9. Bifurcado

De repente, no início de uma madrugada silenciosa, sem avisos, ele estava ali; meio chocado, cambaleante, a voz tensa de quem não entendeu minha reação na mesma medida que pensa "ah, claro, eu entendi. Você pode me soltar agora." Com um rosto cansado me lembrando de como o vi pela última vez, ainda com bolsas embaixo dos olhos, cansado depois de uma viagem tão longa, entretanto ele não reclamou uma única vez.

Mas sabe, mesmo assim, não evitei de me sentir feliz. Me enchi de um contentamento, paradoxalmente melancólico. Pedi por aquela presença e ele atendeu. Que importavam diferenças e birras estranhas de um passado que parecia ilusório?

Após esperar que eu finalmente o soltasse, Jony subiu as escadas, ágil e felizmente disposto a falar sobre a viagem. Então nós falamos, e falamos, enquanto o ajudava a desfazer as malas, e depois preparar algo pra comer (a forma como remexia a geladeira, é óbvio o quanto estava faminto).

Até a garoa nos cobrir e nos pormos a sentar no chão da cozinha, estirados e sem sapatos, a mansão desértica, Tânia estava em seu dia de folga e toda aquela paisagem tão incomum de janelas fechadas e escadas silenciosas não poderia ser mais linda.

Dividimos um sanduíche simples , afogando em tantas emoções, sentei-me e não desviei o olhar de si. Tão próximo quanto possível, desejando fortemente que ele pudesse sentir aquela felicidade tal como eu, como se apenas pelo contato das nossas presenças pudesse dividir consigo todas as cores pintadas no arco-íris dentro da minha mente.

Bebemos um licor fraco e doce, e no primeiro segundo de silêncio, com as costas grudadas no azulejo, ergui meu queixo para cima, decidi que não questionaria mais do que ele expunha, deixando minha curiosidade bem guardada. Ainda que não pudesse deixar de pensar no quão raso fomos naquelas correspondências.

Entre a ansiedade e euforia, de alguma forma, não consegui. Via a seriedade de seu olhar, que tenaz refletia aquele silencioso conflito de si para si.

Estava do outro lado. Numa distância que petrificava entre os nós dos dedos, como perguntaria sobre suas dores intrincadas? Um ano não seria garantia de curar a todas. Sorri, ainda que Jony me questionasse porque eu parecia tão feliz. Quero dizer, ele estava ali porque pedi, ele retornara sem rodeios.

Ali do lado de fora, limitado a um mero telespectador, conflituoso e ignorante, sem saber de nada que Jony não me entregasse em palavras, e pela primeira vez, ele parecia ter percebido isso.

Afinal, ele sempre foi assim, não é? Jony nunca se importou em fazer aquele mistério. Não era do tipo que deixava escapar; sonhos, medos ou pessoas.

Até aquele dia, nós pensávamos não precisar mais de um único olhar para confirmar, "eu estou bem". Porém mesmo que não sorrisse muito, seus olhos... Vi além daquela lente transparente, ou pensei ter visto.

Então eu disse, sem pressa, sem correr e então esbarrar, querendo somente dividir, disse que precisava parar.

Precisava respirar sem temer perder ou deixar espaçar. Precisava que Jony soubesse.

__ Há não muito tempo, pensei que o teatro, meus livros e... A poesia, pensei que isso me bastava, tinha certeza que a vida seria completa quando você escolhe o caminho certo. Tinha certeza porque parecia óbvio. Mas a vida não é tão previsível, não é?__ Jony encarou-me, menos distante, ainda mais pálido, porém leve, como a brisa que cobria o mar.

__ Você não foi um adolescente do tipo com grandes planos. É normal que achasse que pequenos desejos implicam pequenos obstáculos.

__ Não mesmo. Porém, quando Charlie ficou doente, quando Mercedes viajou, por um momento senti que não tinha nada do que desejava, e você não estava aqui... __ Quando ele me encarou, naquele chão frio, entre o silêncio das escadas e o assovio da nossa respiração, eu compreendi as palavras de Thomas por completo. __ As pessoas são parte desse caminho. É tão idiota... ter enlouquecido ao perceber isso?

Como sempre, ele apenas me lançou aquele olhar descrente. Um clichê aconchegante.

Jony ouvia sem interromper, enquanto mordiscava um pão frio, atencioso e direto. Tão mais frágil do que eu, quase tão inquieto e carrancudo. Ri da sua expressão, o que ele logo me acompanhou. Terminei a taça de licor e agarrei meus joelhos, enquanto Jony já estava com a calça dobrada até o meio da canela, ali, nós estávamos tão verdadeiros que...

Nada parecia ter mudado, e tudo parecia valer a pena.

__ Eu também senti sua falta, Patch.__ Entregou-me, jogando sem pensar sobre meus dedos. E eu tateei aquelas palavras com afeto e ansiedade. Antes que eu pudesse tornar a conversa melosa novamente, completou __ Não tanto do seu romantismo excessivo.

Lembramos que estávamos exaustos, escorregando e escorregando...

Deitamo-nos. Antes de cair no sono, me veio um trecho, tão antigo quanto os rascunhos da adolescência, tão claro quanto os enigmas de um quadro na parede.

__Se você chorar, eu vou sorrir por você. Se você sorrir, vou sorrir com você.

Disse com uma confiança estúpida, mas era verdade.

Foi a coisa mais verdadeira que poderia ter-lhe dito.

Antes que pudesse dormir, ouvi sua voz, num murmúrio que me arrepiou de surpresa.

__ Não foi o melhor dos anos, e por isso acreditei que, mesmo que estivéssemos mais distantes, não iria querer retornar tão cedo. Me irrita saber que você continua o mesmo. Me irrita muito.

De costas, talvez para que não desse chance daquela conversa se prolongar, ele adormeceu. Ainda que em silêncio, sorri sozinho, deixando o sono me domar, bem, o fato de ter mantido sua mão na minha foi incentivo o suficiente.

Era óbvio que ele não choraria ou pediria docemente por um abraço, isso nunca foi típico seu. Então aquilo foi mais do que poderia pedir. Estávamos bem.

Mesmo que Thomas não podesse adivinhar o que passava, e até mesmo eu não conseguiria traduzir bem nossos problemas, entretanto, quando revi Jony naquele natal, tive certeza que nada entre nós estava fadado a mudar.

As palavras de Thomas me mostrariam o óbvio. Ele tinha que estar tão certo, não é?

O fim de ano pintava as sacadas de chuvas intensas e neve congelante, ainda assim, me sentia aquecido pela ansiedade.

Eufórico e cheio de trabalho, tentei evitar pensar demais naquela noite, circunstâncias e consequências pouco deviam importar. Entretanto, não conseguia me concentrar em nada além do retorno de Thomas.

Iniciamos aquele dia sorrindo. Thomas estava ali e nós poderíamos relaxar os músculos, tomar um chocolate quente e rir de piadas estranhas que ainda faziam algum sentido.

O mundo de repente parecia mais correto, ou seria apenas a nostalgia respingando de romantismo a mais comum rotina? Não me importa, na verdade. Gosto de como me lembro. Até mesmo o olhar ranzinza de Jony ao nos ver invadindo sua casa foi suavizando; em meio a toda nossa euforia, ele estava ali, focado nos pequenos detalhes, nos apontando os desleixos que íamos deixando ao ar.

Limpando a sujeira de nossos sapatos e mesmo que resmungasse algo aqui ou ali sobre a decoração que fizemos, Jony estava de alguma forma, mais leve. O quão leve Jony Scaler consegue ser.

Às vezes, trocavamos olhares únicos, olhares que pareciam guardar o sabor jovial daquele licor no chão da cozinha. Estávamos mais estranhos que há um ano atrás, ou eram nossas diferenças que se acentuavam com o tempo separação? Me questionava, não mais pensativo que feliz.

Ainda que, sem querer, haviam mistérios entre os nossos dedos, ideias frívolas que jamais colocaria em palavras, mesmo que não importassem as diferenças, não mais, e que Jony pudesse ver através das cortinas, como se aqueles sorrisos dissessem mais do que as emoções bêbadas de um raso momento... Eu desejava que tudo permanecesse daquela forma, e de nenhuma outra; se pudéssemos caminhar juntos e, num silêncio quase nostálgico, nossas respirações igualmente frias e esfumaçadas, já soubessem o que cada um estava a pensar, apenas ao se entrecortarem.

Era uma quente noite de natal, e estava tudo bem, estarmos apenas ali; não importava mais as perdas, só por um segundo, esqueceríamos o quanto éramos diferentes, todos os segredos terrenos arrastados no calcanhar.

Pra mim, poder retornar ao outro após a tempestade, o afastamento, o descanso, a vitória e a perda também, já era mais que o bastante. Deveria ser.

Afinal, era isso o que a amizade deveria significar, certo?

Charlie estava bem, ele e Mrs Stacy pareciam ainda mais íntimos do que em anos, caminhavam todas as tardes e juntos preparam um jantar acolhedor; a música lenta preenchia meus pulmões e cada pequena luz na sacada esquentava a bela noite fria. Estar com todos, incluindo Thomas e suas piadas imorais, rindo e dividindo emoções de admiração e irritabilidade, era razão o suficiente. Naquela madrugada, abriria um presente e riria como uma criança, andaria na calçada gélida com os ombros de meus amigos colados aos meus e faríamos o boneco de neve mais feio da face da terra.

Talvez não saberia, como um único momento, por mais simples que fosse, se petrifica, como o floco de neve, no chão fino da memória. E quando você vê... Há tanta neve que dificulta um simples caminhar.

A alegria não é exclusiva do passado distante. E concluir isso, de frente a hesitação de suas feições, a alegria breve e metódica, as roupas caras demais, os risos frouxos e cada preocupação inocente... Aos meus olhos, aquele quadro se congelaria. Me prontifiquei a proteger aquela imagem pra sempre.

Era estranho pensar que Jony teria uma imagem totalmente diferente. Demoraria para notar, talvez, já que a pessoa que ele enxergava no espelho era... muito diferente.

Às vezes, andando pelos corredores da mansão, nós percebemos que, procurando o silêncio das estrelas, sempre acabávamos nos encontrando. Mesmo que ele apertasse as sobrancelhas e cansasse de me explicar pela décima vez qual a o significado desse quadro e daquele... No acaso de corredores;

Nós nos encontraríamos.

Era uma boa metáfora, não é? Mas é verdade, aquela mansão tinha corredores confusos demais. E nem me fale das escadas... Ainda assim, amei cada desencontro. Repetiria a todos eles. Cada risada estranha, cada vinho derramado em toalhas caras, pés arrastados sem medo de escorregar. Mãos frágeis... A equilibrar frascos caros. Mãos entre casacos e taças preenchidas de breve satisfação.

Boas memórias são preenchidas de encontros silenciosos, entre barulhentos e escandalosos desencontros.

A vida é constituída de equilíbrio. Pratos equilibrados a descer das escadas.

Thomas preparou uma surpresa de Ano Novo. Conseguimos ser convidados para uma grande festa, gostaria de ter feito tudo sozinho em agradecimento a nossa viagem, mas ele insistiu que tinha um amigo de um amigo, e que, em suas palavras, "nunca comprou vinho de qualidade de um barqueiro tão barato". Bem, vindo de alguém como ele, confiamos completamente na qualidade da ocasião.

Me permiti sentir a alegria de fim de ano plenamente. Como se meu coração fosse um com aqueles fogos, eu quebrei, pulei, explodi por dentro.

Fitando aquele céu colorido, prometi viver aquele novo ano como um recomeço. Eu seria feliz, mais do que em qualquer outro momento. Seria verdadeiro com meus desejos e sonhos.

Logo eram quase meia-noite, quando Thomas me puxou pelo braço, eufórico. Uma estrela cadente! Porém foi tão rápido que mal vi.

Infelizmente, no momento em que ergui os olhos e tentei pensar em um desejo, nada me veio a cabeça.

É claro que tinha desejos, mas como tudo estava acontecendo tão rápido na minha vida, que só o que pude pensar era que, queria poder dar o meu melhor, sem hesitação. Sem depender de magias, segurando fortemente nas mãos do destino.

E ao pensar em mãos, procurei, em meio a explosão de fogos de artifício, as mãos daquele ao meu lado, de Jony.

Pensando em estrelas e mágicas, fitei aquela mão magra e pálida, abrindo-a sobre a minha, tateando, como uma cartomante lendo suas linhas. Havia integridade e inspiração em suas falhas, nos calos secos, que só de tocá-los pude sentir a delicadeza e brutalidade, e de tal força, que me senti um tanto triste. A estrela já caira e todos os meus pensamentos se tornaram vagos.

Em meio ao tumulto de risos, apenas me foquei em seus olhos verdejantes, me perguntando se alguma vez Jony já fizera algo como um pedido do fundo do coração, um pedido secreto de si para si.

Não saberia até perguntar, porém naquele instante Jony estava... Hipnotizado, mais pelos fogos estrondosos, do que pelas estrelas, simplesmente via através de mim. Olhava não como se admirasse algo, procurava, talvez? Também não perguntei. Pois logo ele espalmou minha mão na sua, firme e delicado, como só um grande artista poderia fazer.

Apertando e Unindo num único gesto. Marcando em nossos dedos; Sorte, emoção, futuro e destino.

Naquele momento, me senti capaz de acreditar em qualquer coisa, confiar em qualquer leitura de mão ou cartas, ouvir palavras ao ar e tê-las todas como verdade, por mais bêbadas que soassem.

O que eu desejaria mais? Meu livro estava finalizado, meus amigos estavam bem e prósperos, meu tio saudável e se recuperando, meu melhor amigo... Era meu melhor amigo.

Então voltamos a praia, e eu bebi, Thomas cantava uma canção de marinheiro, dançamos ao redor da fogueira e rimos tanto... Afundando os pés na areia e esperança no coração. Rodamos ao redor do fogo sem pensar no cheiro de fumaça ou na areia penetrando nossos poros.

Naquele tipo de sujeira e confusão que nos faz mais humanos. Mais próximos de um instintivo desejo de expandir.

Um segundo, e o universo parecia completamente novo, e você deseja se reformular também, de dentro pra fora. Carne, suor e lágrimas. Me permiti perder, os sapatos, o casaco, algumas notas e um anel. Deixei o mar e a areia levarem mais do que gostaria de entregar.

E assim é a vida. Você não escolhe o que irá perder, entretanto, pode escolher o que irá guardar.
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