23. Azul Oceânico

Sorrindo inocentemente, debruçada sobre o piano, Joe me perguntava porque eu odiava aquele quadro.

"Pareço odiar?" Perguntei, de pé a sua frente, fingindo desinteresse enquanto analisava alguns documentos de compra.

Ele sempre está de costas, escondido em algum lugar, como seus rascunhos antigos, ou sapatos velhos. Riu-se, entre curiosa e hesitante, então bufou infantilmente, quando simplesmente respondi, "porque ele é velho".

"Coisas velhas tendem a se acomodar em lugares recônditos". Parecia uma resposta digna, ou vaga o suficiente.

Bem, sabia que ela pouco se importava com aquela conversa.

Só queria dizer alguma coisa, para quebrar o nosso silêncio e então, sutilmente puxar-me para fazer amor.

Pouco tempo depois aquele mesmo quadro desapareceu. Um sumiço arquitetado pelas minhas mãos.

Então certa tarde, a vi fuçando entre caixotes no atelier.

Sem razões explícitas, como se procurasse um segredo. Encostei-me na parede e fiquei quieto, observando-a em seu serviço. Demorou-se um tempo, poucos minutos até ela notar-me. Assustou-se e derrubou alguns quadros.

Não me disse claramente o que procurava, talvez aquela tela, talvez não? Parecia aflita sobre todas aquelas bugigangas, e não estava completamente errada, naqueles dias o atelier era um reflexo direto da minha vida.

Joe inclinou-se sobre a bagunça, culpada e um tanto irritada, usara a primeira coisa que viera como artifício para desviar minha atenção. Foi quando encontrou a pintura; empoeirada e enterrada pelo tempo.

Não fazia muito tempo que parara ali, então, assombrosamente parecia uma pintura antiga, quase secular, ainda assim tão simplória, onde pintei única e somente o céu e o mar. Talvez aquela fosse minha obra mais simplista.

Perguntou-me por fim, se era o mar de Coven. Sim, era ele. Com toda a significância, múltipla e subjetiva que o tinha.

Suas mãos dançaram sobre a tinta seca, pensativa. Mastigando palavras em pensamento. Pensou em seus pais? Enquanto o pintava? Não, não era minha intenção, era o óbvio, mas ... Foi na faculdade, entre um projeto e outro quis fazer algo totalmente espontâneo, relembrei, uma manhã qualquer me fez iniciá-la. Fitamo-nos num silêncio frio.

O que pensou em específico? Perguntou enfim, sentando-se no chão, como um felino se esparramando, cronicamente curiosa.

Não sei. Suspirei, então respondi rindo. Porque era verdade.

Vira aquela paisagem tantas e tantas vezes, mas não a reproduzi tendo um sentimento em específico a respeito dela.

Azul. Pintara somente com essa cor em mente. Calmo e gélido, por vezes quente, por vezes turbulento. Imprevisível, manso e constante.

Um mar, cortinas ao vento, flores crescendo no asfalto em frente a biblioteca, o céu de tardes dançantes, um par de olhos queridos. Deveria significar apenas aquilo; azul.

O que quero dizer é; achar aquele quadro, naquele momento, teve mais impacto em mim do que antes.

Assim que ela saiu, pronta para um jantar qualquer, me peguei recuando dois passos, a mão no queixo, surpreso, egocêntrico e até cético, pela obra de minhas mãos, e igualmente entediado por ela.

Simples. Como era. No fundo, era aquilo? um adolescente simples e até presunçoso, afinal, por que mais guardaria aquilo?

Tal como Joe, eu me estranhei. Estranhei o passado que vi através daquele azul. E ignorei o presente a julgar o passado como se não o reconhecesse.

Irritei-me com a certeza que jamais pintaria algo assim de novo. Mínimo e chato. Foram poucos momentos na minha vida que definiria assim. Talvez por isso tenha mudado tanto? O que passei a pintar naquela época se parece mais com uma grande repetição. O que aprendi nas aulas, o que na minha rebeldia desejei fazer, rabiscar, arranhar pelos papéis com a raiva de uma violência pacífica, mas isso seria uma outra conversa. No meio da contemplação, também surgiu-me uma ideia.

Como que sussurrada diretamente do passado, vestida como nova. Foi quando tracei uma linha. Simples linha. Sem rostos e sem nada, deixei-lhe ali, tomando lugar, resfriando sozinha. Uma única reta azul.

Não quis usar de ideias pré-concebidas, decidi que aquele azul, somente ele, seria meu começo. Deitei-me no chão e visualizei um enorme campo azul, árido, porém vívido.

Respirei fundo e apenas vi, aquela única gota se esparramando ao redor, como se não existisse um mundo fora daquele campo. Eu não sabia bem o que procurava com aquilo, e talvez justamente por não estar procurando nada fosse uma ideia nova.

Sem achar ou procurar, adormeci. Sonhando com algo muito diferente daquele azul.

Eu estava em casa, porém havia algo diferente, não saberia dizer o que era. Joe estava sobre o piano como aquela noite, o mesmo vestido e cabelos desarrumados, fitando-me indagadora. Seu resto semi desenhado no espelho enorme, seus lábios vermelhos entreabertos, sedentos por palavras que não podia pronunciar.

Não saia uma palavra de sua boca, era estranho.

Então ela se ergue e vem em minha direção, andando calmamente, até sentar-se no chão, bem a minha frente.

Tento tocar-lhe, entretanto minha mão atravessa-lhe como se ela fosse mera uma ilusão. Foi nesse momento que, erguido, olhando meu reflexo no espelho, constato que já não era... eu. Meu rosto desapareceu. Olhei para baixo, sentado em frente ao piano, não era mais Joe que eu vira, a cabeça balançando, alternando entre meus braços e pernas e o reflexo cinzento; era a mim que encarava, um pânico escancarado. Meu rosto se transfigurara no dela e o dela no meu.

Aterrorizado continuo encarando, tão cegamente que me absorvo, engolindo a mim mesmo.

De repente estamos de volta a cena inicial. Só que desta vez, seus dentes a mostra, parecia a ponto de saltar e mim, as unhas roídas, sujas até, lhe trazendo um aspecto tão animalesco que me afasto, o que a irrita ainda mais, fazendo com que reflita sua ira no meu reflexo no espelho.

Então, tudo é interrompido por uma janela, que bate ao abrir e fechar com a ventania. Nós dois olhamos para fora, esquecendo nosso devorar interno, a ira desvairada, a última coisa que vimos foi o mar.

O mar, abaixo de um céu tão vermelho quanto sangue.

Lembro de despertar já de noite, suando e com o coração acelerado, sozinho deitado no chão, me lembrando de cada detalhe daquele sonho estranho. E o que foi ainda mais estranho; na escuridão do atelier, desejei pintar. Retomar ao azul agora com um terror nítido e sonolento.

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