XVII.
Tim fechou o caderno de imediato, seu coração acelerado no peito. Não sabia até que parte Eliza havia lido, e embora ele soubesse que esse provavelmente seria o desejo dela, não queria que ela lesse aquilo.
De repente, todos os esforços que a Sra. Parsons teve para buscar meios de ressuscitar Eliza fazia sentido. Todos os espíritos passariam por esses estágios eventualmente, era o destino dela. Se ela continuar como fantasma, isso será inevitável.
Se ela continuar como fantasma, Eliza, talvez umas das pessoas mais gentis que ele já conhecera, se tornaria um monstro.
Um Poltergeist.
“Ei, por que você fez isso?” Eliza lhe chamou a atenção. “Eu queria ler!”
“Não é nada de mais...”
“O que estava escrito lá?” ela demandou que ele falasse, tentando pegar o caderno de sua mão, mas Tim o segurou no alto. “Deixe-me ver!”
Eliza o puxou pelo ombro, tentando fazê-lo abaixar. Norman já havia parado de ver os jornais e agora olhava para a cena, tentando entender o que acontecia.
“Confia em mim, você não vai querer saber,” retrucou ele.
Vendo que não conseguiria dessa forma, Eliza se afastou dele.
“Tim, eu preciso saber" ela acalmou a voz. “O que é tão grave que você não quer me mostrar?”
Tim abaixou o braço devagar, olhando para o chão.
“Eu... acho que você corre grande perigo.”
Com relutância, ele esticou o caderno ligeiramente em sua direção, e antes que ele mudasse de ideia, Eliza o pegou de sua mão, folheando-o até abrir na mesma página. Tim observava enquanto ela percorria os olhos pela folha, sua expressão se agravando a cada palavra.
“Isso...” ela levou a mão ao pescoço. “isso explica muita coisa.”
“Você já sentiu algo parecido?”
Eliza afirmou com a cabeça. “Eu só havia percebido mudanças na minha força, como eu te disse, antes eu não conseguia tocar em nada e agora consigo, mas tem isso também. Às vezes eu estou muito feliz, e depois triste, e então com raiva...”
“Há quanto tempo você sente isso?”
“Não sei exatamente, acho que desde quando eu acordei, é como se tudo estivesse vindo de uma vez só.” Ela se sentou na cadeira, suas mãos agarradas à barra do vestido. Tim esperou para que ela falasse mais alguma coisa, mas ela não disse nada, então ele resolveu quebrar o silêncio.
“Se foi há pouco tempo, então talvez ainda demore para acontecer algo,” disse ele, mais como um desejo de que isso fosse verdade.
“E às vezes eu também sinto coisas,” Eliza retomou o que dizia antes, parecia que tinha se lembrado agora do que iria adicionar. “sentimentos que nunca senti antes...”
“Que tipo de sentimento?” Tim não se importou em perguntar.
Eliza lambeu os lábios, hesitando em responder. Talvez fosse algo que não quisesse dividir com ninguém, mas o que mais parecia era que ela mesma também não conseguia explicar.
Ela abria a boca para responder quando Norman lhes chamou a atenção.
“Tim, eu achei uma coisa.” Ele estava sentado de joelhos no chão, todos os recortes de jornal estavam em seu colo, menos um que ele segurava em suas mãos. “É o Damien, não é?”
Norman virou o trecho do jornal para que ele visse. Era uma notícia sobre um menino que havia desaparecido, o retrato que havia no jornal era um desenho dele, um retrato falado, de uma época que ainda nem existiam fotos. Seu rosto não era completamente igual, mas Tim conseguia ver as similaridades.
“Aqui está dizendo a data: 5 de junho de 1812.” Norman apontou o dedo para o pequeno espaço na parte de cima da folha. “Ele estava desaparecido nessa época, a mãe foi encontrada morta dentro de casa poucos dias depois com marcas no pescoço, mas o mais estranho que colocaram aqui foi que as marcas eram de mãos de criança, acho que foi isso que fez a Sra. Parsons ter guardado esse papel.”
“Foi ele.” Eliza soltou de imediato. “ele quem a matou.”
“Você disse que a história era que a mãe havia matado ele e depois se matado...”
“Tim...” Norman o chamou, mas nenhum dos dois prestaram atenção.
“A lenda deve estar errada, essa é a única explicação que faz sentido,” ela argumentou. “Agora que sabemos de tudo isso, o que provavelmente aconteceu foi que ela o matou e depois o fantasma dele veio se vingar.”
“Tim...”
“Mas ele era só uma criança, não havia dado tempo de ele se corromper ainda, não é?”
“Tim!” Norman percebeu que falou um pouco alto demais e abaixou a voz. “Ainda tem esse outro desenho aqui.”
Norman virou para o verso do papel, onde mostrava o desenho de uma casa, a legenda embaixo dizia que se tratava da residência dos Abbott, a família de Damien.
Não a reconheceu de imediato, mas logo percebeu o que estava olhando. Era a mesma fachada de que se lembrava, o mesmo formato do telhado, as mesmas duas janelas compridas da sala que quase encostavam o chão, lugar por onde o pai quebrou o vidro para que ele pudesse sair e sobreviver.
“A minha casa” ele engoliu em seco. “Ele morava na minha casa.”
“É, sabia que ela me parecia familiar, mesmo estando toda destruída agora,” disse Norman.
Fazia sentido, ele pensou consigo mesmo. Damien dizia que morava na vizinhança, mas se fosse em alguma casa vizinha, ele não iria conseguir sair dos limites da propriedade, pelo menos não na teoria, e o terreno que os pais de Tim compraram ia até o riacho, de onde eles nunca passaram em nenhuma vez que estiveram juntos.
Talvez ele só não quisesse entrar em sua casa porque assim que Tim descobrisse que sua mãe não conseguia vê-lo, ele seria desmascarado.
No canto da imagem, havia algo escrito com tinta de uma caneta preta que deixou Tim pensativo, uma anotação da Sra. Parsons que dizia somente estaria na casa com um ponto de interrogação ao lado. Tim não entendeu porque ela havia escrito aquilo.
“Eu tinha intrometido a conversa de vocês. O que vocês estavam falando antes, você e a Eliza?” Norman quis saber, mudando de assunto.
“A gente estava falando que pode ser que Damien tenha a matado... a mãe dele, digo,” contou Tim.
“Ah, pra mim isso já é mais que óbvio.” Norman rangeu os dentes. “Se eu pudesse pegar aquele fantasminha de araque...”
“Mas você disse que não queria mais ir para lá, mudou de ideia?” Tim perguntou, um pouco de esperança o acendeu. Queria voltar lá, mas seria louco de ir sozinho.
“Eu não, Deus me livre,” ele dizia enquanto fazia o sinal da cruz. “Agora é que ele mata a gente mesmo.”
“Eu também não sei se gosto dessa ideia, Tim,” Eliza se manifestou ao seu lado. “Vocês podem se machucar feio.”
Tim coçou a nuca. Eles falavam isso agora, mas se soubessem o que ele sabia, estariam tão preocupados quanto ele. Norman o encarava agora, querendo entender o porquê de sua inquietação.
“Eu preciso dizer uma coisa.” Tim criou coragem. “No mesmo dia em que cheguei, Stephen teve uma visão, eu sei porque o vi no exato momento que aconteceu. Eu insisti para que ele me contasse o que era e ele falou, disse que era uma visão sobre mim.”
Norman franziu a sobrancelha.
“Ele não contou nada disso pra gente,” comentou. “Estranho, ele sempre fala quando acha que é algo importante.”
“E é importante,” Tim suspirou, quase cochichando. “Ele falou que tinha visto todos no orfanato mortos.”
Norman se levantou do chão, seus olhos arregalados.
“A gente vai morrer? O quê...”
“Eu não queria ter que falar sobre isso, iria deixar vocês tão paranóicos quanto eu, mas é algo que eu não consigo ignorar,” desabafou. “E ele disse também que eu teria algo a ver com isso.”
“Como assim?” Eliza perguntou.
“Eu não sei, ele disse algo como 'tudo começa e termina com você', algo assim. Mas agora eu não sei se já começou e eu preciso terminar ou se não começou ainda e é melhor eu não fazer nada, entende?”
“Ele não deu mais algum detalhe? Foi só isso?” Norman continuava de pé, seus dedos batiam freneticamente a pilha de livros em que se apoiava.
“Só, ele não teve muitos detalhes da visão,” Tim respondeu. “Mas eu acho que deve ter alguma coisa a ver com isso.” Ele pegou o recorte de jornal na mão. Norman o encarava com uma feição séria, talvez o mais sério que ele já esteve.
“Mas e se for o que você falou? E se você não começou com nada ainda e a gente indo lá vai ser o que vai nos levar até o fim da visão?”
“Não dá pra saber. Pode muito bem ter começado quando eu decidi virar amigo de um fantasma” No mesmo momento que percebeu o que havia dito, Tim se virou para Eliza. “...do mal, um fantasma do mal.”
Ele fechou a mão em um punho enquanto a escondia no meio de suas pernas.
“E agora que eu vim pra cá, isso pode ter colocado vocês no caminho dele também.”
“Então ele consegue sair de lá?”
“Pode ser que sim,” Tim respondeu. “Ele é mais velho que Eliza, mais forte, e por isso também, mais maldoso. Ele já deve ser um polt... um...”
“Poltergeist.” Eliza o ajudou, olhando novamente o nome no caderno.
“É. Isso.”
“O que é essa palavra aí?” Norman quis saber.
“Estava no caderno que eu e Eliza estávamos lendo. É o pior nível que um fantasma pode chegar, eles ficam assim quanto mais velhos são.”
“Ah, que ótimo, agora eles tem até níveis,” ironizou ele.
“Mas o que vocês vão fazer quando chegarem lá?” Eliza mudou de assunto, parecia estar implorando para pararem de falar disso. “Eu não sei o que poderia matar um fantasma, ou pelo menos expulsá-lo de vez.”
“Deve haver alguma coisa por aqui que ajude.” Tim se levantou para pegar o caderno que Eliza havia deixado aberto sobre a mesa. “Deve estar em algum lugar desse caderno.”
Norman soltou um bocejo.
“A gente pode levar esse caderno lá pra cima então?” ele bocejou novamente. “Eu tô com sono, e esse pó ainda vai me fazer mal.”
Tim achou melhor que saíssem de lá logo, também não aguentava mais ficar naquele lugar apertado com cheiro de pó, e seria um desastre caso Norman espirrasse e todos aqueles livros virassem brasa, então era melhor que ele levasse o caderno e o jornal para o quarto, conseguiria escondê-los debaixo do travesseiro ou na gaveta da sua mesa de cabeceira.
Eliza foi na frente para poder avisar a eles caso Anne estivesse em algum lugar por perto, mas ela não estava nem na sala, nem no corredor de baixo ou no de cima, indicando que era seguro passar. Tim foi na frente e Norman atrás enquanto subiam as escadas, Tim apertava os olhos para conseguir olhar seus pés subindo os degraus.
Até que, nos dois últimos degraus, ele não precisou mais. Uma luz se acendeu no corredor.
“Norman?” ele ouviu a voz de Anne lá embaixo, ela tinha acabado de vir da cozinha. Aproveitando que ela não tinha o visto, Tim apressou o passo para ficar no escuro do andar de cima.
Norman fechou os olhos e continuou andando devagar.
“Norman, você está acordado?” Anne subiu uns degraus para ficar em sua frente. Norman continuava de olhos fechados, fingindo estar dormindo.
“Não, Stephen, me deixa,” ele murmurou, afastando o braço dela quando ela tentou segurá-lo. “Não quero ir para a escola hoje.”
“Vem, seu tonto, vou te levar pra cama,” disse ela. Tim, que estava observando tudo de cima, correu para o quarto rapidamente antes que eles subissem a escada por completo. Eliza foi junto dele, ela ria da atuação de Norman enquanto Tim cobria sua boca, se segurando para não fazer o mesmo.
Tim se deitou na cama, colocou o caderno com o jornal debaixo do travesseiro, puxou o cobertor e fechou o olho. Abriu uma última vez para ver se Eliza ainda estava ali, e vendo que ela já havia sumido, ele se virou para o canto da parede.
Segundos depois, ele ouviu passos se aproximando.
“Deita aí.” Tim ouviu Anne dizer atrás dele enquanto Norman soltava uns gemidos de sono. Ela o cobriu e, quando ele não conseguia mais ouvir seus passos, Tim se virou para ele.
“Não sabia que você era ator,” ele cochichou. Norman deu um sorriso, satisfeito consigo mesmo.
“Sou bom de pensar rápido.”
“Bom mesmo, ela não desconfiou de nada,” Tim cobriu a risada com a boca. "Já pode ir para o teatro."
“Nunca entrei em um teatro antes,” contou ele.
“Você nunca assistiu a um filme?”
“Isso já. A sra. Parsons tinha um projetor, a gente assistiu dois ou três filmes antes dele quebrar. Ela nunca soube como concertar.”
“Você tem que ir ao teatro comigo um dia" Tim sugeriu. Norman negou com a cabeça.
“A gente quase nunca sai se não for pra ir pra escola, só quando é um lugar sem muita gente,” explicou ele. “Não tem com quem deixar os mais novos e é arriscado que eles acabem mostrando seus poderes sem querer por aí.”
“Quando a gente sair daqui então. Vou levar todos vocês.”
Se não estiverem todos mortos antes disso.
Ele afastou esse pensamento da mente na mesma hora. Isso não ia acontecer, eles estavam seguros ali, o orfanato era afastado da cidade, nada iria acontecer.
Ele esperava que não.
“Boa noite, Tim.” Norman abafou seu bocejo com a mão. “Amanhã a gente conversa.”
“Boa noite,” ele respondeu. Norman fechou os olhos e se virou de costas.
Tim ficou um tempo de olhos abertos, conseguia sentir o caderno embaixo de seu travesseiro. Não queria esperar até amanhã, queria dar uma olhada nele antes de dormir, só para ver se achava alguma coisa.
Quando Norman começou a roncar, Tim ligou a luz do abajur. A luz estava fraca, então ele se apoiou na mesa de cabeceira para conseguir ler.
Folheou da página mais recente até a mais antiga, percorrendo o olho rapidamente pelas frases e parágrafos. Quando seu tio John o ensinava a fazer lição de casa, ele o ensinou a procurar por palavras chave nos textos, era um jeito muito mais fácil de achar as respostas que queria. Procurou por palavras como "matar", ou "expulsar", ou qualquer outra que possa estar relacionada a isso.
Até que, na página de Abril de 1901, ele achou um parágrafo interessante:
Espíritos não vão embora com o tempo, eles ficarão presos em um lugar para sempre se nada for feito. Para que se consiga expulsá-lo permanentemente, é preciso queimar qualquer ligação física que ele tenha com o mundo dos vivos.
Tim leu mais uma vez, tentando entender o que aquela passagem significava. A palavra 'queimar' foi escrita no sentido literal?
Queimar qualquer conexão física com o mundo dos vivos. Essa "conexão física" seria o próprio corpo?
Espere... o jornal.
Tim pegou o jornal que estava dentro de uma das páginas do caderno; de repente, a nota que a Sra. Parsons havia feito começou a fazer um pouco mais de sentido.
Estaria na casa? Poderia a coisa a que ela estava se referindo ser o corpo dele? Tim não se lembrava de ter lido algo sobre o corpo de Damien em nenhum dos jornais que a Sra. Parsons mantinha, talvez ele nunca tenha sido encontrado, talvez porque seu corpo esteja enterrado em algum lugar da casa.
E se fosse isso, então essa era a maior pista que ele tinha para acabar com ele de uma vez por todas.
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