredo, o que é que o senhor tem a dizer sobre tudo o que foi dito aqui?

– Nego todas as acusações. – Alfred falou calmo, sem descer um milímetro do salto.

Aquela calma toda desconcertou a "delegada":

– Como assim "nega"? Tá doido? E as evidências, otário?

– Não há evidências. Apenas provas circunstanciais, teorias mirabolantes e o testemunho de um adolescente problemático e delirante. Eu conheço muito bem os meus direitos.

– Muito bem! – A velha estava vermelha de ódio. – Despachem o meliante pro camburão AGORAAA! Quem viver verá se não te enquadro direitinho e te meto na Bochechuda! – Dona Val ainda desafiou.

– Vamos ver. – O mordomo aceitou o desafio sem pestanejar.

– Só uma coisinha! – Ivanir pulou da cadeira e dos braços de Ludmárcia ao pedir a palavra, visivelmente perturbado. – Você não é meu pai! – gritou, o dedo em riste na direção de Alfred. – Meu pai sempre foi e sempre será o titiooo!

Aquelas palavras duras pareceram ferir de leve o verniz do mordomo, o que um olho mais atento poderia ter percebido pelo leve tremor nas feições do acusado. Mas, descontrole este muito fugaz, logo Alfred se recompôs:

– Como o senhor quiser, Dr. Ivanir.

Ivanir novamente desabou chorando nos braços de sua amada, enquanto o teso mordomo era conduzido pelos policiais ao camburão.

Nesse momento, entra afobado um empregado do hotel.

– Senhora, senhora! – Dirigia-se a Dona Val. – Acabamos de receber uma ligação do senhor... – consultou um papelucho, onde tinha anotado sua colinha – Levitraz. Ele solicitou urgência em lhe perguntar se a senhora recebeu a carta em que ele desvendava todos os mistérios de Ovelhópolis.

Dona Val ficou mais desorientada que zagueiro zarolho. Toda atarantada, pálida e trêmula, dobrou às pressas algumas folhas manuscritas espalhadas pelo púlpito.

– Hein? Eu não sei de carta nenhuma, não. – E enfiou as folhas dobradas no sutiã, ante os olhares de banda do seu pequeno auditório.


Levitraz devolveu o telefone ao gancho, com aquele mesmo velho risinho cínico, que os hematomas da surra levada não eram capazes de conter.

– Can I help you em algo mais, Mister Takesandbrings?

Estava no hall de um luxuoso hotel de uma ilha do Pacífico, e o gerente, após ter-lhe preenchido a ficha de hóspede e ordenado que lhe levassem para o quarto as bagagens, atenciosamente se lhe colocava a disposição:

– Yes, Mister Little gerente de hotel, Yes. I would like que o mister me desse um little desconto na minha estada aqui nessa espelunca.

O gerente foi pego de surpresa.

– Oh, I'm sorry, but...

– Look well, I'm a rich man, very very rich, money a dar com o pau, money, eu estou é chutando, sério mesmo. Se money fosse shit, eu estava todo cagado. But we know, você mais do que eu, que money não dá em tree, ainda mais nessa recessão dos devils, doesn't? So, é justo que um hóspede do meu gabarito seja convencido a permanecer nesse little hotel de quinta com um atrativozito de um desconto, does I lie?

– No, but... Look, mister, I would like, but I can't. – O gerente já estava arrependido de não ter dito que o hotel estava lotado.

– You can, sim, you can, gerente de pensão. E, look, nem precisa ser um desconto muito big, também não quero lhe prejudicar. – Pensou um pouco como que fazendo alguns cálculos mentais. – Let me see... Vou ficar por aqui talvez uns três, quatro meses... Look, até por 88% de desconto na diária e no frigobar eu fico.

O gerente quis conter a gargalhada, mas foi impossível. Chorando de tanto rir, tentava se desculpar:

– Sorry... sorry...

Levitraz esperou pacientemente e com um simpático sorriso estampado na cara que o acesso de riso do gerente se abrandasse um pouco.

– Eu até poderia procurar um little hotel melhor, mais simpático, o que seria difícil, confesso, de encontrar nesse cu de mundo paradisíaco, but, onde eu encontraria um gerente como você, uma pessoa tão interessante, tão cool, que faz o que faz nos seus plantões – Desenhou nos ar com os dedos aspas imaginárias – todas as Mondays, Tuesdays, and Fridays?

O riso do gerente morreu quase que instantaneamente, cedendo lugar a uma máscara de surpresa e horror, o queixo quase chegando ao plexo solar.

– Será que sua esposa e o dono dessa espelunca achariam tão legais e interessantes suas atividades secretas como eu acho? – Com a cara mais cínica do mundo fez que pensava um pouco. – Hum, maybe yes, do jeito que gringo é mente aberta, doesn't?

Os olhos esbugalhados do gerente começavam a lacrimejar.

– Pensando bem, acho que mereço um little desconto um pouco maior. Oh, let me see... 98% na suíte presidencial, por menos que isso até me ofendo.

O gerente não conseguiu conter o choro, baixou a cabeça soluçando baixinho.

– Estou louco para conhecer a piscina do hotel. – mudou de assunto, esfregando as mãos de ansiedade. – Para que lado fica?

O gerente estava mudo de horror.

– Ah, nem precisa dizer. – apressou-se em falar o ex-mordomo. – I know! I know! I always Know! Eheheheheh!

E a risada cínica de Levitraz ecoou no suntuoso hall do hotel. 

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