4. Livros Fora da Estante
Poucas coisas são boas como o sabor do Retornar. Atravessar a ponte e fitar aquele horizonte acolhedor, tocando docemente o mar, era uma sensação como nenhuma outra.
Caminhando pela calçada, sem se preocupar com o passar do tempo, apenas observando ao redor, como se visse tudo pela primeira vez. O que posso dizer? Aquela bela manhã foi uma das melhores da minha vida.
Chegar em casa, poder abraçar meu tio e sentir-me como um misto do velho adolescente o novo homem, sentir o tempo destilar nos dedos, é como renascer. Outros instantes poderiam ser mais empolgantes, porém poucos mais memoráveis.
Era como se cada segundo destoasse daquela imagem mofada e obscura de Torkshell; abrir a porta de meu quarto e saborear o macio de lençóis familiares, retornar cada coisa a seu cantinho, me reajustar, por si só. Realocar o que deve retornar, melhor, mais cansado, porém ainda o mesmo.
O dia longo e ensolarado presenteava uma nova fase, toda cidade parecia uma nova imagem ase desvendar. Sair e comprar aquele pão, na mesma padaria, observar os barcos e ter sensações tão mais sensíveis, encarar o mundo de uma forma mais ampliada. Estava afundando no clichê, "tudo mudou ou eu mudei?".
E em meio a pensamentos filosóficos e cinza das ruas, se esfumaçando por todo o lugar, a biblioteca aparece em minha vista, com suas enormes janelas envidraçadas e paredes de tijolos vermelhos, intacta em minha memória. Quantas vezes não retornei a ela, como quem retorna a uma velho parente? depois dos anos, das perdas, das vitórias e dos fracassos, para sentar-se aos seus pés e contar-lhe com um sorriso, ou lágrimas, tudo aquilo que vivemos, tudo que se passou e jamais pode retornar... bem, daquela vez, eu dei-me com verdadeiros olhos amigos.
Dei um passo a diante, resoluto e quase premonitório... lá estava, entre estantes altas, cada prateleira um degrau de conhecimento e sonhos, cada olhar um novo horizonte, um horizonte próximo de costas, apoiadas na madeira escura, com seus mesmos cadernos, canetas, e muitos estojos, os pés cruzados tamborilando, em compasso com o semblante sério, não totalmente nublado, não completamente absorto, o casaco preto respingado de neve, aquele leve borrar como se estivesse entrecortado na realidade, vi o velho (ou novo?) e único Jony, o Jony que um dia fora minha mais efervescente lembrança. As duas imagens redesenhando como se estivessem fadadas a colidir. Cenas que apenas o tempo pode nos presentear.
Mesmo rodeado de olhares, atenção, enfoque... Ele me encontrou, em seus olhos, havia o mesmo brilho intenso, hipnótico e familiar.
Não me aproximei, como a deixar que ele chegasse até mim, deixar que o vento varresse as folhas (o circulo de estudantes que o cercavam como formigas atrás de açúcar, nada incomum, os anos jamais mudaram isso) e tornasse o caminho limpo. Felizmente, não precisei esperar muito.
Olhamo-nos calados, reconhecendo quietamente a existência nostálgica do outro. O silêncio que amávamos compartilhar.
Inegável não notar como ele estava... tão diferente, olhos mais baixos, cabelo curto, mais alto e elegante, de um jeito quase gracioso, fingiu que não me conhecia, um humor ácido e quente, caçoando do estilo do meu cabelo, talvez encaracolado demais para uma franja tão cumprida (ele não estava muito errado). Rimos; relaxando enfim os músculos. O mundo parecia estático e tão movimentado em um momento, foi uma experiência estranha, diria.
Estranho notar que não apenas eu havia crescido. Jony parecia tão intacto na minha memória, entretanto talvez aquela pessoa diante de mim já tivesse se tornado em outra completamente diferente, que nada tinha em comum com o garoto do passado. Frente a frente, observei aqueles modos singelos, os dedos longos e aqueles mesmos olhos, fundos e tão descrentes de tudo, pensando que, mudado ou crescido, ele ainda era... a melhor lembrança.
O quão agradável é poder dizer "senti a sua falta"?, Sem receios, sem barreiras. Falar dos velhos tempos infantis e rindo das coisas tolas, em um instante, nós éramos apenas dois amigos de novo, dois jovens retornando ao outro, com palavras e experiências novas, que o outro sequer imaginava. Mesmo com todas as cartas, não se comparava a poder reformular, com palavras e gestos, a alegria, a tristeza também, a surpresa, o novo, os tons mínimos de cada dia... Ah, nada se compara.
__ Oh, aquele quadro ainda está aqui?__ Perguntei em meio a euforia, me recordando da foto que carreguei comigo no peito. Mesmo que parecesse algo insignificante, Jony lembraria. Tinha certeza, sempre.
"Acho que agora consigo ver", Jony murmurou, um tanto melancólico, e não demorei pra compreender ao que ele se referia. A foto e o quadro... Nunca pareceram tão iguais. Sim, nós admiramos aquele quadro como se fosse a coisa mais incrível e nova da face da terra.
Em seguida eu realmente não lembro o quanto falamos ou por quanto tempo, e havia tanto, tanto a dizer, ao menos de minha parte, Jony era um ouvinte admirável, e os anos só lhe fizeram melhor. Não é surpreendente? Você deve saber o quanto ele pode ser um bom orador. Ele sempre era tão bom em tudo.
Enfim, fizemos uma caminhada murmurante pelos livros, familiares ou novos, eis algo que me orgulharia de dizer, poder discutir com ele sobre títulos, dos mais exóticos e extraordinários, de igual pra igual, era uma dádiva que só os anos de estudo me trouxeram, e provavelmente uma das melhores. Eu poderia dizer que arrancara o pedestal, ou adcionara mais um degrau a ele. Equiparamo-nos em sincronia, enfim.
Tão entretido estava com rever aqueles exemplares tão familiares em sua mesa que mal notei a presença incomum se aproximando, foi quando Jony me apresentou a Michael Waver. Já tinha uma certa ideia do quanto Jony havia sucedido na Universidade de Artes de Coven, e como seu nome resplandecia entre os alunos como um prodígio, e claro, como se tornara um exemplo, um pedestal, para pessoas como ele.
Michael tinha o que chamava de um ar sutilmente intimidador, você não diria que ele tem uma grande presença, até porque falava muito pouco, mas um havia contraste de expressões, você se esquecia facilmente o que estava falando quando ele olhava pra você, como um olhar desafiador e paternal, "Isso é realmente tão interessante?", e eu não me sentia confortável em manter qualquer conversa por mais de dois minutos com ele.
Jony sempre fora popular, e não havia nada de surpreendente em ele atrair todos os tipos de sujeitos... Não é? Não tão óbvio. O Patrick daquela época podia ser contingente em relação a isso. Não, não diria que foi ciúme, quero dizer, eu tinha minhas razões pra manter a barreira baixa o suficiente, mesmo que ela estivesse ali. Michael era contraditório demais.
Não, eu nunca fui muito aberto em relação a isso com Jony. Eles eram amigos, quero dizer. A minha impressão era dispensável.
Por enquanto, vamos deixar minhas opiniões sobre Michael para um outro momento, tudo bem? Antes, gostaria de explicar brevemente como iniciei o novo semestre, e como meus esboços se colaram e montaram meu primeiro livro.
O quão rápido você pode crescer? Em Torkshell pareceu muito pouco tempo, em Coven as peças que faltavam se encaixaram no instante de um estalar de dedos.
Correndo para todos os lados, eu e meus rascunhos de grafite, Jony e suas telas respingadas de suor, para lados diferentes da rua, vindo da mesma direção. Imagina-se que, num Depois tão intenso e longo, é chegada a hora de se encontrar.
Me encontrar no mundo, entre quatro paredes, nos olhos serenos de Charlie ou nas dúvidas e críticas de meu melhor amigo... Não importava a forma, eu sabia que deveria me formular logo. Havia uma pilha familiar ao lado da cama, ainda mais estranha aos olhos daquele adulto mais sério e mais crítico, manchada de digitais e imaginação ressequida, porém, havia um valor inestimável nas palavras borradas daquele adolescente.
Em comparação com as linhas recentes, os garranchos daquela época eram, o que se pode afirmar, com o olhar mais gentil e franco, terríveis. Mas o que havia de especial então?
Originalidade? Diria Jony, Criatividade? Ingenuidade? Um valor da pré adolescência dificilmente encontrado no maturar dos anos?
Paixão. A união do desejo de ser alguma coisa com... Fogo? O fogo da confusão interior, do sangue ardente de um ser ainda sem lugar no mundo.
Sentei-me aquela tarde, em momentos eufórico a falar com as paredes, em outros sufocando num silêncio literário, e então fitamo-nos; eu e o passado singelo, ele bufando eu apreensivo. Cansado e pensando, nós nos vimos a procura da mesma coisa. "Então por que não unir nossos dedos?", disse-lhe.
Mas não seria tão fácil como apenas curvar as costas e pegar a tinta, inclinar a caneta e decidir que será um resultado incrível. Era preciso de um sabor. A intensão estava ali, mas ainda faltava uma direção.
Foi nessa época que, por acaso ou sorte, conheci o Teatro.
Caminhando pelo quarto, eu pisoteava o tapete de Jony e o silêncio de sua preciosa noite, exprimindo todas aquelas ideias que ainda não sabiam caminhar. Fitava a tela e a caneta, trocando as cores e as palavras, o silêncio e a tempestade, eu amava sua arte, havia espírito e essência, com leveza sabia que o que eu precisava já estava ali, como um fantasma que apenas precisa ser visto no espelho.
É estranho, não é? Quando nos vemos tão presos a uma ideia e nada parece fugir ao seu alcance, como a teia de uma aranha, unindo as paredes. Eu olhava os objetos ao meu redor e só conseguia ver uma linha, longa e vermelha, como se estivessem indo em direção ao meu quarto.
A galeria era um quintal e Jony o jardineiro.
Normalmente era um lugar cheio, não surpreendente para um aluno de honra, não é? Eu não era o único que ansiava por seus quadros, apesar do meu amigo agir muito humilde em relação a isso, quase como uma auto depreciação.
Quando o mundo se tornava laranja, os sons se acalmavam e os olhares alheios o folgavam, usufruía o máximo que podia do seu olhar. Jogávamos nossos casacos sobre a mesa, sentávamos no chão e esvaziávamos centenas de xícaras de café. Centrados no objetivo a dois passos do olhar.
Rodeados de telas de rascunho, exaustos ao fim do dia, é impossível não lembrar, a rua fria entre um centro levemente movimentado, os bares prestes a abrir, me pegava puxando a boina para o centro da cabeça, ainda com aquela franja longa demais, sentavamos perto do cais, a contemplar a paisagem de fim de tarde; todo o laranja dominando meu quarto cinza.
Então, chegava o dia seguinte, e novamente saiamos apressados e corríamos, mais falando que ouvindo, e sorriamos, entredentes, rindo dos erros; outrora chorando, outrora deslizando a costa da mão na testa, porém, aceitando-os. Apenas continuando... a correr.
Sem pensar em quantos rascunhos mais, quantas pinceladas a mais até ele ficar satisfeito. Nós dois procurávamos nos saciar, andando em passos cada vez mais largos, e acreditando que se nadássemos mais fundo, poderíamos tocar aquilo, ao menos com a ponta dos dedos.
Mais uma letra e então meus dedos iriam explodir... sério.
Mais uma xícara e esquecia qual a última vez que retirara os sapatos para dormir ou arrastara o cobertor.
Não dava mais pra distinguir os dias e talvez até a nós mesmos. Então enfim, Jony saiu da universidade, e nossos pés pousaram delicadamente sobre uma noite, para dividir uma garrafa de vinho, e foi quando Michael nos convidou para ir ao teatro.
Parecia que a última vez que fizemos aquilo foi a dez anos, naquele momento, agíamos tão seriamente, afundando em nossos casacos bordados de tinta, as mãos recheadas de calos, via Jony absorto e centrado, deixando-me reger a conversa, não por interesse, mas por sono. Parecia que a noite mal começara e já morríamos de cansaço.
Nunca antes me sentira tão verdadeiramente adulto. Talvez fosse o sentimento de trabalhar tão duramente em algo e por algo, ou estar ali, respirando naqueles dias de euforia.
A pequena multidão se espalhava, risonha e dançante, tão centrados em si mesmos e suas vestes pomposas, até o silêncio estocar em suas faces. O cheiro de pó de maquiagem pairava no ar; a magia do teatro exalava como uma droga.
Num mísero instante, me via facilmente extasiado. O quão difícil era eu me impressionar? Jony ria da minha meninice. Para ele deveria soar corriqueiro, mas para mim, oras, sempre fui um caipira, nem mesmo a breve influência de Thomas mudaria isso. Michael ao nosso lado parecia absorver tudo num silêncio contemplativo, em meu contraste.
A forma como os cenários se moviam, os desenhos e cores, as longas cortinas esverdeadas cobrindo todo o horizonte como uma tenra floresta encantada... Os irmãos Grimm se personificaram na minha alma. Entre fadas, bruxas e animais falantes, eu me enxerguei.
Quando tudo silenciou, em seu vestido coberto de flores de pano, a bela atriz deslizou pelo palco. Era linda, mais do que isso, era triste. Em sua melancólica face havia espírito e corpo, uma união de carne e alma como a própria arte deve ser. Em êxtase, caia no pranto da perda que me vi lacrimejando.
A cada frase, cada soluço, a cada fala murmurante meu corpo estremecia. Uma pessoa podia, sozinha num palco, apenas com uma mudança sutil de luzes, um remexer de cordas, criar um mundo intimista e tão exterior ao mesmo tempo? Parecia magia.
Ali, eu entendi.
__ Jony, é isso. Eu finalmente encontrei, sinto que devo fazer isso.__ sussurrei para si, sem ter plena certeza que ele me ouvia, até sentir o quente de seu olhar assentir em resposta. Ele entendia, sempre entendia.
Estava sendo precipitado? A pergunta certa era, quando eu não fora? É preciso ser precipitado para tentar ouvir o coração.
E com meu coração pulsante como nunca, desejava para mim talvez algo grandioso demais, porém não importava. Via mais do que uma mera história se arrastar nas suaves linhas de sua face. A eterna jovem que, mesmo ainda perdida, cantava para a neve a cair nos cabelos... Os longos cabelos negros salpicados de solidão. Parecia-me como um espelho. Todos aqueles anos me vi mais perdido do que focado, não era uma novidade.
Até que as cortinas desceram vermelhas e os aplausos explodiram. Meus olhos estavam abertos novamente, úmidos, porém resolutos.
Me vi rindo, tropeçando pela calçada, escorado em Jony, falante e irritante, muito provavelmente, mas feliz. Tão feliz que podia morrer.
Michael muito menos contente, mas que importava? Nunca fui um bêbado fácil. Enfim, depois da metade da madrugada já não me recordo de nada. Fico apenas com a memória daquela nostalgia velada nos lábios ressequidos, um dia marcado pelo êxtase da pura arte.
Na manhã seguinte, lembro de ver Jony tão cedo na cozinha e não na escrivaninha, lavando os pratos. Vejo ao longe um bilhete de Charles que dizia para não esquecer de ir ao jornal, naquela época eu já havia publicado algo aqui ou ali, porém, ele estava realmente empolgado com isso. Nessa manhã estranhamente não tomamos café, havia suco e pães.
Vendo Jony tão concentrado, não importasse o que fizesse, era sempre algo engraçado de se ver, por isso me marcou bem na memória. Eu o olhava de longe e sinceramente pensava que nunca seria capaz de fritar ovos com tamanha seriedade. Estava sem óculos, pela manhã ele não os usava, e quando não usava tinha o misterioso efeito de parecer muito mais jovem. Então depois de uma noite de salto no tempo, somente parecia que, numa mágica estranha, que se dissipou ao acordarmos, não éramos mais que duas crianças preparando seus lanches para ir à escola, com rostos marcados de lençol, falando rouco, bocejando preguiçosamente.
Tudo parecia andar de acordo com uma canção estranha, às vezes rítmica, outras descompassada, mas dançante. Pulsante de excitação.
Entretanto, depois daqueles dias, ela tropeçara no tom dramaticamente.
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