8. Conversa No Mar
Quando você se dá conta que está envelhecendo?
Às vezes, perder uma paixão com o desgastar da rotina, outras perder objetos com frequência, outras perder alguém muito mais velho, como uma mobília de família. Perder.
Basicamente; viver é saber perder.
O que me questionava era se estava perdendo a mim mesmo na mesma frequência. Como se mede algo assim? Nessas horas um conselho de Jony me fazia falta. Mas eu estava sozinho.
Apertando os dedos gélidos de Charlie, encarava a própria fragilidade de um tempo corrido. Tudo o que vivemos se diminuía numa fracção de segundos. Seria eu um bom sobrinho? Teria ele razões pra se preocupar com minha frequente solidão?
Arrastando-me de bar em bar, deixando quartos sujos por semanas, esquecendo os sapatos encardidos na sacada, esquecendo-me na neblina da noite, após Mercedes retornar a Paris, foi minha rotina vergonhosa constante.
Quando não estava perdendo-me no tempo, de meus amigos e amores, na edição do meu primeiro livro, estava simplesmente perdendo a noção de vida.
Quando a morte cerceia, você se sente um pouco parte dela, mesmo que ela não esteja exatamente a procura de você.
Apegava-me a um prazer transitório com carência antecipada. Em outros momentos afogava os lamentos, pensando em como gostaria de ter apertado mais aquelas mãos, questionado mais firmemente as dúvidas que nos fazem melhores.
"Fui tão bom o quanto você gostaria?", "Fomos bons um pro outro?". Expirava dia e noite, vageando em minha mente e nos corredores de hospital.
Caindo num acento acolchoado, murmuradando uma desistência breve; "Não aguento mais." Resmungava e praguejava, já sentindo a exaustão me bater com a força de um golpe firme e constante, apertando as têmporas, vendo o mundo girar na minha frente como se eu fosse implodir.
Nessas horas Kieran me fitava, complacente, forjando uma amizade melancólica que agradeceria depois. Me pediu para tirar uns dias de folga, o que é claro, eu acabaria gastando no quarto de hospital, ou trancafiado naquele apartamento vazio; relendo cartas amassadas de semanas atrás, ou matutando minha depressão enquanto mordia a ponta descascada da caneta.
Dividido entre mentir uma tristeza miserável ou inventar um momento de descanso impossível... Simplesmente impossível.
O que restou-me ainda, uma última e terceira opção, o que foi o único ponto de cor nos dias de tela branca, a velha mansão Scaler.
Sem sequer precisar correr pelos corredores, as energias ali eram sempre... Leves e infantis. Imortalizadas não apenas nos quadros na parede, as escadas infinitas e o cheiro de eterno descobrimento. A principal razão era Tânia, claro, e toda sua paciência infinita.
Com a desculpa de que ela poderia se sentir sozinha naquele casarão, me infiltrei perfeitamente, passando a me acomodar como um intruso no ninho.
Como esquecer a forma que me observava, o sorriso simples em sua face amigável, se questionando:
__ "É para preencher a minha solidão ou a sua?". Ela não se importaria, de qualquer forma.
Era uma senhora que sabia mais do que falava, a admirava por isso. Havia um quê de Scaler em sua calmaria, me fazia querer ouvi-la.
Viciava nos seus chás de camomila e cantares elegantes, relembrando às vezes coisas bonitas que costumavam me encantar muito mais do que mero deslumbramento, descobertas entregues muitas vezes pelas mãos de seu pequeno Scaler.
"Você foi o primeiro amigo do Jovem Senhor. E esse lugar é tão seu quanto meu agora.", dizia bebericando em sua xícara iluminada.
Tânia sabia o que eu sentia a cada segundo, ela só não poderia saber o porquê ainda me entristecia tanto.
Não foi a partida de Jony, o processo se extendeu para além de um único momento. Após o verão e o inverno, as cartas curtas que mais pareciam recadinhos, me via novamente perdido no meu mundinho procurando um pedaço vívido de Jony, mesmo rabiscado nos lábios de outra pessoa.
Certa vez levantei-me na madrugada, espiando como um rato, imaginei que estaria sozinho, sem conseguir dormir, desci até a cozinha, lugar muitas vezes ocupado durante o dia. Encontrei Tânia sentada no meio da sala, vi entre seus dedos um quadro antigo.
Com ar de doce nostalgia, ela me contou um pouco sobre os pais de Jony, e o quanto eles eram amigos. Uma família feliz despedaçada num supetão. Já sabia de muito o que meu amigo havia perdido, o que não sabia era o tempo que ele passou sem sair do pesadelo pessoal.
Me soava familiar, a imagem de ser soterrado nos próprios demônios, até você adquirir a coragem súbita para afoga-los. Para então vê-los ressurgir com novas vestes, cores sutis, camuflando a mortalidade de suas garras. Tateava o rosto fino e infantil através do vidro do retrato, e de alguma forma, Jony me mostrou mais uma vez o caminho.
Não importa o quanto você se encolha, não há como fugir do sofrimento. Afastar os pés não torna o mar menos cheio, as ondas vão chegar até você, uma hora ou outra.
Lacrimejando perguntei-lhe num impulso: "Posso ficar?", sem deixar de me hipnotizar com a poesia daquela tristeza cravada no tempo.
Depois perguntei-me brevemente porque aquela foto me comoveu tanto. Desenterrando os amores de adolescente pela velha máquina fotográfica, adicionei mais um retrato a uma coleção exclusiva. Jony nunca foi de tirar fotos, de qualquer forma. Num futuro e num presente, sua imagem em minha mente jamais desbotaria, mas havia uma elegância em ter um pedaço de seu passado comigo.
Encontrei Thomas no final de semana, em meio a uma bebida, ele me convidou para a viagem breve que faria, antes de retornar a Rússia mais uma vez.
O destino estava a meu favor.
Meu amigo não era explícito com suas preocupações naqueles tempos, imaginava que era tão difícil falar sobre perdas quanto reencontros. Ele era ainda uma alma que associava liberdade a uma certa solidão, sem velhos parentes ou esposa, Thomas deveria ter o mínimo de interesse nas minhas melancolias, mas tinha empatia, ainda assim.
Viajamos de barco, mesmo ignorante sobre o mar e seus mistérios, todas suas cordas, velas e mastros, me vi feliz em segurar a mão de meu amigo e caminhar um pouco. Deixar o apartamento para trás, até a poeira baixar.
Mesmo receoso sobre Mrs Stacy gastar seus dias de folga com Charlie, entretanto ela, é claro, foi tão solicita, não demonstrou ao menos, a mínima relutância em dar-me aqueles dias para uma tentativa de respirar ar puro.
Poucas pessoas seriam tão bondosas, era uma alma doce.
De alguma forma pesquei, algo que parecia uma sardinha... Mas me dera um devido orgulho pessoal. A noite cantamos sob as estrelas, baladas sobre o luar e sereias, cânticos tão encantados como um teatro em alto mar (Thomas adorou a analogia).
No segundo dia ele sugeriu que ancorassemos numa estalagem, simples e pequena, mas aconchegante.
Bebemos tanto que devo ter vomitado o quarto inteiro.
De manhã fomos caminhar, visitar alguns amigos seus, onde contamos histórias, falamos do passado, coisa que raramente via-o fazer. Na verdade, nunca soube até então muito de sua infância, no máximo sabia que sua família era muito rica. Ali que se deu um dos momentos mais marcantes da nossa amizade.
Falei algo sobre mim e me empolgando no momento, havia tomado algumas doses de gin e esquecendo o decoro, pensei na infância e meus desejos de um dia poder viajar assim, como estava fazendo em sua companhia, então perguntei que tipo de criança Thomas fora, que tipo de vida levara, deixando a curiosidade me guiar.
Vi o clima ao seu redor mudar de cor como um céu tempestuoso. Tive a clara impressão que podia ser um assunto delicado, e confesso ter engolido em seco como um vinho barato na garganta.
Surpreendendo-me, ele apenas cruzou as pernas, mostrando um semblante distante, ergueu os olhos de um azul cinzento, que combinava bem com o claro tom de sua voz. Iniciou me contando que, quando criança, vivia numa cidade do interior com sua mãe e irmãos, ele era o filho mais velho então tinha que cuidar de todos, pois sua família era muito pobre e ainda por cima sua mãe era doente. Ele passava o dia todo trabalhando, trabalhava tanto que havia dias que o cansaço lhe impregnava tanto, que sequer sentia que estava vivo.
Felizmente logo ele saiu dali, pouco depois que sua mãe morreu, e ele finalmente conheceu seu pai. Era um homem rico, realmente rico, que o levou consigo para longe.
Depois de um riso fraco, simplesmente afagou meus cabelos e disse que não tinha mais nada a contar e que deveríamos subir.
Lembro de ter sentado um pouco em minha cama, como me acostumara a fazer nos fins de noite, e recuado num canto, com velhas bugigangas na maleta aberta. Devo ter ficado alguns minutos perdido em pensamentos, as velhas fotos enfileiradas no álbum me traziam uma calma e tristeza inexplicável. Tão concentrado fiquei que sequer percebi Thomas sentar-se ao meu lado.
Num instante inclinou-se objetivo, observando bem as fotos que já conhecia dos tempos de Thorkshell, cuidadoso e curioso, me perguntou há quanto tempo mesmo eu conhecia Jony, e claro que me pegou de surpresa, podia me esquecer como Thomas era tão direto.
Falei sobre a escola, a briga e nossas cicatrizes semelhantes, e como era idiota, mas Jony fora mais do que um amigo, também uma inspiração, e que desde sempre, sua aura artística puxou a minha de dentro para vida a fora.
Depois de me ouvir falar, sorriu-me com seu olhar abrangente, de quem obviamente já havia notado a distância que se fez entre mim e Jony nos últimos meses. Apertando o olhar, tão sereno quanto o jovem estudante que raramente parecia, me sussurrou:
__ Se você sente falta de alguém, não pode deixá-lo ir tão facilmente. É o que penso, mas você, Patrick, parece ter se habituado as pessoas entrarem e saírem da sua vida como um porto mediterrâneo. Persista, meu amigo.
Vendo meu rosto confuso, relutante, e estupido, ainda completou, pouco antes de dormir. Quem você procura agora é Jony Scaler, insista. Você é bom nisso. Direto e misterioso, com um aperto em meu ombro, me deixando tão pensativo, e quase enraivecido, o que na hora não saberia identificar bem o porquê.
Não é como se eu já não pensasse em Jony, foi Thomas me dizer tão diretamente... Sabe? Que estava pensando nele que surpreendeu-me. É risível, porém ele fez parecer que era algo que não podia deixar passar, que ter Jony ali conosco era imprescindível. Mesmo que eles dois não tivessem a melhor afinidade. Devo ter rido, fingindo não ser mais emotivo do que sempre era.
Não era como se estivesse escondendo o motivo, mas não lhe dera mínima explicação do que acontecera, era verdade. Só o que disse foi algo sobre Jony ter pedido um tempo pra si, precisava de um ar, longe da confusão da cidade grande. Todo mundo precisa de espaço as vezes, e como achava que estávamos dependendo demais do outro e isso atrapalhava nossos desenvolvimentos individuais.
Não estava mentindo e isso de fato aconteceu, em partes. Contar meias verdades era uma especialidade de Thomas, devo ter aprendido consigo.
Omiti porém, sem grandes razões, como depois de um tempo simplesmente deixei de entendê-lo, ou como ele apenas cansou de tentar acompanhar-me; apesar de Jony nunca ter dito, eu sabia que ele sempre tentava me ajudar quando eu me sentia lerdo demais para segui-lo. Sabia que havia mais naquele afastamento do que nossas rasas diferenças.
Encarando o teto daquele quarto, repensando as cartas, as falas simples e todos os dias que passava acordado tentando não me rodear de questionamentos sobre a morte. Repensando em como Mercedes gostava de deixar copos sujos pelo chão, e eu agradecia sua ausência por isso. As simplicidades... Mesmo numa época crucial ainda era tão superficial.
Felizmente Thomas sentiria a verdade nas minhas palavras, e não faria mais perguntas que não eu não sabia ou não poderia responder.
Na nossa última noite de viagem, quase não falamos nada.
Estava absorto por tantas razões, incapaz de ser sincero com Jony naquelas cartas, remoendo, num roer de unhas, todas as palavras que ficaram subentendidas na nossa despedida... Ou o que quer que tenha sido aquilo. Enquanto lia um romance barato de esquina, voltando ao mesmo parágrafo cinco vezes, para então desistir e pôr alguma música.
Outras horas abria minha pasta, revisava um roteiro que descartaria, já parecia um arque inimigo, mordiscava a caneta, sem palavras a escorrer através dos dedos. Sem nada para transcrever que não parecesse extremamente pessoal.
Também senti como se tivesse forçado Thomas a falar de acontecimentos que tinha como desagradáveis, não parava de encará-lo, me perguntando se o havia deixado entristecido. Percebendo minhas encaradas indiscretas, Thomas deu-me seu melhor sorriso e disse que quando chegássemos, teria uma surpresa para mim. Não deixei-me levar por sua gentil tentativa de me tranquilizar, estava decidido a fazer algo para alegrá-lo.
Quando voltamos, mortos de cansaço, fomos direto para meu apartamento, onde ele ficou e dormiu até entardecer. Enquanto eu me dirigi para o hospital, deixando a ansiedade me tomar novamente num tiro rápido. Chegando lá, devo ter adormecido imediatamente, preocupando Mrs. Stacy, porém feliz, ao ver que meu tio havia melhorado, mesmo que minimamente.
Antes de voltar pra Rússia, o fiz prometer que que passaríamos o Ano Novo juntos, em um barco, se possível. Muito mais feliz do que eu imaginei, Thomas me abraçou em meio a confusão da estação, rindo das minhas dúvidas e preocupações, num último momento, entregou-me dois dos melhores conselhos que receberia aquele ano.
"Não relute em falar verdades a alguém como Mercedes. Vai apenas magoá-la, e se machucar com um ricochete."
"Não finja, não seja orgulhoso. Seja um pouco egoísta, Patrick Kennedy."
Com um tapa em meus ombros e expressão firme, me deixou ali, recheado de dúvidas, medos e... Entendimento. Ele soube que eu entendi, e recebi. O breve sussurro de coragem.
Poucos Dezembros me marcariam tanto.
Embalando meus humores numa valsa masoquista, me impedindo de ver a pintura como um todo.
Após acompanhar a melhora de Charlie, finalmente num suspiro profundo, houve um pouso.
E a coragem, emprestada de meu amigo, de mãos sutil e calor leve no pescoço, me abraçou gentilmente. Escrevi uma carta. Breve e simples. Dizendo a Jony... O que precisava ser dito. Okay, talvez não tudo, porém o suficiente. Ainda haviam barreiras, insignificantes, porém naquela época eu não saberia, que as palavras certas na dose incorreta, podem reviver a doença e matar a cura.
Naquela época, só o que sabia é que sentia falta do meu guia, quando o mundo parecia desabar.
Então poucos dias se passaram, Charlie estava fora de perigo, as noites pareciam mais curtas e minhas pernas menos bambas. Sem nenhuma rampa ou barreira, num domingo de dores nos pés e lábios rachados, me estirei na primeira poltrona. Na velha e felpuda poltrona de canto na mansão Scaler.
No silêncio escuro da noite, com uma pasta recheada de papéis e a gravata frouxa no pescoço, eu apenas adormeci. Os olhos cerrados já deixando o sono me domar.
Foi naquele domingo de lábios rachados que ressuscitei.
Em braços familiares, até o sono se perder tão intensamente, que você se questiona se está dormindo ou acordado.
__ Não durma sentado, suas costas irão ficar tortas como as de um corcunda. __ Acordei mole e lento, com aquela voz inconfundível reclamando da minha displicência habitual. O coração bateu forte, tão forte... Como se toda uma eternidade precisasse ser sanada em alguns segundos.
Mal dando tempo de retirar seu casaco, eu caí; sem pensar no mundo escurecendo, o bambear das pernas .. Só atravessei o corredor tão rápido, tropeçando, deslizei no carpete, tão desleixado... com certeza seria engraçado, e poderíamos ter rido disso, mas assim que apertei sua cintura com a intensidade de um grito interior... Tão focado, após pensar aquele tempo todo que não, não era uma saudade tão presente.
Naquele instante só tive a plena certeza, que aquela carta foi a decisão mais certeira que poderia tomar.
Então abracei Jony tão forte, tão forte... Como se estivesse absorvendo sua textura, um perfume familiar. Para nunca mais soltar.
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