PARTE III - 18. No Topo da Montanha

Foram anos bons, eu até podia dizer que meus sonhos haviam se realizado. Mas no fim, sonhos? Aquilo realmente eram sonhos? Se eram, eu podia confiar ainda menos neles.

Nunca podia abaixar a guarda, descer do pedestal, quebrar o vidro. Sonhos.. eram monumentos plásticos, realmente não me importava com eles.

Aquilo que eu procurava já havia se concretizado, se revelado e murchado na mesma medida. O que eu vivia era algo completamente diferente. Não havia espaço para pensar que fazia aquilo por felicidade, era mais como se eu precisasse sustentar tudo o que havia construído para me manter de pé e não o contrário.

Ainda era inverno, ou ele apenas regressara para me buscar? Na verdade eu já não poderia dizer quanto tempo ainda restava, quanto havia se esvaído.

Olhando do lado de dentro da vidraça molhada de chuva, todos os que passavam do lado de fora pareciam... tão mais jovens do que eu.

Viviam suas realidades tão intensamente, como costumava viver, sem pensar se um dia aquilo realmente valeria a pena. Se um momento pesa mais do que outro, se ser de tal maneira e não de outra te trará mais satisfação. Afinal, quem poderia dizer? Nós só sabemos quando chegar a hora em que, enfim, podemos nos dar o luxo de comparar.

Comparar se a neve é mais espessa em cima ou abaixo da montanha, por exemplo. Amarrando mais uma gravata, atando mais um nó, eu não tinha tempo de olhar para baixo. Na verdade, de olhar para qualquer lado.

Isso soa familiar, não é? Ainda incapaz de olhar ao redor... detrás da janela, detrás da cortina.

A música começava, todos desatavam a falar, te rodear, parasitando e tornando o simples ato de andar impossível, então tudo parece nublado e monótono.

Apenas caminhando na multidão de pessoas, sonolento, procurando-a, Tânia e seu longo vestido bordado de mangas vermelhas, seu demarcado sorriso que me guiava para onde realmente deveria ir. Me guiavam para Joe.

Onde estará ela? Já me pergunto impaciente, até sentir seu aperto firme e inconfundível no meu ombro.

"Eu estou aqui", diz ela, me salvando pela trigésima vez. Então o fim da noite chega, e mais uma vez; um desatar de gravatas, respirar fundo na poltrona... levantar e pôr o avental, começar o trabalho.

Poderia dizer que era horrível ter de trabalhar após noites cansativas como as que sempre tinha, mas sinceramente, trabalhar tanto era a única forma de fazer aquilo valer a pena. Sozinho, no meu estúdio, fingindo que ainda estava correndo atrás de alguma coisa.

Quando me encontrava, na verdade, atolado no meio da montanha. Não vendo não muito mais que a nevasca, entretanto não se pinta apenas neve, não é? Eu tive que inventar alguma coisa. Muitas vezes me pegava olhando praquele quadro, tentando sentir ao menos um pouco daquela emoção passada, porém não passavam de pensamentos ocos.

Bem... era isso que eu queria, pois não? Então estava tudo bem. Aquelas lacunas não deveriam significar nada mais do que apenas passado.

Um dia, falava de arrependimentos, outro eu construía uma muralha tão firme que nem mesmo o mais forte bloco de neve poderia derrubar. E o que importa se não houvesse nada abaixo da montanha? O que queria era somente estar ali, de pé, sem que ninguém pudesse me derrubar.

Não havia maneira alguma de qualquer coisa me tocar ali e se o fizesse, apenas me tornaria mais forte. E se sentir tão forte quanto a montanha é o verdadeiro motivo da escalada.

Sonhos são apenas... uma maneira simples de definir isso. Ou você absorve a montanha, ou ela engole você.

Haviam se passado pouco mais de sete anos desde que desistira daquele quadro. Muita coisa havia acontecido e eu realmente mudei.

Mudei o curso, as emoções, as razões, as feições e as palavras, tentando encaixar tudo aonde deveria estar. Sete tentativas, sete passos para finalizar a escalada verdadeira.

Sete anos, desde a última vez que vi aquele homem.

Não era como se tivesse contando ou qualquer coisa assim, é só que ele ainda era tão vívido, como uma memória andante e fantasmagórica. O mundo mudou, e eu havia conhecido pessoas e me separado delas, sentido emoções tão diferentes e até tão intensas quanto as que ele me dera, também vira coisas tão belas que poderiam superar facilmente muitos dos seus encantos.

As vezes eu via alguém que se assemelhava a ele, mas então pensava comigo mesmo que era provável (muito provável) que ele sequer voltasse.

Quero dizer, por que deveria? Tudo o que ele sempre quis estava lá, nas suas mãos. Nos seus movimentos livres, suas ideias que alçavam vôo tão depressa que voltar para o ninho seria impensável. Ele mesmo me dissera isso, nas primeiras e únicas cartas que me enviara.

As vezes eu tentava desenhar seu provável rosto envelhecido, imaginar sua voz maturada, ou como poderia ter se feito a metamorfose de seus pensamentos e ações, então só o que me vinha a cabeça é que ele nunca mudava. Nunca. Não importava para onde tivesse ido, que coisas tivesse feito ou com quem estivesse envolvido, ele era apenas assim. Engraçado que era ele quem me dizia que eu não mudava nada, mas quem sabe é assim mesmo que funcione para todos que se conhecem tempo de mais.

Não é que não pudéssemos ver a mudança, mas na figura por inteiro, os detalhes que realmente importam geralmente permanece igual.

Eu me perguntava se, mesmo que sequer nos reconhecêssemos mais, que o tempo houvesse apagado o nosso brilho, se um dia, eu o veria ainda com todo seu azul queimando ao redor, rodeando a todos de sorrisos e então, virando-se para trás e me vendo, que tipo de expressão ele faria.

Ele sorriria ainda aquele mesmo sorriso? E o que eu diria? Se eu diria algo ou nada, se haveria cordialidade e apenas ela.

As vezes eu me via pensando naquilo, mas não era algo que gostava, na verdade chegava a me repreender.

O passado deveria ficar no passado e cada um de nós estava aonde deveria estar. Aqueles pensamentos realmente não importavam. Logo eu voltava a encarar a tela em branco e me focava aonde mais deveria focar.

Então todos os dias seguiriam daquela forma, caminhando apressadamente para dar lugar a outro, mal parando para conversar sobre o que havia passado, para pensar ou regressar. Viam-se sempre as mesmas caras, os mesmos móveis, as vozes que falavam a mesma coisa, a comida que parecia ter o mesmo gosto, as mesmas músicas, mesmas danças, até mesmo eu estava me repetindo, dizendo coisas que hoje soam meio absurdas pra mim, agindo casualmente como se fosse alguém completamente diferente. Como uma marionete perdida de seu dono.

Perdido de mim mesmo. Sim, eu ainda estava a deriva, ainda pensava em coisas que já não existiam e dizia pra mim mesmo que não significava nada, pois todos tendem a ser nostálgicos, falando repetidamente do que já foram, já tiveram.

Pensar em outros tempos não era a prova de que não era feliz.

Olhar prédios familiares e associá-los a certos momentos, lembrar de uma frase outrora muito dita, dizê-la em voz baixa ou sorrir ao se dar conta que não é a mesma coisa... Isso não significava mais que somente recordar.

Mesmo se um dia eu retornasse aquela varanda, apenas pela luz do sol, pelos cantos quentes que ela costumava iluminar... isso não significava que eu estivesse esperando os braços que se estiravam sobre ela. Mesmo que eu repetisse aquele trajeto, sem mudá-lo em nada, apenas para recobrar a mania de sempre fitar os mesmos prédios para dizer sempre as mesmas... enfim. Eram apenas memórias se alimentando de nostalgia. Mesmo que... uma vez, dizendo aquele nome em sussurro, quase mudo, e assustado eu me desse conta que não havia ninguém para respondê-lo, nada mais que uma brisa passageira assoviando, brincando com minha mente.

Fazer tal coisa já seria masoquismo. Esperar algo do que nunca voltará, eu odiava a ideia, da significância daquilo, muito mais do que os atos.

Era fato que ele nunca voltaria, não importava quantos invernos passassem, quantas personificações mais se fariam na minha cabeça... Então, em meio a neblina, o fato se tornou dúvida. E cada pergunta se concretizou tão mortal quanto um fantasma desenterrado diretamente do tumulo. No início daquele sétimo inverno, a brisa trouxe algo mais que enganações.

Virei-me, dei de costas e andei o mais rápido que pude.

Naqueles cinco segundos, foi só o que consegui pensar em fazer. Estava apavorado, nunca imaginaria que aquilo pudesse de fato acontecer, jamais poderia encará-lo. Jamais.

Fugir sem dizer nada era minha especialidade de qualquer maneira, ele nem sequer saberia que eu ainda existia, se eu tivesse sido mais rápido. Mas é... ele me pegou. Quero dizer, literalmente me pegou.

"Jony", perguntou, para se certificar de que era eu. E eu respondi, não tão surpreso quanto devia talvez, com a cabeça em chamas a procura de uma fuga mais sutil. Por quê?! Por quê...? O que diabos estava acontecendo?

Puta merda, não podia ser ele, pensava, mesmo olhando fixamente, perplexo enfim dando-me conta do que exatamente estava acontecendo.

Depois de todo aquele tempo, depois de tudo... O que diabos.

É óbvio que eu não podia acreditar tão facilmente assim. Fitei aquele rosto um tanto mais gordinho do que antes, mais idiota talvez... mas ainda tão... o mesmo. Não era um fantasma. Era mesmo ele.

Diante de mim, tão estupefato que imaginei que tivesse se magoado por eu ter fingido que não o vira, mas sério... ele sequer percebeu.

Era o breve silêncio da contemplação, da alegria interna radiante implodindo naquele peito saltitante, e uma gama de palavras se amontoando ali dentro procurando a maneira cera de sair. E quando o silêncio acabou, Patrick só saiu largando as malas na calçada e pulou simples e leve no meu pescoço, quase nos fazendo cair em uma poça de lama.

De repente, era como se nada tivesse mudado e aquela cena tivesse saído diretamente dos meus sonhos.

O cheiro dele, sua textura, na mais realística de suas personificações. Lá estava ele... aquele sorriso imóvel e eterno. Tão inconveniente e imortal entre os anos.

Então, ele apenas sorriria e me abraçaria, extasiado e saltitante, tagarela como se quisesse contar todos os causos do mundo, o mesmo Patrick, em carne e osso, estava bem ali, como se nunca tivesse ido.

Nos meus braços, eu queria saber o porquê, se o sonho se tornara realidade ou o contrário. "Por quê?", repeti, segurando seus ombros para fitar fundo naqueles olhos aterrorizantes. E só o que fez foi rir. Apertando seus dedos no meu pescoço, e respondendo simplesmente com mais uma de suas loucuras.

__Voltei por você, senti a sua falta.

Com clara surpresa fitei aquele rosto sorridente. Analisei, reanalisei. Claro, claro.

Bem... sim, óbvio que era mentira.

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