PARTE I - 1. Rosas

***


Quando eu nasci, diziam que minha mãe havia desejado que todos os seus filhos não se parecessem com ela.

Pode parecer narcisista, como se ela sentisse que nem todos poderiam lidar com a aparência que tinha e a imagem que espelhava, porém infelizmente, ou felizmente, minha irmã e eu viemos ao mundo tão adoráveis quanto os anseios de minha mãe. Seus medos eram de fatos fundados, mas ainda crianças, mesmo com toda a atenção que recebíamos, crescemos com dotes que acabaram se sobressaindo a nossos rostos.

Com quatro anos eu já tinha certa noção da nossa semelhança. Nós três éramos ruivos, pálidos e esguios, o que se não fosse tão belamente monocromático seria assustador.

 Para quebrar a sutileza havia havia meu pai. Tão alto, um tanto rude, alguns diriam, tão moreno e quieto. 

Nas pequenas coisas, minha irmã era exatamente como ele; ruía as unhas, falava baixo, quase murmurando e seu olhar era sempre sem medo ou hesitação. Acredito que teria crescido como ele, não teria mudado nada.

Meus pais se conheceram na praia, num dia e momento qualquer. Ele esticou o braço quando a viu tropeçar, seus olhos se esbarraram, o silêncio se instalou. Simplesmente aconteceu. Algo belo e comum, como todas as coisas no mundo deveriam ser.

 Ela gostava de caminhar, ele de ler, ela de falar e cantar, ele de dormir e tocar piano.

 Quando o natal chegava, nós todos nos reuníamos ao redor no piano, para sentar, conversar, cantar, rir só por rir. Ás vezes sentávamos na frente de casa, víamos os fogos ou somente a neve cair, e não importava mais nada, aquele momento era tudo. Quando fiz sete anos ele me ensinou a tocar, eu ganhei uma competição na escola, então minha mãe quis fazer algo diferente para comemorar. Ela perguntou-me o que eu queria, como quase nunca saíamos da cidade, eu disse que queria ir a praia. Nós todos fomos à Coven no final do inverno.

Não durou mais que quatro horas para chegarmos, e como não iriamos ficar muito tempo decidimos ir direto para o mar, sem parar em nenhum hotel, mesmo que já anoitecesse. Todos estavam entusiasmados para fazer uma fogueira, comprar fogos de artifício e armar uma barraca, quem sabe. Entretanto, uma chuva repentina chegou e tivemos que mudar o curso.

 Com a estrada escorregadia e escura, meu pai acabou se confundindo com as ruas, afinal fazia muito tempo desde que estivera ali pela última vez. Nós andamos em círculos por algum tempo, minha mãe cansada e irritada apressa meu pai, eles discutem. Minha irmã acorda, assustada começa a chorar incessantemente. 

Eu olho para o lado e vejo a estrada se iluminando; nós chegávamos na ponte de Coven. Meu pai liga o limpador, minha mãe vira-se para ver minha irmã, eu viro-me e olho o rosto de meu pai, ele me fita pelo retrovisor e sorri. 

Os lábios fechados, os olhos espremidos pelas bochechas erguidas. Uma luz rápida e ofuscante atravessa a cena, eu já não vejo olhos azuis, eles são engolidos pela escuridão. Foi a última vez que vi aquele sorriso tímido e acolhedor, ou qualquer um que se assemelhasse à ele.

Viro-me, estou no chão. Tudo brilha como se uma bola de fogo se aproximasse da Terra. Está quente e quase não vejo as estrelas, mas ouço, ouço perfeitamente a voz de minha mãe, e sinto, minha garganta queimando. Estou sufocando em fumaça.

"Pare de tentar ser outra pessoa." Ele me disse.

Não que eu tivesse dado o menor valor pra qualquer coisa que ele dizia. Porque não eram suas palavras que me interessavam, era seu corpo. Suas expressões, suas mínimas reações.

Eu gostava de vê-lo lidar com as dificuldades, com a dor, a euforia.

Ele era uma criança simples. Bem, e eu era... estranho, não é como se não o fosse ainda. Mas naquela época eu não era o único que pensava isso. Eu vivia no meu quarto e mal percebia o tempo passar. E céus, o tempo passava muito depressa.

Tudo sempre acontecia rápido demais... Nós éramos amigos que não pareciam amigos. Não, nós nunca fomos amigos.

No fundo, eu só... queria estar sozinho. Me arrependia de tê-lo deixado entrar na "linha". Na linha apenas eu entrava, desde muito tempo. Ninguém queria estar com alguém tão sombrio, então eu o olhava estarrecido; o que diabos você quer? Eu não tinha nada a oferecer, nada a compartilhar. Mas ele grudara no meu calcanhar como um parasita, rindo de tudo, sem se importar com porra nenhuma. É claro, eu cheguei a conclusão de que ele era apenas um idiota.

Estava tudo bem ali, na verdade. Ele era um cachorro que se apegara a alguém que lhe dera atenção e não mudava nada particularmente na minha vida. Era interessante de observar, mesmo que eu não soubesse dizer com exatidão o que me interessava nele.

Parecia a princípio tão clado, mas quando conversávamos era ele quem falava sem parar, sobre qualquer coisa, menos de si mesmo. Nunca perguntava nada, o que não significava que não quisesse saber, Patrick era atencioso demais para fazer algo que achava que iria me importunar.

Nós estávamos bem assim. Até ele ir embora. 

*
*
*

Nada acaba só porque você deseja esquecer, e mesmo que esqueça, ainda haverá um outro lado, que não se pode forçar a desaparecer, se um dia existiu fora ou dentro de você. Meus olhos que nunca estiveram fechados, podem facilmente contar tudo o que aconteceu.

Não começou com um verão, foi o mais cruel inverno em anos.

Lembro de ver uma grande lista branca se estendendo no horizonte como se rodeasse o mundo.

A neve caía e eu era tão jovem... e sem mãos firmes para apertar-me nos braços, com os olhos confusos diante do mundo e uma paisagem ainda incapaz de clarear-se. Aquele era o dia em que eu deveria me despedir de alguém que mal conhecia, e chorar lágrimas que não parecia ter significados para uma criança de 5 anos.

Charlie foi o primeiro a enxergar-me, como se não houvesse uma multidão ali... Como se eu fosse um cachorrinho encolhido no canto do quarto, um serzinho de dar dó. Eu não conhecia aquelas pessoas e elas estranhamente também não pareciam me conhecer.

Mesmo entrando em casa, tudo estava tão diferente. Havia um espaço na sala e um caixão marrom estirado ali, imagine... Eu nunca havia estado tão perto de um caixão, e não estive desde este dia. Não sabia o que pensar ou como agir. "É o seu pai", era o que diziam. Esperando, e esperando. Nunca entendi bem o que.. Esperavam.

Menos Charlie.

Ele apenas me olhava, um olhar cansado, vítreo atrás dos óculos redondos, tão analítico como um proletariado a espera do tempo de serviço se esvair. Naquele momento, eu era o seu serviço.

Os últimos dias se mastigaram com a neve, o verão parecia velar meu luto e não aparecera em meses naquela pequena cidade.

O apartamento dele se tornou meu novo lar, eventualmente. A casa de Froster era passado, passado triste e enterrado na neve.

Nossa convivência era silenciosa. Mesmo que eu não seja uma pessoa tão calada, viver com ele era questão de saber dividir e saber calar-se.

Passava ainda muito tempo pensando em meus pais. Charlie falara pouco deles, e eu mesmo não perguntava. A questão era que, mesmo que ambos soubessem que não falar neles não acabaria bem, as perguntas ainda permaneceram abertas, como se já não ligássemos, ou nunca tivéssemos realmente pensado naquilo, e simplesmente deixamos a ventania entrar. Então, num dia corrido de inverno, elas foram fechadas.

__ Sua mãe ainda estava no hospital quando seu pai..__ Suspirou, aquele olhar pragmático, retirando os óculos, porém sem fitar-me nos olhos__ Não restou-lhe muito tempo. A doença acometeu os dois.

Foi o fim de nossas perguntas, e as conversas se resumiram a brevidade habitual.

Um ano se arrastou e Coven ganhou cor.

...Era Verão enfim, de repente.

A última semana parecia a primeira, as rosas não ganhavam cor mesmo que se renovasse a água todos os dias.

Acordava com os dedos tão gelados que a pele já tão alva parecia esverdear. Era só mais um dia, repeti novamente aquela manhã. Olho os olhos no espelho e as olheiras, como de costume, não se destacavam, mesmo que, como de sempre, não tivesse conseguido um segundo de sono. Era um ano de mudanças, e mesmo com o fim da neve, Charlie tinha muitos cabelos brancos. A branquidão estigmatizara nossos dias pra eternidade, pensava, infantilmente.

Daquela vez foi o primeiro dia de aula, uma nova escola, um novo começo.. Supostamente. Onde finalmente podia fingir que estava caminhando nos mesmos dias que aquelas pessoas, mas afinal, parecia uma completa auto enganação.

Neste dia conheci Margaret. Continuei pensando nas rosas e nos vasos, nos cabelos cacheados de Margaret, nas mulheres que colhem rosas nos campos, em Margaret colhendo as cartas e jornais naquela manhã, e pensei também nos pães assados que me oferecera, de alguma forma havia me esquecido completamente deles até a hora do intervalo.

Margaret era dois anos mais velha e sorria muito, brincava com meninos e alguns não gostavam disso. Eu não entendia. Ser amigável podia ser um problema também.. Dei de ombros.

Decidindo que ela era uma amiga e ela acabou decidindo também... Felizmente. Estávamos bem.

__ Eu gosto de assar pães, quer assar comigo lá em casa?_- Eu não sabia cozinhar, claro, mas ela sorriu e apertou minhas bochechas e eu gostei.

Fomos pra casa dela, e nos sujamos tanto de farinha que brincamos de fantasmas após comer.

Havia muito tempo que não sorria tanto, era a verdade.

Charlie franziu o cenho ao me ver chegar com os cabelos quase tão brancos quanto os seus, entretanto apenas jogou um olhar reprovador de sua escrivaninha. Sabia que eu iria limpar, era um bom garoto.

Ali, no calor de nosso dia a dia, a neve ainda não adentrava, sequer se escondia na calhas do telhado, pois tudo era quente e luminoso, como as memórias devem ser. Mas a verdade é que não durou muito tempo, assim como as estações, os sentimentos se dissipam no tempo. E se transformam em raízes, ou apenas poeira.

Então, tudo se tornou correria, apenas a correria dos dias, dos passos e a rapidez desgastante dos pensamentos. Apenas caminhei por aquelas ruas sem notar o tempo escorrer pelas calhas das casas, sem olhar para frente. Tudo estava repetindo-se? Talvez o tempo tivesse parado. Talvez eu estivesse atravessando pelos dias..

Margaret mudara-se, foi isso que ocorreu. E..

Eu corri. Corri de tantas formas e com tanta força, e mesmo assim, eles sempre me alcançam. Só sei que poucas vezes suei tanto quanto naquelas semanas.

Os corredores não eram reais, o céu mesmo não parecia maior do que a palma de minha mão. Eu me cansava de andar, escorando minhas costas na parede, o fôlego perdido, o ombro machucado da surra anterior, as palavras de alguém me sobressaltam e um tapa surge de algum lugar.

Não via nada. As calhas parecem longe e minhas costas escorrem no asfalto, o baque surdo me faz arfar como uma grande queda.

Nunca fui uma criança forte, dá pra se notar...

Não vale a pena mencionar nomes. Afinal, o que são crianças cruéis perto de todos os adultos cruéis? É ingênuo, mas isso me salvou um pouco dos rancores.

Claro, talvez eles tenham se tornado adultos cruéis, mas isso eu já não sei.

Só sei que, voltei ainda mais tarde pra casa aquela noite, e senti falta dos pães de Margaret.

Vendo meu estado ao chegar, Charlie me arrastou pro hospital, e as perguntas choveram como um torrencial. Não havia muito a dizer e ele se calou, tão insatisfeito quanto eu.

Sentado na cama branca, ergui o pescoço e encarei meu outro eu embaçado no vidro da janela, sim, aquela janela. Deveria odiá-la? Não soube dizer. Não soube dizer coisa alguma. O que posso dizer é que, aquele Patrick não viu apenas seu semblante triste ou magoado com seu trágico destino, aquele jovem Patrick viu também o cansaço. Um cansaço maduro demais.

Então, ele simplesmente virou-se e andou. O mundo encolheu.

Charlie estava gentil aquela noite. Mas eu... nem tanto. Havia um jantar apetitoso e eu mal o toquei, havia o café apetitoso, e eu prefiro a cama e tranquei-me no quarto.

Meu tio não era do tipo de insistir, e não mudaria tão rapidamente. Não esperei que insistisse, não esperei.. Nada. Apenas encarei a janela do meu quarto, ainda curioso com o que aquele Patrick refletia, esperando soluções, ou as descartando mal humorado.

Aquele pão não parecia mais tão inóspito no final daquela tarde, me pegava pensando nele de uma maneira tão obsessiva como já não sabia pensar. Eu andava cambaleante de fome, recobrando, junto do apetite, do que exatamente fazia naquela tarde, e era estranho lembrar daquela manhã, mas sentir como se o mundo tivesse apagado todo o restante. Não, foi apenas eu quem apaguei.

Adormeci e devo ter acordado na metade do dia.

Sem resultados, sem soluções, mas.. Estranhamente disposto, talvez idiotamente disposto.

Charlie me olhou surpreso aquele café e como eu, esperava por um bom dia. Devorei cada pedaço de pão como se a energia infiltrasse imediatamente em minhas veias.

O sono me inflou de coragem infantil, e lá estava eu, ansioso e medroso, a aula passando diante de meus olhos como uma eternidade... A tarde chegou como um soco e lá estava eu, os braços junto ao corpo, os pés trêmulos, de frente àquela gangue juvenil.

"Se eu puder dar um soco..", pensei, e enquanto pensava, um soco atravessou minha visão.

A história se repetia, e o céu girou, parando o tempo e acelerando como um paradoxo.

Eu me senti como o próprio paradoxo.

E foi no fim daquela tarde que eu o conheci.

Entre minha franja suada e melada de terra e chuva, vislumbrei o que seria sua silhueta, as costas firmes se posicionando defensivamente a minha frente.

Rosas. Rosas escarlates como seus cabelos, ou os cabelos seriam como as rosas? Os olhos. Intensos como se penetrassem a alma, mas de uma forma estranha que não se pode desviar. Eles ainda seriam os mesmos? Anos? Não, séculos depois? Mesmo que a juventude esvaísse-se lentamente e as rosas todas morressem no inverno, ele seria capaz de regressar a si mesmo, caminhar no tempo, voltar para onde esqueceu seus pincéis e chapéus antigos? Aquela alma que parecia reluzir verde através das suas vidraças, era ainda incapaz de olhar-se no espelho. Ver-se realmente, sem medo de todas as cicatrizes.

Quando eu o conheci, ele parecia longe de qualquer medo. Indiferente à golpes, indiferente á chuva forte ou à magreza de suas feições.

Ele me salvara. Sem hesitações, sem razões.. E eu não podia deixar de olhá-lo. E o quanto vermelho reluzia num fim de tarde.

O céu alaranjava-se e aqueles garotos corriam como se ele fosse um cachorro louco, solto, mesmo mal tendo derrubado um deles.

Covardes. Assim como eu.. Mas ele estava do meu lado e era o suficiente para me vangloriar.

Fitamo-nos quietos. Seus olhos intensos e meus olhos cansados de jovem-velho, não houve palavras só seus lábios arfando, o fôlego de um doente, lembro de pensar, no instante em que ele ergueu sua mão, me ajudando a sair daquela poça de sangue e lama.

Estava coberto de cicatrizes e furos de agulha.

Parecia indelicado olhar, claro, mas crianças são indelicadas.

Também haviam perguntas indelicadas na ponta da minha língua, mas felizmente, meu estômago me matava demais para conseguir falar qualquer coisa. Doía como o inferno.

*
*
*
Mrs. Stacy aparecia algumas vezes por semana para fazer faxina.

Era uma mulher de cabelos grisalhos e fala rápida demais. Todas as vezes em que me via brincando no quarto perguntava sobre meus amigos.

Havia muitos livros em casa, sempre, e desde que aprendi a ler, me lembro de passar muito tempo com eles, então se tivesse que encaixar no conceito de amigo.. Seriam eles. De uma forma vagamente madura demais. O único ponto maduro da minha mente infantil, diria.

Amigo.

Mas é verdade que, naquela época nunca tinha parado pra pensar no significado de "amigo" mais comumente associado. Ou pensar em ter alguém para chamar assim.

Mesmo para uma criança, era normal pra mim estar sozinho. Na escola, eu era um estranho e em casa o silêncio era uma regra não dita. Então, pensar em ter alguém para chamar de amigo parecia.. distante. 

A primeira vez que percebi isso foi com Margaret, e de alguma forma na nossa curta e despojada relação, houve uma amizade. Minha primeira amizade.

A segunda vez que o pensamento se desenhou foi com Jony.

Amigos... Mesmo depois daquele dia, e repito que não trocamos grandes palavras, ele permaneceu na minha mente. Não, não como um "amigo", mas... Um herói. Se me permite o clichê.

Só o vi semanas depois daquele dia, e a princípio, pensei que não havia me reconhecido. Não foi uma situação tão cinematográfica. Estava sozinho no corredor, e ele simplesmente passou. Tão vermelho e intenso, tão notável, um rubro como se seus passos pudessem incendiar a qualquer momento. E era sério. Muito sério. Seus olhos eram grandes, mas seus lábios uma eterna linha reta.

E quando ele passou.. Eu soube, Jony é aquele tipo de pessoa, sempre foi. As pessoas não podem deixar de olhar, é impossível, tão hipnotizante. Garotas e garotos, era um misto de, querer tê-lo e quer sê-lo. E ele conseguia simplesmente.. ignorar a todos. Como se aqueles olhares não significassem nada.

Ele parou em frente ao armário e percebi que procurava algo. Estava chovendo e todos pegavam seus guarda-chuvas. Jony parecia frustrado e notei que lembrou-se que não levara o seu aquele dia.

Naquele tempo em que .. Bem, desde que ele me salvou, foi tempo suficiente pra recolher alguns boatos úteis sobre ele; morava numa grande mansão a moda antiga e que ele ficava maior parte do tempo com empregados. Uma criança solitária, sem pais, assim como eu. De alguma forma.

Havia uma empregada em específico, Tânia, que estava sempre ao seu lado e praticamente todos os alunos a conheciam, Menos eu... Até aquele dia.

Tânia não esqueceria seu guarda-chuva, e em um momento ela surgiria para buscá-lo. 

Mas quem diria que, o pequeno Patrick se aproximou e ofereceu seu guarda-chuva antes disso? Estava numa sequência inspirada de coragem. Só sei que, não hesitei em me aproximar daquela vez, algo na figura frágil e silenciosa daquele garoto me fazia querer me aproximar.

No fim, lá estava eu, oferecendo meu pequeno e único guarda-chuva estampado, com pequenas mãos firmes e um leve arfar pela curta corrida no corredor; e lá estava Jony, apenas.. ali.

Enquanto olhava minha mão estendida, o cenho franzido e aquela interrogação azul pairando em sua cabeça, me peguei agradecendo-o pelo que me fez naquela tarde, e confesso que talvez tenha sido um pouco.. intenso demais? Sim, ele me salvou e como disse, ele era um herói, de alguma forma. Porém verbalizar isso, engolindo em seco entre seu olhar surpreso e minha própria excitação.. É o tipo de coragem que só a juventude pode nos proporcionar.

__ Eu não sou.. nada disso, não sou um herói__ Após alguns segundos de olhos arregalados, seus lábios me cuspiram, talvez ríspido demais. Contento um "você é estranho" entrelinhas. Ou nem tão entrelinhas assim.

.... E saiu, apertando a mão da mulher que virava-se um tanto aturdida para me olhar, claramente sem estar a par de todo contexto da conversa. 

E óbvio, recusando minha ajuda completamente. Não havia mágoa, era o simples afastamento, não quero ter nada a ver com você, entenda. 

Existem pessoas assim. Jony foi apenas meu primeiro contato. E eu viria a entender isso melhor, felizmente.

Tânia era o tipo de mulher intimidadora mesmo sem dizer uma palavra. O rosto forte e cabelos impecáveis, uma rigidez que contrastava com seu ar jovem. Claro que eu a via como uma velha, porém, vi poucas pessoas aparentarem tamanha juventude em sua idade.

Talvez era preciso de tal força juvenil para proteger alguém como Jony. 

No caminho de casa passei pelo beco de sempre, e fazia dias que nenhum daqueles delinquentes recobrara qualquer ressentimento por mim, não me passou pela cabeça que poderiam ter direcionado à Jony, mas poderia ser um bom palpite. Mas não ocorreu, a verdade é que depois daquilo, não tínhamos nenhuma razão para manter qualquer tipo de .. relação. Não tínhamos nada em comum, e ele deixara em claros sinais o quanto preferia a distância.

Não me considerei uma pessoa insistente até chegar a adolescência, onde todos acabamos indo para algum extremo. Era um extremo em vários sentidos.. Mas o que diria da infância? Eu fora insistente em procurá-lo uma segunda vez? Encarava o óculos torto de Jony a subir as escadas me perguntando isso.

Não, eu não era esse tipo de criança. Apenas observar.. Eu queria apenas observar. E o acaso estava a nosso lado como nutrientes propícios a uma planta recente.

Amigo... Por que eu tinha a impressão fixa que ele precisava de um amigo? 

Olhei para seus braços, as cicatrizes estavam cobertas dessa vez, ainda assim, parecia exausto, cansado demais para se importar com, novamente, aquela criança estranha lhe oferecendo ajuda. Não falei uma palavra, o vi tropeçar no último degrau, tonto, talvez por remédios, talvez o mero esforço de subir degraus turvara a visão que já não era das melhores.. Sua pasta dançou no chão e chegou aos pés. 

Inclinei-me, simplesmente, e sorri. Um sorriso tão amigável que assustaria até a mim mesmo.

Não o havia perseguido, mas é claro que ele não tinha como saber. 

Jony me lançou o olhar mais acusador que já recebera. Lembro o quanto me impactou. Mas.. o que podia fazer? Vi-o ainda assim, agradecer pela pasta, puxando da minha mão e sair a passos apressados. 

Talvez o destino estivesse sendo um tanto cruel.

Bem, não que estivesse em minha mente qualquer coisa complicada assim. Voltei pra sala, e devo ter fincado o pensamento de dizer-lhe abertamente que não o perseguira, mas bem, como fazê-lo? Afinal, para isso, precisava falar com ele.

Não tão inteligentemente, pensei em ir a seu encontro após a aula, roendo as unhas, e acabando por não ir. Felizmente. Então decidir-me por um bilhete. Era simples; chegar em sua mesa e colocar o papel embaixo do livro.

... Porém, é claro, nunca é simples, e é claro, que ele me viu.

Não me lembro das palavras certas, mas devo ter gaguejado, digo, muito. Não era a pessoa mais comunicativa, vale lembrar.

... E ele ficou ali, me olhando, o cenho franzido. Esperando e... esperando. Com seus olhos grandes que me davam a sensação de ansiar que me calasse e ouvir o que dizia na mesma sintonia.

__ Me entregue.__ Me disse, simplesmente, interrompendo meu embaraço de palavras e nervosismo__ O bilhete.

.. Bem, felizmente, ele havia visto o papel em minhas mãos, e não achou que estivesse fazendo algo estranho. Mais estranho ainda.

Após ler, num silêncio mortificador, sua expressão era pura neutralidade. Acreditou em mim? Não soube, e não ousei perguntar.

 Mas logo saberia, pela forma como pegou a mochila e disse que iria dar uma volta no parque, olhando pra mim, "Não esqueça sua mochila" murmurava, e eu pegava a minha, distraído, quase a esquecendo realmente.

Então saiu, me pedindo pra fechar a porta antes de sair. Realmente fomos ao parque e .. Conversamos.

Não entendi o que houve, não até algum tempo depois, o que pode tê-lo convencido do que exatamente eu queria.. Sendo que, eu mesmo não entenderia. Amigo.. O que eu poderia saber sobre ter um amigo? Ou escolher um? Havia tamanha prepotência naquele pequeno Patrick que o escolheu entre tantos simplesmente porque achou que, assim como eu, ele precisava de um amigo.

Mas quem sabe, o que eu saberia? Ele não estava errado em manter aquela muralha.

Então, quem saberia.. Quais as verdadeiras razões para abaixá-la..? Até que ponto minhas palavras foram a razão de tê-lo convencido, e até que ponto ele se permitiu se convencer.

*

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