3. Outras Rotas
A última vez que o vira fora na estação, nós dois em meio a euforia de despedidas e frases entrecortadas no ar... como só adolescentes são capazes. Estávamos de pé de encontro ao vento, todos de costas para o horizonte rosa bebê. Alguém apertava meu pescoço, outro alguém ria sobre ter esquecido uma camisa velha com lembranças sentimentais... Entre outros rostos esquecíveis em meio a nebulosa da efervescência no início de uma nova vida... Não me lembro. Não via mais que o nublado de um nervosismo.
Era a primeira vez que viajaria pra longe, não importava se estava totalmente sozinho ou não. Ainda era uma bolota de incertezas sobre o que diabos estava fazendo com minha vida, mas isso não impediria Charlie de me cobrar ao menos, minimamente, uma faculdade.
Meu tio não era alguém de cobrar e pontuar, como já pode imaginar, portanto as exceções eram intensas. Era o que meus pais iriam querer pra mim. Repetia, apertando a maleta surrada entre os dedos. Era o que... Eu deveria querer, não é?
Quando vejo hoje, o barco partindo e todos tão eufóricos por ser o último a erguer os dedos e dizer "adeus", é como se eu nunca tivesse vivido aquilo, nenhuma de todas as despedidas. Fitando a paisagem, naquele momento eu sentia exatamente como se não quisesse estar após o adeus.
Os olhos fundos de Jony me olhavam de volta, tão descrentes como desconhecidos poderiam ser.
Tão presente, mesmo que aquela lente não tivesse gravado nada mais que água e barcos. Não era como se nunca fôssemos nos ver novamente, como se ele fosse esquecer completamente da minha existência ou eu da dele, naquele momento eu estava somente diante de um sentimento tão doce quanto amargo; a saudade.
Há muito tempo, eu realmente machuquei pessoas. Todos nós, em muitos momentos de nossas vidas, acabamos quebrando um ou outro alguém, ou porque esbarramos sem querer, ou deixamos deslizar acidentalmente pelos dedos, e não ouvimos o vidro chocar-se contra o chão. Então lembramos daquelas costas a se vivarem ou das lágrimas deslizando pelo queixo. Naquela época, eu poderia não ter a mínima ideia do que poderia estar fazendo, mas isso não muda nem um pouco o fato de ter feito. Aquelas pessoas com certeza não esqueceram, ou pelo menos, acredito, a maioria delas.
Jony com certeza jamais esqueceria.
Nós dois havíamos perdido tantas peças, que mesmo podendo ver a figura original, tínhamos medo de que apenas um toque pudesse desmoroná-la. Aquela torre de cartas, feita de rasas palavras, como um castelo de areia. Porém, antes de darmos por todas as peças, eu sequer sabia que Jony também temia o desmoronamento. Antes de entender qualquer coisa, eu precisei ir em frente, precisei sair da sombra do seu pedestal e andar um pouco. Não é como se fôssemos inseparáveis como uma mesma pessoa, na verdade, nós éramos exatamente o oposto.
Isso se provou quando nos despedimos pela primeira vez, quando sequer proferimos uma única palavra. Não é que não tivéssemos nada a dizer, simplesmente não... conseguimos. Como naquele dia, apertamos as mãos e nem mencionamos um único abraço. Éramos jovens e talvez orgulhosos demais para dizer o quanto nos importávamos, mesmo que ambos soubéssemos, e talvez justamente porque já sabíamos.
Apenas esbocei um sorriso. O fim e sorrisos podem dar certo, mas nem sempre você consegue acreditar nos dois ao mesmo tempo. Ergui a mão e acenei, sentindo meu peito apertar, ao ver Coven e Jony acenando pra mim de volta.
Torkshell não foi um dos meus lugares preferidos, se quer saber. Não era particularmente feio ou detestável de um todo, aluguei um quarto no subúrbio, e não seria tão solitário quanto ser um típico estrangeiro num ninho desconhecido, a vizinhança era recheada de estudantes de classe baixa que não podiam pagar por apartamentos perto do prédio da Universidade. Havia um equilíbrio de faces conhecidas e desconhecidas.
Era um lugar afastado do centro da cidade, é claro, e não metaforicamente obscuro e úmido. E seria silencioso se não fossem as buzinas e freadas de carros a cada meia hora. A "senhoria" (era a dona do prédio, mas não cuidava dele no sentido geral) se chamava Barnett e chegava tarde, quando chegava. Trabalhava o dia todo em um tipo de cozinha industrial. Nós não conversávamos muito, tinha isso em comum com meu tio, naquela época éramos quase como estranhos numa mesma casa.
...Porém, eu não estava sozinho.
Mesmo passando maior parte do meu tempo fora, Thomas quase sempre estava ali, sentado sobre a cama, com um livro em mãos e um cigarro aceso. Nós dois falávamos e fumávamos bastante, com ele todas as noites eram semelhantes entre si; em música, palavras e pessoas. Longas noites indescritíveis em meio ao tedioso meio termo entre ser uma ex-criança e um futuro adulto.
Sinceramente, eu era jovem e nem sempre me importava aonde aquilo iria me levar. Sem me importar com futuro, nem passado, nada além do agora, eu estava sempre correndo, dizendo que não importava, às vezes rude, às vezes rindo, e algumas vezes os dois; me deleitando de tudo o que sentia que podia me surpreender. Thomas foi a companhia perfeita para o Patrick que estava nascendo naquele nicho.
O que dizer? Estou indo muito rápido? Não sei dizer muito bem quando Thomas se tornou O Thomas.
Quero dizer, se for falar de Jony, é como se tivéssemos tido todo o tempo do mundo pra isso. Mas Thomas se aproximou de mim tão rápido que sequer lembro qual foram minhas primeiras impressões. Quando penso em seu rosto de juventude, é quase impossível idealizá-lo, aquele Thomas ainda me parece com o mais recente, e minhas memórias se impossibilitam de confundir qualquer mínimo detalhe.
Defini-lo? Thomas era perspicaz e esperto, ele conhecia a todo mundo como se o mundo fosse seu quintal, sabia tudo um pouco como uma revista de noticias e sempre parecia tão confortável em sua sobrecasaca que ninguém o desafiava em nada. Porém, eu sabia que não devia deixar-me enganar pela sua casca de maturidade, por dentro, ele era tão ingênuo e irresponsável como qualquer jovem (não o deixe ouvir que eu disse isso).
Fisicamente? Fiquemos com seus olhos. Um mar de possibilidades. Olhos de viajante. E havia seus notáveis e estranhos cabelos. Era impossível alguém não reconhecê-lo a vista. Eles sempre foram tão grisalhos, que tornava-o fácil de enganar pelos anos, e não é como se ele não se deleita-se ao se aproveitar disso. Não raras vezes o tratavam como meu pai. Mas sua figura ia longe disso pra mim. Ele era um igual; confiava em mim... contraditoriamente, como confiaria em seu próprio filho.
Entendia até que, às vezes eu agia como se pudesse ser alguém como ele, pois o admirava muito, e podia fazer coisas irresponsáveis, mas ainda assim, não me repreendia. Pelo que penso, ele confiava em mim pois acreditava na minha inocente curiosidade de adolescência ou apenas se sentia isento de autoridade, pois não havia em si, os ares rigorosos de um pai? Com certeza ele era uma ótima pessoa, inegavelmente. Não porque em todos os anos que vivemos juntos ele acatava a todas as minhas vontades, por mais egoístas que fossem. Mas porque sua leveza era contagiante e encantadora, como a juventude deve ser.
Thomas Woole era mais velho e mais inteligente, porém nunca me fez sentir de qualquer forma inferior a si. Todas as nossas diversões foram puramente por termos muito em comum, éramos despretensiosos, dispostos a não arcar com grandes responsabilidades... Na maioria dos casos. Foi inevitável, se penso bem, termos nos tornados camaradas tão rápido.
Uma coisa sobre ele que vale a pena citar é que, entre nossos colegas, ele era um aluno exemplar e notável, digno do que diria, uma inveja sutil? não dificilmente o rodeavam de rumores maliciosos, culpavam-no de causos estranhos e completamente infundados, e mesmo que Thomas somente risse de tudo, eu não entendia porque não eram capaz de enxergar o homem extraordinário que eu via. Thomas sempre dizia que as pessoas devem sofrer as consequências de suas loucuras, e embora não fôssemos tão famosos pelos atos discretos, as vezes as consequências recaiam de forma um tanto funda e pesada demais.
Enquanto repensava o passado, me via na inocência da minha pequena cidade, e como a sombra que visualizava que fosse. Quem diria que em tão pouco tempo mudaria tanto? Thomas não acreditaria que aquele Kennedy que zombava por fumar maços de cigarro ao dia fosse um garoto solitário agarrado a livros boa parte de sua vida. Porém não me leve a mal, eu amava Coven, amo e sempre amarei. O passado é doce ao vislumbrá-lo pela lente do progresso. E gosto de pensar que cresci em Torkshell de uma forma que minha amada pequena cidade não me permitiria.
Certa vez conversávamos sobre o passado e ele sempre gostava de me ouvir falar de Coven. Via-me segurando aquelas fotos e, de alguma forma, ele entendia. Entendia o que é ser, mais do que rumores podem te moldar, alguém silenciosamente agarrado a uma versão mais dócil de si mesmo.
Segurava sua xícara de café e sentava-se ao meu lado na cama, fitando-me curiosamente. Altas horas da madrugada, cansados de nossos dias estranhos e corridos, falávamos de tantas coisas e parecia sempre que... podíamos falar de qualquer coisa. Eu estava sempre em Coven, como Coven estava em mim, e como Thomas estava em qualquer lugar.
Não tinha muitos pertences, mas dentre os que carregava para todos os cantos, havia uma coleção modesta de fotos, algumas tiradas por mim, outras que pertenceram aos meus pais, uma juventude longínqua que me inspirava a viver ao menos um terço do que imaginava que eles tinha, duas em especifico me emocionavam imensamente apenas de recordá-las. Não havia muito de especial, uma era a cena cotidiana do dois sentados na escadaria do nosso prédio, a outra era uma imagem simples, os dois sorrindo, ombro a ombro como dois velho amigos a observar o pôr do sol; meu pai sorria, uma curva tímida e intensa abaixo dos olhos, e ao seu lado minha doce mãe abraçava seu braço, sua expressão era um tanto engraçada, imaginava um tipo de repreensão, como quem discute sorrindo, rindo por irritar-se com uma bobagem. Me sentia de alguma forma incluído aquela memória inventada, como quem se teletransporta ao menos em mente, em olhar, um espectro.
Junto daquelas duas fotos também vinha muitas paisagens, uma paisagem em específico me é especial, tirada por mim, revisava com a nostalgia dos poucos anos.
Estávamos Jony e eu no parque, conversávamos sobre qualquer coisa, quando pus meus olhos na ponte atrás dele. Muitos barcos pequenos estavam ancorados e uma luz alaranjada da manhã recém-nascida reluzia nas águas e banhava a toda a paisagem. Aquilo me lembrava exatamente um quadro que sempre víamos ao ir na biblioteca, como se tivesse se materializado bem ali. Jony, porém, disse que era completamente diferente. Então, naquele mesmo instante, peguei a câmera da bolsa e tirei uma foto para que pudéssemos comparar futuramente. Aquela tarde fomos a biblioteca, e ele estava certo. Eram coisas completamente distintas, que minha mente havia tido como iguais.
Sozinho naquele quarto, eu me vi apenas com aquela foto e aquelas lembranças, um sorriso idiota, culpado por aquele adeus calado. Não importava o que disséssemos nas cartas, sempre parecia que estávamos dissimulando a frieza daquele momento. Segurava aquela foto e pensava nos anos que tivemos para entender tão profundamente um ao outro e, como sempre, se Jony estivesse incomodado com algo, ele diria. Se eu estivesse incomodado com algo... Eu o diria, certo?
Ora, os jovens raramente sabem quando a sinceridade é extremamente necessária, não é? Sempre parece-nos que perdemos o momento, o fôlego ou o argumento na ponta da língua.
Havia um mês até que eu retornasse para casa. Havia uma estranha excitação no medo de ter mudado demais. Eu ter mudado demais? Ou todos terem mudado demais? Ambos, muito provavelmente. Também me via pensando em Charles, e no orgulho que teria com meu progresso. Orgulho é uma palavra engraçada. Sempre negamos que o desejamos, mas não o recusamos, não é? Não era um garoto orgulhoso, e não diria que me tornei um adulto orgulhoso, independentemente da rudeza, ou da secura que o estresse pode deixar, cicatrizamos sim, ao ouvir o acolhimento de um reconhecimento sincero. Desejava o quente de um lar, o quente do repouso após o vôo breve.
Na faculdade o ar de sentimentalismo era forte, havia uma primavera de esperanças e desesperanças, destinos se entrelaçavam e reforçavam, assim como outros se cortavam para uma eternidade. Fitava Thomas com admiração e nostalgia, revisando as palavras sérias e nossos risos um pouco menos despreocupados, esticando as pernas no gramado, pensativos como se tudo fosse digno de uma grande frase poética. (É claro que Thomas também amava a poesia)
O dia chegara, apertávamos o passo, os braços e as lágrimas, "Não esqueça de mim, Kennedy!", brincava, puxando as mangas daquele casaco pálido, cravando sua imagem de verão nevoso em minha mente para todo o sempre. Comentava sobre a próxima viagem, o próximo porto, com a leveza de quem está.. por que não? Indo pra casa. Não o invejava mais do que ansiava, e ao arrastar aquela mala pela escadaria, ainda rindo das palavras da Sra. Barnett ao sair, sobre esquecer o cigarro ou algo assim - irônico considerando que ela bebia há o quê, doze anos?-, pensava naqueles anos se enfileirando pelos degraus, o sorriso de um passado me desejando "boa sorte!".
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